quinta-feira, 22 de março de 2018

"(...) quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e estar morto!" (Sócrates).


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A polissemia da morte no Fédon



Este texto constitui o trabalho final, avaliado com a nota máxima, da disciplina Filosofia Geral – Problemas Metafísicos III


1. Introdução

Resultado de imagem para Fédon  Constitui um corolário não só da Análise do Discurso, mas também das teorias linguísticas que tomam o texto para objeto de análise a afirmação de que, em face de um texto, muitas leituras são possíveis, muitos sentidos estão virtualmente disponíveis e podem ser construídos, embora nem todas as leituras, nem todos os sentidos sejam possíveis. Assim, embora a polissemia seja uma marca característica do discurso em geral, há tipos de discursos em que se percebe um controle maior dela, como sucede com os tipos polêmico e autoritário de discurso. No tipo autoritário, por exemplo, a polissemia tende a ser contida, estancada, uma vez que o enunciador se pretende único responsável pelo sentido e procura ocultar o referente por trás do que diz. São exemplos do tipo autoritário os discursos religiosos. Não obstante a variação do controle da polissemia, que, no tipo lúdico de discurso, chega a praticamente inexistir (no tipo lúdico, observa-se a expansão da polissemia e seu referente é mais transparente aos interlocutores), é ponto pacífico entre os estudiosos do discurso e do texto que não existe uma única leitura possível para um dado texto, mas muitas leituras. É com base nesse postulado teórico que nos propomos discutir duas formas de leitura que nos parecem autorizadas pelo texto de Fédon no tocante ao significado da morte. Em outras palavras, assumimos que a morte de que nos fala Platão, dando voz a Sócrates, nesse diálogo, pode ser interpretada de duas maneiras: a) como morte simbólica[1], ou seja, como uma experiência de negação da realidade vigente, ou de separação com relação aos hábitos e opiniões do homem comum[2]; b) como morte corporal ou metafísica, isto é, como separação entre a alma e o corpo. Chamamo-la de morte metafísica porque ela supõe a crença na sobrevivência da alma depois da sua separação do corpo. Trata-se também – se o preferirmos - de uma morte corporal, porque supõe que apenas o corpo perecerá.
Na discussão que, doravante, desenvolveremos sobre a conveniência dessas duas maneiras de interpretar o significado de morte no Fédon, buscaremos evidenciar não só que as duas leituras são autorizadas pelo texto, como também não são mutuamente excludentes. Ao contrário, pretendemos mostrar que elas são conciliáveis entre si. O modo como elas se conciliam esteia-se na hipótese de que a morte simbólica é uma experiência necessária e preparatória para a morte corporal; é uma experiência acessível apenas aos que se dedicam à filosofia (ao filósofo, portanto). A ser suficientemente provada esta nossa hipótese, a própria compreensão de filosofia como “um exercitar-se para a morte” significa mais do que um exercício de preparação para a fruição dos excelentes bens, dos quais se destaca como o mais elevado a conquista da sabedoria, depois de que a morte liberte a alma do cárcere corporal; significa também que a morte para a qual tende esse exercitar-se na filosofia é o estado de ruptura, de separação radical, de negação incondicional em que o filósofo deve encontrar-se relativamente ao modus vivendi dos homens em sociedade.



2. A doutrina da imortalidade da alma


Com a apresentação da doutrina da imortalidade da alma, pretendemos fornecer um enquadramento de sentido à luz do qual a leitura canônica da morte em Fédon se descerre de tal modo, que não seja confundida com a outra forma de leitura desse tema já por nós referida.
 É a dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão que trataremos de pôr a descoberto. Os temas da imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das almas têm sua origem no pensamento órfico-pitagórico de que Platão foi um herdeiro.[3] Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o homem é a psyché (a alma), mas dizer isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de desapego do corpo.  As injustiças sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à morte este corpo; mas, sendo justo, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica, entendida como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,


No orfismo tratava-se de uma simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a visão órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id., ênfase no original).


