sábado, 19 de março de 2016

Política e discurso

                                          



                                  A palavra e a política
                   Para uma compreensão crítica do sentido

A política, desde os antigos gregos, tem como princípio a dialética; e a dialética é, para os gregos, jogo de contrariedades. A dialética amplia o horizonte das contrariedades e estabelece a seleção da melhor posição. Dialética significa que a rivalidade está posta, que a rivalidade é admitida como condição mesma de possibilidade da própria dialética. A dialética formaliza a política através do exercício do diálogo. O diálogo só é possível numa sociedade política, de modo que, para os antigos, a palavra dialógica é condição de possibilidade de instauração do espaço político. Numa sociedade despótica, não há diálogo.
A política é, portanto, a arte de estabelecer relações entre rivais. A política é a prática da multiplicidade, dos contraditórios. E a palavra dialógica, condição de possibilidade de fundação do espaço político, é lugar da contrariedade, das oposições, dos conflitos.
Mas quem, depois de Maquiavel, ousaria acreditar numa política verdadeira? Quem ousaria crer que a política se faz em nome da verdade? A política, antes de mais nada , está submetida aos interesses, à força, à aparência, aos simulacros.
A vida humana não é possível sem ilusões. A verdade da ilusão é o fato de ela ser necessária. O próprio homem também é ilusório, porque hipostasia o objeto de seu desejo, transformando o que é subjetivamente desejado em valores objetivamente desejáveis. É preciso reconhecer, então, a ilusão da política – política que é criação de um ser que se ilude sobre quem é. Há uma ilusão própria à política. É a ilusão de todo militante sincero, independentemente de seu partido, qual seja, a ilusão tenaz de ter razão. A política não é uma questão de razão (entenda-se: de ser razoável), mas de desejo. Em política, se ninguém tem razão, é porque todo mundo deseja. Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. Toda política, portanto, é desejante, embora nem todo desejo seja político.
O desejo só se torna político quando se converte em reivindicação de um bem universal. O desejo só é político quando subsume o que é subjetivamente desejado na invocação ilusória do que é objetivamente desejável. A política é a própria coletividade dos desejos, por isso ela se sublima na hipóstase ideológica de um desejo coletivo: vontade geral, bem comum ou sentido da história. Ilusão da política: a comunidade de interesses. O militante é afetado por duas formas de ilusão: ele tem certeza de ter razão e tem certeza de vencer. Pensa ele, em nome da militância: não é porque venceremos que temos razão, é porque temos razão que venceremos.
Democracia: efeito secundário da política. A democracia caracteriza a soberania exercida pela sociedade política. Como tal, democracia é “jogo”, regulamentado por lei, das forças e desejos.
Tenho acompanhado com bastante interesse os episódios recentes da história política do Brasil. Meu interesse, contudo, não se circunscreve a uma tomada de posição ideologicamente orientada para apoiar um ou outro dos segmentos em conflito (o do governo e o da oposição, o dos que apóiam o governo e o dos que são contrários a ele). A cena política é o lugar privilegiado onde se descortina o caráter socioideológico da palavra. A palavra é uma arena em miniatura onde se encena a luta dos valores sociais orientados contraditoriamente. Toda palavra se define por uma dupla materialidade: uma físico-material; outra sócio-histórica. Por apresentar uma materialidade sócio-histórica, a palavra recebe sempre um ponto de vista, na medida em que ela representa a realidade a partir de um lugar valorativo. É por isso que a palavra apresenta a realidade como boa ou má, positiva ou negativa. O lugar valorativo e o ponto de vista são sempre determinados sócio-historicamente.
