A
palavra e a política
Para uma compreensão crítica do sentido
A política, desde os antigos gregos, tem como princípio a
dialética; e a dialética é, para os gregos, jogo de contrariedades. A dialética
amplia o horizonte das contrariedades e estabelece a seleção da melhor posição.
Dialética significa que a rivalidade está posta, que a rivalidade é admitida
como condição mesma de possibilidade da própria dialética. A dialética
formaliza a política através do exercício do diálogo. O diálogo só é possível
numa sociedade política, de modo que, para os antigos, a palavra dialógica é
condição de possibilidade de instauração do espaço político. Numa sociedade
despótica, não há diálogo.
A política é, portanto, a
arte de estabelecer relações entre rivais. A política é a prática da
multiplicidade, dos contraditórios. E a palavra dialógica, condição de
possibilidade de fundação do espaço político, é lugar da contrariedade, das
oposições, dos conflitos.
Mas quem, depois de
Maquiavel, ousaria acreditar numa política verdadeira? Quem ousaria crer que a
política se faz em nome da verdade? A política, antes de mais nada , está
submetida aos interesses, à força, à aparência, aos simulacros.
A vida humana não é
possível sem ilusões. A verdade da ilusão é o fato de ela ser necessária. O
próprio homem também é ilusório, porque hipostasia o objeto de seu desejo,
transformando o que é subjetivamente desejado em valores objetivamente
desejáveis. É preciso reconhecer, então, a ilusão da política – política que é criação
de um ser que se ilude sobre quem é. Há uma ilusão própria à política. É a
ilusão de todo militante sincero, independentemente de seu partido, qual seja,
a ilusão tenaz de ter razão. A política não é uma questão de razão (entenda-se:
de ser razoável), mas de desejo. Em política, se ninguém tem razão, é porque
todo mundo deseja. Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão. Toda
política, portanto, é desejante, embora nem todo desejo seja político.
O desejo só se torna
político quando se converte em reivindicação de um bem universal. O desejo só é
político quando subsume o que é subjetivamente desejado na invocação ilusória
do que é objetivamente desejável. A política é a própria coletividade dos
desejos, por isso ela se sublima na hipóstase ideológica de um desejo coletivo:
vontade geral, bem comum ou sentido da
história. Ilusão da política: a
comunidade de interesses. O militante é afetado por duas formas de ilusão:
ele tem certeza de ter razão e tem certeza de vencer. Pensa ele, em nome da
militância: não é porque venceremos que temos razão, é porque temos razão que
venceremos.
Democracia: efeito secundário da política. A
democracia caracteriza a soberania exercida pela sociedade política. Como tal,
democracia é “jogo”, regulamentado por lei, das forças e desejos.
Tenho acompanhado com
bastante interesse os episódios recentes da história política do Brasil. Meu
interesse, contudo, não se circunscreve a uma tomada de posição ideologicamente
orientada para apoiar um ou outro dos segmentos em conflito (o do governo e o
da oposição, o dos que apóiam o governo e o dos que são contrários a ele). A
cena política é o lugar privilegiado onde se descortina o caráter
socioideológico da palavra. A palavra é uma arena em miniatura onde se encena a
luta dos valores sociais orientados contraditoriamente. Toda palavra se define
por uma dupla materialidade: uma físico-material; outra sócio-histórica. Por
apresentar uma materialidade sócio-histórica, a palavra recebe sempre um ponto
de vista, na medida em que ela representa a realidade a partir de um lugar
valorativo. É por isso que a palavra apresenta a realidade como boa ou má, positiva
ou negativa. O lugar valorativo e o ponto de vista são sempre determinados
sócio-historicamente.