No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da alma.[4] A primeira delas, que não irá nos interessar aqui, tem base heraclitiana e, por isso, envolve a percepção da realidade como atravessada pelos contrários (justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa prova encontrará seu bom termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na apresentação das duas outras provas oferecidas por Platão e que ele mesmo julgava mais importantes.
A primeira das duas provas que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na premissa de que há duas instâncias de realidade, a saber, o mundo sensível (visível) e o mundo inteligível (invisível). O mundo inteligível é imutável, suas condições não variam; mundo sensível, por outro lado, é mutável. Platão estabelecerá uma correlação do corpo e da alma com esses dois domínios do real. Ora, notará Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança e, por isso, assemelha-se ao mundo visível ou das coisas sensíveis; a alma, porque é invisível e imutável, assemelha-se ao mundo inteligível, que é invisível e imutável.
Uma vez que se oriente pelas percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde, porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que, conhecendo no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece também que é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma permanece, ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é imutável e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela contempladas e às quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada de um caráter divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao corpo, a alma comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma característica importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser comandado. Por conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal. Acompanhemos o testemunho desta primeira prova:

- Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
-Admitamos.
- Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
-Admitamos também isso.
- Bem, prossigamos – tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos de suas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
- Nada mais verdadeiro!
- Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
- Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
- Por outro lado, que é a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
- Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
- Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer outra coisa?
- Foi a propósito da natureza humana.
- Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
- Que não se vê.
- Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
- Sim.
- Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
- Necessariamente, Sócrates.

(...)

- Penso não haver ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja capaz de não concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a alma tem mais semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com as coisas que não o fazem.
- E o corpo, por seu lado?
- Com a outra espécie.
- Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? Ou acaso pensas que o que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e comandar, e o que é mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
- Penso como tu.
- Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
- Nada mais claro, Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
- Bem, examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissociável e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isso, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção e provar que as coisas não se passam assim?
- Não, Sócrates.
- Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
- E por que não, com efeito?[5]


A segunda prova de que trataremos no Fédon exige que consideremos um aspecto da teoria da alma que se nos apresenta indispensável, já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova. Tomemos, então, a segunda prova que se acha no Fédon e que nos interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da proposição: as Ideias contrárias não podem combinar-se entre si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são mutuamente excludentes. Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também a impossibilidade de elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas participam essencialmente. Platão observará, então, que entrando a fazer parte de uma determinada coisa, uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é contrária e que até então estava nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia entra numa coisa, a Ideia contrária que estava na coisa anteriormente à entrada dessa Ideia é “expulsa” da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem contrárias, não podem coexistir na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em si e o Pequeno em si se excluem mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária quando tais Ideias entram a fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não pode ser pequena e vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo às coisas que, não sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são contrários uns aos outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam contrários entre si, apresentam atributos essenciais que são contrários entre si; sejam: [quente] e [frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio, nem a neve é compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve dissolver; a presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora, estender esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme se depreende da teoria da alma, é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida. Ela é que dá vida ao corpo. Justamente porque, para um grego, a alma tem como marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou tornar-se mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só corromperá o corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende deste e se dirige para outro lugar.
Podemos, então, compreender, a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente encerra a vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte, visto que a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão mútua dos contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego recusa como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma tão antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.



3. A morte como separação da alma e do corpo


Tendo em mente a teoria da imortalidade da alma, não podemos nos esquivar a aceitar a conclusão de que o significado mais transparente de morte em Fédon é o da morte como separação da alma com relação ao corpo. Trata-se do que chamamos morte metafísica, uma vez que, tendo se libertado do corpo, a alma não se extingue. A morte como separação da alma com relação ao corpo está assentada na crença de que, tendo ela habitado o corpo de um filósofo, poderá fruir no Hades “excelentes bens”, conforme nos afirma Sócrates: “(...) considero que o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor da legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto”[6]. A compreensão da morte como separação da alma com relação ao corpo aparece em diversos momentos no diálogo. Num desses momentos, Sócrates a apresenta após indagar a Símias sobre ser a morte alguma coisa:


- Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa?
- Claro – replicou Símias.
- Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? (ênfase nossa)[7]


