sábado, 24 de dezembro de 2016

"Não se pode conter uma certa indignação quando se contempla a sua azáfama no grande palco do mundo; e não obstante a esporádica manifestação da sabedoria em casos isolados, tudo, no conjunto, se encontra tecido de loucura, de vaidade infantil e, com frequência, também de infantil maldade e ânsia destruidora" (Emmanuel Kant)

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         A Natureza Providente e o Sentido da História em Kant

             Uma proposta de leitura de Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita





1. Introdução

Se cada um de nós tivesse “compreendido”, a história teria há muito terminado. Mas somos essencialmente, somos biologicamente inaptos a “compreender”. E ainda que todos compreendessem, excepto um, a história perpetuar-se-ia por causa dele, por causa de sua cegueira, por causa de uma única ilusão.

Cioran


Nesta exposição, procuraremos empreender uma análise das cinco primeiras proposições que se topam na obra Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita com vistas a garantir a consistência da seguinte tese, cuja forma damos a conhecer a seguir: Kant assume o caráter providencial da natureza no seu esforço de determinar um sentido para a História. Apresentando tal forma, nossa tese acena com a interpretação segundo a qual a Natureza assume o papel destinado a Deus na ortodoxia cristã, a saber, o de ser Providente[1]. Kant crê ser possível identificar uma intenção na natureza “no absurdo trajecto das coisas humanas” (p. 4). Kant nega ser possível encontrar algum plano racional nos homens individualmente e nas relações que estabelecem uns com os outros. Esse plano racional ele buscará determinar na investigação do modo como a própria natureza produziu os homens.
Cumpre-nos dar a saber, abaixo, os pressupostos à luz dos quais nossa análise se desenvolverá. Esses pressupostos balizam a extensão de nossa investigação.

1pp. O plano da natureza governa o devir histórico;

2pp. Kant crê no progresso da humanidade e crê que a História é dotada de um sentido ou finalidade;

3pp. O homem é um ser terreno dotado de razão;
4pp. O homem é o espaço de conflito entre sua inscrição na espécie e sua inscrição no meio social;

5pp. O plano da natureza se realiza no nível da espécie e não do indivíduo.



2. O homem como um ser conflitual

Não há dúvida de que Kant, como homem de seu tempo, acreditava no caráter emancipador da razão. A razão, para Kant, cumpria o papel de liberar o homem do imperativo dos instintos. Disso não se segue que ele não tenha reconhecido a influência dos instintos no comportamento dos homens e que não tenha admitido que os homens não agem exclusivamente segundo princípios racionais. O excerto que referimos a seguir não só dá testemunho de que Kant sabia que os homens nem sempre agem racionalmente segundo um plano estabelecido entre si, como também patenteia que, para o filósofo de Königsberg, a azáfama humana parece desprovida de qualquer sentido.

Os homens, nos seus esforços, não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do mundo em conformidade com um plano combinado; parece-lhes, pois, que também não é possível construir uma história segundo um plano (como, por exemplo, acontece entre as abelhas ou os castores). Não se pode conter uma certa indignação quando se contempla a sua azáfama no grande palco do mundo; e não obstante a esporádica manifestação da sabedoria em casos isolados, tudo, no conjunto, se encontra tecido de loucura, de vaidade infantil e, com frequência, também de infantil maldade e ânsia destruidora: pelo que não se sabe, no fim de contas, que conceito será preciso instituir para si acerca da nossa espécie, tão convencida da sua superioridade (...). (ib.id., grifo nosso).