Uma teoria do discurso
como a proposta pela Análise do Discurso (particularmente de orientação
francesa), um campo transdisciplinar, contribui sobremaneira para o debate
público que tem animado muitas vozes interessadas em ocupar um lugar na arena
de conflitos e de rivalidades que constitui o que chamamos de espaço político. A contribuição
importante dessa teoria do discurso consiste em evidenciar a determinação
histórica da produção dos sentidos. Fomos educados para pensar que as palavras
significam aquilo que nos dizem os dicionários. Por força de uma escolarização
que forma para conformar e não para emancipar, nos acostumamos com a crença de
que o significado da palavra já lhe está fixado como uma propriedade sua
independentemente do uso; passamos a crer, sem questionar, na literalidade do
significado e julgamos que os frequentes desentendimentos na interação são um
problema de inaptidão do interlocutor no ajuste entre significante e
significado; cremos que os desentendimentos podem ser resolvidos quando
compreendemos ou fazemos o outro compreender o significado “correto” da palavra
empregada. Porque passamos muito tempo crendo na transparência da linguagem,
ficamos perplexos, até irritados, quando constatamos com que impertinência
nosso interlocutor se recusa a aceitar o significado de nossas palavras
(afinal, ele não deveria ser o mesmo para mim e para o meu interlocutor?). Não
fomos educados para pensar e compreender a significação
como algo que se produz interacionalmente, como objeto de negociação entre
sujeitos que, ao dizer, fazem ecoar outros dizeres. Não nos ensinaram a
pensar a significação como um
processo que se realiza no discurso, o qual é um momento da prática social, é ação social em um contexto
sócio-histórico e ideologicamente marcado.
Eu me referia, no início
deste texto, à ilusão da política. Gostaria de retomar o efeito de ilusão na
perspectiva do sujeito do discurso. Fomos educados para pensar que, enquanto
sujeitos (livres e autônomos), somos o centro do nosso dizer; cremo-nos na
origem do nosso dizer; cremos também exercer controle sobre o que dizemos.
Novamente aqui devemos encarar essas ilusões como necessárias, porque
constitutivas do próprio sujeito discursivo.
Mas, se queremos
atravessar completamente o vale das sombras da mediocridade cotidiana, é
preciso que olhemos através das palavras. Tenho acompanhado, como disse, com
muito interesse este momento conturbado de nossa história política. Mas estou
precipuamente interessado nos discursos e nos atores sociais que os produzem.
Toda palavra tem uma
inscrição na História. As palavras tomam seu sentido da formação discursiva a
que pertencem. Ora, são as formações discursivas que definem o que se pode
dizer em determinada época e espaço social, o que tem lugar e se realiza em
condições de produção específicas, determinadas historicamente. O sujeito só é
sujeito porque se inscreve numa dada formação discursiva que é atravessada por
formações ideológicas. O sujeito é sempre uma posição-sujeito que se inscreve numa formação ideológica. É desse
lugar que o sujeito significa, faz seu
dizer significar. Portanto, ao nos perguntar sobre o que significa uma
palavra – por exemplo, a palavra GOLPE, que tem sido proferida em uníssono pela
militância petista e simpatizantes -, devemos atentar para o uso dela,
considerando-o como um acontecimento no qual estão envolvidos sujeitos sociais
partidários ou simpatizantes de uma orientação político-ideológica determinada.
Os sentidos não se esgotam no imediato. Todo
dizer tem uma história. As palavras fazem sentido de modo diferente para
sujeitos sociais diferentes.
Nesses tempos de
incertezas, receios, alvoroços discursivos, é necessário não se deixar fisgar
pela ilusão da evidência do sentido, ou seja, pela crença ilusória de que o
sentido já está sempre lá. O sentido das palavras é sempre uma relação
determinada com o sujeito, o qual é afetado pela língua, e com a história.
Insisto, mesmo correndo o risco de ser redundante, que o sentido não está no
dizer em si mesmo, nem é no dizer que o sentido é de esquerda ou de direita.
Tampouco devemos remeter o sentido às intenções do enunciador. A determinação
do sentido depende da remissão dele às condições de produção. Não se trata,
propriamente, de apreender o sentido, mas de compreender os processos
sócio-históricos de sua produção, compreender como as palavras, o discurso fazem sentido. Para tanto, é necessário estabelecer as relações do sentido com sua
memória discursiva (o interdiscurso), bem como com sua formação discursiva. Os
sentidos não se acham nas palavras; mas estão aquém e além delas.
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