Notemos que Sócrates termina seu turno de fala com a pergunta “A morte é apenas isso?”. Símias concorda que é apenas isso, mas Sócrates prossegue fazendo considerações sobre como deve ser a vida própria de um filósofo. À medida que vamos acompanhando Sócrates na descrição de como deve viver um filósofo, conseguimos, com uma atenção redobrada em nossa leitura, ‘pinçar’ aqui e ali uma compreensão de morte não redutível à anteriormente apresentada, sem bem que, de modo algum, divorciada daquela. Antes, porém, de discorremos sobre o modo como essa outra compreensão de morte vai-se iluminando ao longo do diálogo, devemos não perder de vista o fato de que a compreensão da morte como “separação da alma com relação ao corpo” dá sustentação à doutrina do destino das almas e assegura ao filósofo sua condição de amante da sabedoria. Sendo amante da sabedoria, o filósofo, em vida, jamais poderá conquistá-la. Porque é amante da sabedoria, ele a persegue obstinadamente; ele a deseja, sem jamais possuí-la. A sabedoria só poderá ser conquistada, segundo crê Platão, após a morte corporal – a da separação da alma com relação ao corpo. Somente a alma em si, a alma liberta daquilo que a estorva, poderá conhecer as Ideias em si, a Verdade em si:



Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nós há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como indica o argumento, e não durante a nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto dura a união com o corpo, obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma – mas nunca antes.[8]


É evidente aí que a morte de que nos fala Sócrates é a morte corporal. Enquanto está vivo, enquanto sua alma está atada ao corpo, o filósofo jamais poderá conquistar a sabedoria, pois que o corpo constitui um empecilho para a conquista do conhecimento verdadeiro, para a contemplação da Verdade: “durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!”[9]. É que, já o sabemos,

Não somente mil uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – e ei-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! (...).[10]

No seu desprezo pelo corpo, Sócrates o considera a sede das concupiscências, das paixões, as quais são suficientemente poderosas para “provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas”; ademais, é o corpo que nos incita à posse de bens e ao acúmulo deles, tornando-nos seus “míseros escravos”. Teria o filósofo o mesmo destino dos demais homens, qual seja, o de tornar-se escravos das necessidades do corpo? Não! Porque o filósofo se distingue dos demais homens por um modo de ser que lhe é próprio: o da vida filosófica. Ao dedicar sua vida à filosofia, o filósofo vive tanto quanto possível afastado dos bens e dos prazeres do corpo, e volta-se para os bens da alma, quais sejam, a virtude e a verdade. É preciso dizer mais: o filósofo se distingue dos demais homens e, portanto, não tomará parte no destino destes, porque, dedicando-se à filosofia, é o único capaz de realizar plenamente a ascese filosófica: “a alma do filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma”[11]. É consabido que a ascese passou a designar, com os pitagóricos, cínicos e estoicos, a forma da vida moral que visa à realização da virtude por meio da limitação dos desejos e da renúncia. A ascese tal como proposta em Platão para o filósofo é – parece-nos- a noção-chave que nos permite conciliar os dois significados à luz dos quais podemos compreender a morte em Fédon. Esclarecer esse ponto de nossa discussão será a tarefa desta última parte.


4. A morte como morte simbólica


Antes de buscarmos testemunho no diálogo de Fédon da compreensão da morte como morte simbólica e antes mesmo mostrar de que modo a ascese permite que as duas formas de ler a morte em Fédon podem-se articular, gostaríamos de dizer que a vida ascética que deve ser vivida pelo filósofo é condição necessária para a sua purificação. Essa purificação lhe garantirá uma boa sorte depois que chegue ao Hades. A maneira de atingir a purificação é pelo exercício de uma vida virtuosa orientada pela temperança, coragem e justiça e, sobretudo, orientada para a busca da verdade. O filósofo sendo o tipo humano, por excelência, que se ocupa de viver virtuosamente e de perseguir a verdade terá, depois de morto, o privilégio de morar junto aos Deuses. A sorte daqueles que viveram contrariamente à virtude é muito diferente: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses”.[12]
Retomemos aqui a ideia de que “estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia”[13]. Sócrates insiste em que a única ocupação daqueles que se dedicam à filosofia “consiste em preparar-se para morrer e estar morto”.[14] Esse trecho é importante porque nos chama atenção para a ambiguidade desse preparar-se para morrer e estar morto. Mas a percepção dessa ambiguidade só é suscitada em nós quando topamos com outros trechos em que fica patente que a morte de que Platão fala não é a morte metafísica, mas a morte enquanto renúncia ao modus vivendi típico do homem comum. Numa dessas passagens, Sócrates indaga a Símias se não lhe parece que um homem a quem não interessa os prazeres do corpo não está próximo da morte:



- Sem dúvida, a opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento?[15]



Embora a “morte” de cuja proximidade Sócrates fala aqui possa ser a morte como separação da alma com relação ao corpo, o “estar próximo da morte” não é estar propriamente morto, é viver como se estivéssemos mortos; por conseguinte, é viver sob o modo da separação, da renúncia a certo modo de viver ocupado com os prazeres do corpo. Entendemos, portanto, que, nesse excerto, já podemos, ao menos, entrever a concepção de morte como morte simbólica. Vejamos, contudo, se há outros trechos que nos autorizem a fazer essa leitura. Noutra passagem do diálogo, Sócrates fala de como a purificação era experienciada no Orfismo.