Vamo-nos deter um pouco na consideração desse fragmento. Claro está, inicialmente, que Kant estabelece uma separação entre os homens e os animais com base em duas características: o alcance da influência dos instintos e a ausência de um equipamento biológico inato e determinista. Assim, os instintos não chegam a determinar o comportamento do homem (sucede diferente – Kant quer-nos fazer crer – com os animais: nestes, os instintos são determinantes). Acresce-se a isso que falta ao homem um programa biologicamente constituído que o habilite para todos os atos de sua vida. Os homens precisam aprender as formas de comportamento em consonância com os padrões correntes em sua sociedade.
Não devemos perder de vista certo pessimismo kantiano ao reconhecer que, no domínio da cotidianidade, as atividades e/ou as relações humanas, quando contempladas em conjunto, parecem “tecidas de loucura, de vaidade infantil e ânsia destruidora”. Como é possível ao filósofo encontrar algum propósito racional a orientar as ações históricas dos homens no cotidiano? Kant sugere um caminho: tentar descobrir se há uma intenção da natureza que oriente o curso absurdo das coisas humanas.  
O caráter conflitual do homem, que se expressa na tensão entre sua inscrição na espécie e sua inscrição na ordem social, é herança do trabalho da própria natureza. O homem é um ser insociável que precisa tornar-se sociável para poder levar a efeito a perfectibilidade de suas disposições naturais. Ocorre, contudo, que, ao se tornarem sociáveis, os homens podem aniquilar-se uns aos outros.
Passaremos a examinar, separadamente, as cinco proposições que, considerados os limites desse trabalho, acreditamos contribuir para sustentação da tese aduzida por nós.

3. Análise das primeira, segunda, terceira, quarta e quinta proposições kantianas

3.1. Primeira Proposição

“Todas as disposições naturais de uma criatura estão determinadas a desenvolver-se alguma vez de um modo completo e apropriado”.


Na primeira proposição, Kant assume seu compromisso com a doutrina teleológica da natureza, à luz da qual crê que a natureza não faz nada sem alguma finalidade. Ademais, a crença no princípio teleológico implica a crença na regularidade da natureza. Segundo Kant, renunciar a esse princípio implicaria não ser mais possível admitir uma natureza regular. A regularidade da natureza, de que dá testemunho a observação, quer externa, quer interna, dos animais, é dependente do princípio teleológico, segundo o qual os produtos da natureza se destinam, necessariamente, a um fim.
Kant não veio a conhecer a revolução darwiniana, razão por que não podemos responsabilizá-lo por imperícia no exame da dinâmica da natureza. Kant acreditava numa natureza parcimoniosa, ordenada, regular e finalisticamente constituída para produzir seres cujas disposições atingiriam um estágio completo e apropriado. Darwin, por sua vez, demoliu essa visão de mundo teleológica – herança aristotélica -, ao cunhar o conceito de seleção natural. A seleção natural pode modificar profundamente a conformação de um animal, mesmo que essa modificação só lhe seja útil uma única vez na vida. O mecanismo de seleção natural, através do qual se realiza a chamada evolução das espécies, tem caráter esbanjador, desastroso e ineficiente. A seleção natural envolve muitos desperdícios ao longo do processo, muito embora os produtos exibam sinais de sofisticação e elegância.
Se fizemos alusão, de modo sucinto, à compreensão darwinista do mundo, foi com o único propósito de esclarecer melhor em que horizonte hermenêutico se movia Kant: o de uma cosmologia aristotélica. À luz desse modelo cosmológico, a natureza constitui uma totalidade ordenada, regular e finalisticamente orientada; em uma palavra, racional.

3.2. Segunda Proposição

“No homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”.