Uma teoria do discurso como a proposta pela Análise do Discurso (particularmente de orientação francesa), um campo transdisciplinar, contribui sobremaneira para o debate público que tem animado muitas vozes interessadas em ocupar um lugar na arena de conflitos e de rivalidades que constitui o que chamamos de espaço político. A contribuição importante dessa teoria do discurso consiste em evidenciar a determinação histórica da produção dos sentidos. Fomos educados para pensar que as palavras significam aquilo que nos dizem os dicionários. Por força de uma escolarização que forma para conformar e não para emancipar, nos acostumamos com a crença de que o significado da palavra já lhe está fixado como uma propriedade sua independentemente do uso; passamos a crer, sem questionar, na literalidade do significado e julgamos que os frequentes desentendimentos na interação são um problema de inaptidão do interlocutor no ajuste entre significante e significado; cremos que os desentendimentos podem ser resolvidos quando compreendemos ou fazemos o outro compreender o significado “correto” da palavra empregada. Porque passamos muito tempo crendo na transparência da linguagem, ficamos perplexos, até irritados, quando constatamos com que impertinência nosso interlocutor se recusa a aceitar o significado de nossas palavras (afinal, ele não deveria ser o mesmo para mim e para o meu interlocutor?). Não fomos educados para pensar e compreender a significação como algo que se produz interacionalmente, como objeto de negociação entre sujeitos que, ao dizer, fazem ecoar outros dizeres. Não nos ensinaram a pensar a significação como um processo que se realiza no discurso, o qual é um momento da prática social, é ação social em um contexto sócio-histórico e ideologicamente marcado.
Eu me referia, no início deste texto, à ilusão da política. Gostaria de retomar o efeito de ilusão na perspectiva do sujeito do discurso. Fomos educados para pensar que, enquanto sujeitos (livres e autônomos), somos o centro do nosso dizer; cremo-nos na origem do nosso dizer; cremos também exercer controle sobre o que dizemos. Novamente aqui devemos encarar essas ilusões como necessárias, porque constitutivas do próprio sujeito discursivo.
Mas, se queremos atravessar completamente o vale das sombras da mediocridade cotidiana, é preciso que olhemos através das palavras. Tenho acompanhado, como disse, com muito interesse este momento conturbado de nossa história política. Mas estou precipuamente interessado nos discursos e nos atores sociais que os produzem.
Toda palavra tem uma inscrição na História. As palavras tomam seu sentido da formação discursiva a que pertencem. Ora, são as formações discursivas que definem o que se pode dizer em determinada época e espaço social, o que tem lugar e se realiza em condições de produção específicas, determinadas historicamente. O sujeito só é sujeito porque se inscreve numa dada formação discursiva que é atravessada por formações ideológicas. O sujeito é sempre uma posição-sujeito que se inscreve numa formação ideológica. É desse lugar que o sujeito significa, faz seu dizer significar. Portanto, ao nos perguntar sobre o que significa uma palavra – por exemplo, a palavra GOLPE, que tem sido proferida em uníssono pela militância petista e simpatizantes -, devemos atentar para o uso dela, considerando-o como um acontecimento no qual estão envolvidos sujeitos sociais partidários ou simpatizantes de uma orientação político-ideológica determinada. Os sentidos não se esgotam no imediato. Todo dizer tem uma história. As palavras fazem sentido de modo diferente para sujeitos sociais diferentes.

Nesses tempos de incertezas, receios, alvoroços discursivos, é necessário não se deixar fisgar pela ilusão da evidência do sentido, ou seja, pela crença ilusória de que o sentido já está sempre lá. O sentido das palavras é sempre uma relação determinada com o sujeito, o qual é afetado pela língua, e com a história. Insisto, mesmo correndo o risco de ser redundante, que o sentido não está no dizer em si mesmo, nem é no dizer que o sentido é de esquerda ou de direita. Tampouco devemos remeter o sentido às intenções do enunciador. A determinação do sentido depende da remissão dele às condições de produção. Não se trata, propriamente, de apreender o sentido, mas de compreender os processos sócio-históricos de sua produção, compreender como as palavras, o discurso fazem sentido. Para tanto, é necessário estabelecer as relações do sentido com sua memória discursiva (o interdiscurso), bem como com sua formação discursiva. Os sentidos não se acham nas palavras; mas estão aquém e além delas.

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