- Mas a purificação não é, de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam?
- É exatamente isso.
- Ter uma alma desligada e posta à parte do corpo, não é esse o sentido exato da palavra “morte?”
- É exatamente este o sentido.[16]


Ora, Sócrates fala em purificação como uma forma de morte, de sorte que aquele que se tornou purificado atingiu um estado de vida onde a alma já não se deixa perturbar pelas necessidades e/ou paixões do corpo. O purificado vive como se a alma estivesse separada do corpo. Esse estado vital assemelha-se à própria morte propriamente dita; mas não é a morte metafísica. Portanto, parece-nos indubitável dizer que também nesse excerto “morte” significa “morte simbólica”. Ora, o filósofo, na medida em que se exercita na filosofia, se prepara para essa forma de morte, que consiste na renúncia ao modus vivendi do homem comum, sempre ocupado com as necessidades do corpo, sempre ávido de fruir prazeres fugazes. Mas o exercitar-se para essa forma de morte constitui uma etapa da preparação para a morte como desligamento da alma em relação ao corpo – portanto, para a morte propriamente dita. 
Finalmente, vale referir outra passagem da qual é possível inferir a compreensão da morte como morte simbólica. Nesse trecho, Sócrates fala sobre o manter-se afastado tanto quanto possível da sociedade (bem como do corpo) se quisermos nos aproximar do conhecimento verdadeiro.



(...) por todo tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivemos mais contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E nisso, provavelmente, é há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é!”. Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um amigo do saber. (...).[17]


Esse afastamento tanto quanto possível da sociedade e da união com o corpo significa perfazer aquilo para o qual se destina a vida do filósofo: a morte simbólica, sem a qual a busca da verdade se lhe torna inviável. Todavia, a condição para atingir esse estado de renúncia, de separação é o exercício da ascese, é viver de tal modo desinteressado, apartado, desocupado das solicitações do corpo, dos seus anseios desmedidos, moderando suas paixões. A ascese funciona, pois, como um registro semântico ou conector de isotopia[18], que possibilita conciliar os dois significados de morte em Fédon. Essa conciliação é possível porque a vida ascética preconizada para o filósofo tanto atende à necessidade de ele permanecer vivendo enquanto tal, ou seja, enquanto amante da sabedoria, em cuja busca persiste sem ser desviado dela pelas intransigências excessivas do corpo, pela desmesura de suas paixões, quanto atende à esperança que nutre em tomar posse da sabedoria quando do definitivo desligamento da alma em relação ao corpo.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAUÍ, Marilena. Introdução à filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise de Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
 PLATÃO. Coleção Os pensadores. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE, Giovanni. Platão. São Paulo: Loyola, 2007.




[1] A expressão “morte simbólica” foi sugerida pela professora Izabela Bocayuva como parte da leitura que ela mesma faz do significado da morte em Fédon.
[2] Usamos a expressão “homem comum” para designar o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade, assumindo as crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural.
[3] Excederia os limites deste trabalho o pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á enfatizar que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se situam na esteira da tradição órfico-pitagórica.
[4] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar para cinco (Chauí, 2002).
[5] Fédon,79a-80b.
[6] Fédon, 64a.
[7] Ibid., 64b.
[8] Ibid., 67d-e.
[9] Ibid., 66b.
[10] Ibid., 66c-d.
[11] Ibid., 65d.
[12] Ibid., 69c.
[13] Ibid., 68a
[14] Ibid., 64a
[15] Ibid., 65a.
[16] Ibid., 67d.
[17] 67a.
[18] “Um conector de isotopias é um termo que possui dois ou mais significados, isto é, um termo polissêmico, presente no texto, que possibilita sua leitura em dois planos distintos, que permite a passagem de uma isotopia a outra”. (Fiorin, 2005, p. 115).

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