A segunda proposição kantiana se esteia nas seguintes ideias: 1) o homem é um ser terreno dotado de razão; 2) a razão leva o homem a transcender às coerções instintivas; 3) o plano da natureza se realiza na espécie, e não nos indivíduos. O papel da razão na emancipação do homem relativamente à sua herança instintual é, sobremaneira, valorada por Kant. A razão, assinala Kant, “é uma faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural” (p. 5). Ocorre, contudo, que o desenvolvimento da razão é gradual e envolve aprendizagem, tentativas, trabalho este que, se fosse de responsabilidade de cada homem, exigiria um tempo muitíssimo longo para que culminasse com a perfeição de todas as disposições naturais. Mas o indivíduo é apenas um episódio no desenvolvimento da espécie.  Por isso, a natureza “necessita de uma série talvez incontável de gerações, das quais uma transmite à outra os seus conhecimentos, para que finalmente o seu germe, ínsito na nossa espécie, alcance o estádio de desenvolvimento que é de todo adequado à sua intenção” (p. 5-6).
Kant acredita que a natureza tem no homem o escopo de todos os seus esforços. A natureza, tal como Deus, não joga dados. Kant chega a atribuir à natureza uma sabedoria que serve “de princípio para julgar todas as restantes coisas” (ib.id.). As disposições naturais de que são dotados os seres vivos, especialmente os homens, devem, necessariamente, ter utilidade e finalidade.

3.3. Terceira Proposição

“A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que ultrapassa o arranjo mecânico da sua existência animal, e que não compartilhe nenhua outra felicidade ou perfeição excepto a que ele, liberto do instinto, conseguiu para si mesmo, mediante a própria razão”.


Novamente, aqui, Kant revela sua crença no caráter emancipador da razão. A razão permite ao homem libertar-se do imperativo dos instintos. Há que salientar, no entanto, uma crença que nos parece mais consistente com nossa tese, segundo a qual Kant acredita numa natureza providente. Já de início, lemos: “A natureza nada faz em vão e não é perdulária no emprego dos meios para os seus fins” (p. 6). E devemos acrescentar: “Que tenha dotado o homem de razão e da liberdade da vontade, que nela se funda, já era um indício claro da sua intenção no tocante ao seu equipamento”.
Tal como um ser providente, que tudo dispõe segundo sua intenção e sabedoria, a natureza

“(...) mediu com tanta concisão o seu equipamento animal e de modo tão ajustado à máxima necessidade de uma existência incipiente como se quisesse que o homem, se alguma vez houvesse de passar da maior rudez à máxima destreza, à perfeição interna do seu pensar e assim (tanto quanto é possível na terra) à felicidade, fosse o único a disso ter o mérito e apenas a si estar agradecido; como se ela se importasse mais a sua auto-estima racional do que qualquer bem-estar”. (ênfase no original, p. 6-7).


Ao lermos a concepção kantiana da natureza à luz do conceito de Providência, não ignoramos o fato de que essa Natureza Providente está menos interessada no bem viver do homem do que no desenvolvimento pleno de suas disposições naturais, cujo fim é levá-lo a uma condição de bem-estar. Ao contrário do Deus Providente do monoteísmo, a Natureza de que nos fala Kant não se ocupa em determinar a ordem dos acontecimentos do mundo para a felicidade de cada indivíduo. A Natureza está preocupada com a sorte das gerações futuras. Ela atua de modo a favorecer o desenvolvimento pleno das espécies.
No tocante ao homem, a natureza o dotou de razão e de liberdade da vontade para que ele, por si mesmo, desenvolvesse suas disposições até o estágio de maior perfeição. Mas essa perfeição não pode ser jamais atingida no nível do indivíduo, já que esse vive um tempo insuficiente para o alcance dessa meta; a perfeição só pode ser atingida na espécie, pela sucessão de muitas gerações.


3.4. Quarta Proposição

“O meio de que a natureza se serve para obter o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo destas na sociedade, na medida em que ele se torna, finalmente, causa de uma ordem legal das mesmas disposições”.


O conceito basilar desta proposição é o de sociabilidade insociável dos homens, que Kant define como “a sua tendência [a dos homens] para entrar na sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade”. (p. 7). Para Kant, “esta disposição reside manifestamente na natureza humana”. (ib.id.). A sociabilidade insociável é expressão do caráter conflitual do próprio ser humano. Em outras palavras, a sociabilidade insociável inscreve no homem sua mais manifesta contradição: a de ser naturalmente propenso a viver em sociedade (tem necessidade de conviver para sobreviver) e, ao mesmo tempo, ser propenso a viver em estado de discórdia, de rivalidade, de conflito, que ameaça romper com a ordem social.
O homem não é homem fora do domínio social. A sociabilidade confere ao homem sua humanidade. No entanto – nota Kant – o homem é naturalmente egoísta e quer “dispor de tudo a seu gosto e, por conseguinte, espera resistência de todos os lados, tal como sabe por si mesmo que, de sua parte, sente inclinação para exercer a resistência contra os outros” (p. 8). Graças à razão, os homens buscam superar-se uns aos outros pela expressão de seus talentos. A insociabilidade sociável própria do homem é uma espécie de disposição, de que a natureza o dotou, que o leva a superar o estado de indolência a que ele está naturalmente propenso, para, movido pelo desejo de poder, de honras, fundar o espaço simbólico onde sua vida acontece: a cultura. É no domínio da cultura - “valor social do homem” - que se desenvolvem gradativamente os talentos de toda a espécie humana. O desenvolvimento desses talentos não seria possível, segundo Kant, sem a tendência natural humana à insociabilidade. Atentemos para o excerto em que Kant descreve o que sucederia à vida humana, se os homens fossem carecidos dessa tendência à insociabilidade:

Sem as propriedades, em si decerto não dignas de apreço, da insociabilidade, de que promana a resistência com que cada qual deve deparar nas suas pretensões egoístas, todos os talentos ficariam para sempre ocultos no seu germe, numa arcádica vida de pastores, em perfeita harmonia, satisfação e amor recíproco: e os homens, tão bons como as ovelhas que eles apresentam, dificilmente proporcionariam a esta sua existência um valor maior do que o que tem este animal doméstico; não cumulariam o vazio da criação em vista do seu fim, como seres de natureza racional. Graças, pois, à Natureza pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emuladora, pela ânsia insaciável de posses ou também do mandar! Sem elas, todas as excelentes disposições naturais da humanidade dormitariam eternamente, sem desabrochar (...). (p. 8).



Nesse trecho, deve-se reter a convicção kantiana de que a insociabilidade natural humana – com as consequências que ela produz, a saber, a discórdia, o conflito, as rivalidades – é condição necessária para que os homens se tornem capazes de desenvolver suas disposições naturais. A Natureza, assim, visa sempre a aperfeiçoar as disposições humanas, mesmo que, para tanto, tenha de servir-se das tendências agressivas e moralmente censuráveis que existem nos homens. A Natureza, ao contrário de Deus, não julga; não existem para ela o bem e o mal. Os males que nascem das fontes de insociabilidade humana impelem os homens a desenvolver seus talentos. O caráter providencial da Natureza pode ser depreendido sem dificuldades do seguinte trecho em que Kant compara a Natureza a um “sábio Criador”.

Os motivos naturais, as fontes da insociabilidade e da resistência geral, de que brotam tantos males, mas que repetidamente impelem também, todavia, a novas tensões das forças, portanto a novos desenvolvimentos das disposições naturais, revelam de igual modo o ordenamento de um sábio Criador; e não, por exemplo, a mão de um espírito mau que, por inveja, tenha estragado ou danificado a sua obra magnificente. (grifo nosso, p. 9).

A leitura atenta desse excerto permite-nos pontuar o seguinte: 1) a Natureza tem motivos; 2) seus motivos a levam a operar em favor do aperfeiçoamento das condições existenciais do homem; 3) seu trabalho revela um ordenamento que parece ter sido obra de um sábio Criador.
Resta ainda considerar uma passagem que nos parece controversa, se considerarmos o reconhecimento kantiano de que os homens são naturalmente propensos à insociabilidade. Citemo-la: “O homem quer a concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer a discórdia”. (p. 8). O que se segue a esse fragmento não será objeto de nosso questionamento, já que Kant reitera algumas ideias já contempladas neste estudo: o homem quer viver na satisfação permanente e na preguiça, mas a natureza quer que ele “mergulhe no trabalho e nas contrariedades” (p. 9). Ao afirmar que “o homem quer a concórdia”, Kant assume que a vontade humana pode determinar o objeto de seu querer, sem qualquer influência dos instintos, das paixões. Como pode o homem ter uma propensão natural à insociabilidade, à disputa, ao conflito e, ao mesmo tempo, querer a concórdia? O estado natural do homem é o da discórdia. Se o homem busca estabelecer relações mais ou menos harmoniosas, amistosas com seus semelhantes, o faz por necessidade de subsistência ou sobrevivência. A concórdia, estado para cuja manutenção se dirigem os esforços humanos, é um meio para a realização de fins, em última instância, egoístas. Acreditamos, seguindo rigorosamente o pressuposto kantiano do caráter conflitual da natureza humana – que a concórdia não resulta (pelo menos, nem sempre) do exercício de uma atividade pessoal e consciente que visa a um propósito determinado – exercício ao qual damos o nome de vontade. Cada homem, considerado individualmente, quer satisfazer suas necessidades egoístas, quer realizar seus desejos, quer obter a qualquer custo gratificação (quer poder, honra, prestígio). A razão, no entanto, adverte cada indivíduo de que seu anseio desmesurado por satisfação conflitua com o anseio por satisfação pelo qual os demais indivíduos também são movidos. Como cada um quer dispor de tudo que lhe acarrete satisfação, segue-se naturalmente daí o estado de discórdia permanente. Viver em concórdia pode significar reduzir drasticamente o grau de satisfação pretendido, mas é preferível a um estado permanente de conflito em que o risco de sofrimento e morte é constante e incompatível com os anseios egoístas, para cuja satisfação os homens concordam em suportar a proximidade uns dos outros.
Nós não temos a capacidade de decidir sobre o que é melhor para a nossa espécie. Essa é uma lição que devemos colher da leitura de Kant no texto sobre o qual vimos nos debruçando neste trabalho. Mas a fé de Kant no caráter emancipador da razão, no poder que tem ela de determinar os meios adequados para a obtenção dos fins consonantes com um plano naturalmente fixado parece tê-lo impedido de ver que é da natureza da razão ser irrazoável.


3.5. Quinta Proposição

“O maior problema do gênero humano, a cuja solução a Natureza o força, é a consecução de uma sociedade civil que administre o direito em geral”.


Nessa proposição, Kant reitera a intenção da natureza, qual seja, que o homem desenvolva todas as suas disposições. Mas é só na sociedade que essa intenção pode ser completamente realizada, já que é na vida social que os homens podem vir a expressar a máxima liberdade e coexistir sob o modo de um antagonismo universal; é também em sociedade que se encontram os limites da liberdade individual, sem os quais não seria possível a convivência com os outros. A Natureza, portanto, se serve da sociedade para a realização plena de sua intenção. Segundo Kant, a Natureza só pode cumprir plenamente sua tarefa, se a sociedade favorece a liberdade nos limites das leis, se nela essa liberdade se acha unida a “uma constituição civil perfeitamente justa” (p. 9).
A ideia basilar dessa proposição é que a cultura e a ordem social são produtos da insociabilidade humana. É necessário compreender esse ponto, já que é querer tirar da insociabilidade a possibilidade mesma de coexistência em sociedade parece ser paradoxal. A palavra-chave para a compreensão desse paradoxo é necessidade. Kant reconhece que os homens apreciam a liberdade irrestrita. O estado de discórdia decorrente da propensão humana à insociabilidade produz no homem a necessidade de sobrevivência. É essa necessidade que coage os homens suportar a convivência uns com os outros. É essa necessidade que os leva a abandonar sua “liberdade selvagem”. A liberdade absoluta só se poderia expressar em um estado de absoluto isolamento, mas isso tornaria a sobrevivência de cada indivíduo praticamente impossível. É somente na constituição civil que os homens podem conservar algum grau de liberdade ao mesmo tempo em que dispor das condições necessárias a sua subsistência. Na vida social, a propensão natural humana à insociabilidade é “forçada a disciplinar-se” (p. 10). Somente com a disciplina da insociabilidade própria do homem pode a Natureza continuar a realizar seu plano, cujo fim é a perfectibilidade das disposições que ela mesma inscreveu na constituição dos indivíduos de uma mesma espécie. No entanto, esse fim só pode ser alcançado na escala da espécie, pela sucessão de inúmeras gerações, mas nunca no indivíduo, cujo tempo de sobrevida é infinitamente inferior ao tempo necessário à realização daquele propósito.




4. Considerações finais

Na nona proposição, que não pôde ser aqui objeto de nossa apreciação, dados os limites de nosso trabalho, Kant afirma: “Um ensaio filosófico que procure elaborar toda a história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da perfeita associação civil no gênero humano, deve considerar-se não só como possível, mas também como fomentando esse propósito da Natureza” (p. 17). A Natureza tem um propósito supremo - dirá Kant -, qual seja, a instituição de um estado de cidadania mundial no qual “se desenvolverão todas as disposições originárias do gênero humano”. Disso se segue que a Natureza não procede sem um plano ou uma meta final. O sentido da História consiste na realização plena dessa meta. Ao procurar determinar o sentido de da História a partir de um modelo teleológico em cujo cerne está uma Natureza dotada de um plano e de um modus operandi providencial, Kant evita os problemas empíricos que surgem da postulação de uma Providência que se encarna na pessoa de um Deus  metafísico, que é a instância normatizadora do comportamento humano e fundamento da totalidade dos entes. Ao assumir o caráter providencial da Natureza, Kant alija do conceito de Providência todo compromisso com a constituição de uma totalidade ordenada passível de ser julgada moralmente. O que Kant realizou foi a depuração teológica do conceito de Providência, ao assumir, mesmo que no nível dos implícitos da textualização, o caráter providencial da Natureza. Essa depuração teológica do conceito de Providência consistiu, especialmente, em que o trabalho realizado pela Natureza não produz uma totalidade ordenada que seja ela mesma expressão de um modelo para o comportamento moral dos homens. O Deus Providente da tradição cristã é fonte legitimadora dos comportamentos humanos; é ele que garante à existência humana seu sentido. A Criação, de que esse Deus é o agente, deve ser necessariamente boa, porque seu agente é necessariamente bom. Ao atribuir caráter providencial à Natureza, Kant evita os problemas que se seguem da postulação de uma Providência divina quando nos dispomos a refletir sobre a constituição da ordem natural. O plano da Natureza é estritamente imanente, ao contrário do plano metafísico de Deus que se expressa na promessa de um “além”, que constitui o centro de gravidade da vida, a instância a partir da qual o sentido da vida se justifica.
A estrutura profunda do que podemos chamar de “mentalidade teológica” não foi de todo abandonada por Kant, se considerarmos o fato de que Kant expressa, com formas secularizadas, o que a teologia popular não cansa de afirmar: “Deus escreve certo com linhas tortas” – e a Natureza, diremos com Kant, se seve dos meios pouco dignos de apreço para atingir o melhor. Nesse sentido, a Providência da Natureza se assemelha à Providência divina, e Kant não fez mais do que escolher um meio em detrimento de outro para atingir seu fim: garantir que a História tem um sentido.














[1] Ao sustentarmos que a Natureza, no texto kantiano submetido à análise, ocupa o lugar outrora preenchido por Deus, não se segue que a Natureza, à semelhança do Deus judaico-cristão, tenha algum compromisso moral. A Providência da Natureza não é semanticamente redutível à Providência divina; a relação entre as duas formas de Providência é analógica. A Natureza é providente no sentido de que ela dispõe os homens para que desenvolvam suas disposições naturais, seus talentos em condições existencialmente tensionadas. 

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