sexta-feira, 4 de março de 2016

"Não construamos nossa vida sobre certezas. E não construamos porque não as temos, e não somos tão covardes para inventar-nos certezas estáveis e definitivas (Cioran)

       
        


           A filosofia como destino

     “Amadurecer é se aproximar da morte e sentir a insignificância de tudo”
(Pondé)


O texto que, doravante, reclamará do leitor uma interpretação é uma tentativa de fornecer uma resposta à questão: como elucidar a significatividade existencial da filosofia tendo em vista aqueles que, sem dispor de qualquer conhecimento do que trata a filosofia, rejeita-a como um saber inútil[1] e desnecessário? Ao compor este texto, não estou, de modo algum, preocupado em despertar naqueles que vivem apartados da filosofia algum interesse por ela, porque simplesmente não creio que um tal fim  seja factível. Por conseguinte, a tentativa de demonstrar a significatividade existencial da filosofia estriba-se nos seguintes pressupostos, os quais demarcam, necessariamente, os limites do terreno de minha argumentação.[2]

pp.1. O exercício da filosofia ou é uma necessidade para qual nos sentimos arrastados ou suprime-se enquanto tal;

pp.2. O que determina nossa inclinação à filosofia é o temperamento;

pp.3. A necessidade de filosofia não se desenvolve por meio de procedimentos formais de ensino.

Do pressuposto 1, depreende-se que ninguém escolhe dedicar-se ao exercício da filosofia; tal exercício ou é percebido como uma necessidade para a qual nos sentimos fisiologicamente arrastados ou permanecerá uma atividade estranha e inacessível a nós. Do pressuposto 2, depreende-se que a filosofia é destino, ou seja, nossas experiências pretéritas, especialmente as da primeira infância, responsáveis por moldar o núcleo de nossa personalidade, de nosso temperamento, é que serão determinantes desse gosto imperativo pela filosofia. Nesse caso, aquele que ‘descobre’ em si o anseio de filosofia não carece de justificar a razão por que se dedica a ela. Ele filosofa pela mesma razão por que um artista pinta seus quadros, um escultor entalha o mármore. Finalmente, do pressuposto 3, deduz-se que o ensino formal de filosofia não torna ninguém um filósofo, isto é, não é capaz de produzir no estudante a necessidade da filosofia. O ensino formal de filosofia pode apenas acentuar essa necessidade, pode (e deve) conduzir o estudante na satisfação dessa necessidade, pode (e deve) guiá-lo no exercício da filosofia, que deverá ser um hábito já incorporado fisiologicamente, não apenas uma prática circunscrita a atender às solicitações da vida acadêmica.


1. Do que trata a filosofia?

Quem quer que abra um livro de sociologia pode esperar que se lhe seja oferecida, logo de início, uma definição do objeto de estudo dessa área do saber humano. Se o livro estampar na capa o título Introdução à Sociologia, esse leitor poderá esperar que, além da apresentação da definição de seu objeto de estudo, se lhe seja apresentado um conjunto de informações sobre os conceitos, os métodos, as teorias e os temas que conformam a investigação sociológica. Em face de um livro dessa natureza, o leitor pode esperar encontrar à disposição dele uma espécie de programa de pesquisa em sociologia. Situação diversa sucede quando o leitor entra em contato com um livro de introdução à filosofia com o intuito de compreender o que, afinal, é a filosofia. Saber o que é filosofia implica, ao menos em parte, saber qual é o objeto de interesse da investigação filosófica (digo em parte, porque a filosofia é uma forma de saber cuja significatividade só se vai apreendendo na experiência do próprio filosofar). A questão o que é filosofia é já uma questão que a própria filosofia se coloca, uma questão com a qual o estudioso de filosofia e o próprio filósofo devem se confrontar. É claro que podemos encontrar (e encontramos), em livros do tipo Introdução à filosofia, uma definição do que é filosofia. No entanto – devemos notar -, essa definição não é dada de início para ser, posteriormente, elucidada mediante a incursão na história do pensamento filosófico. Se assim fosse, estar-se-ia pressupondo que todos os filósofos estão de acordo no que tange à definição de filosofia. Não há uma única maneira de definir a filosofia. É claro que a filosofia tem uma história, tem seus precursores e, portanto, pode-se mapear, na história do desenvolvimento do pensamento filosófico, uma compreensão do que é a filosofia. Começo, pois, aludindo, muito brevemente, à história da filosofia, a fim de dar a saber os dois macrotemas da filosofia. Vejamos, então.
 A filosofia começou na Grécia entre os séculos VI e V AEC. Ela surge e se desenvolve como cosmologia. Os primeiros filósofos estavam interessados em investigar as primeiras causas ou princípios do Todo, do Cosmo. Porque interessada nas primeiras causas ou princípios da Totalidade (do Universo), a filosofia começa como metafísica. Sendo, originalmente, metafísica, a filosofia se desenvolve como uma investigação radical da totalidade do real, com vistas a determinar o princípio primeiro ou derradeiro de tudo que há. Com Sócrates, opera-se uma mudança na orientação da investigação filosófica. Se os primeiros filósofos, também chamados de físicos, estavam interessados na investigação da phýsis, isto é, do fundo originário e inesgotável donde surge a totalidade cósmica e para a qual retornam todas as coisas[3], Sócrates volta-se para a compreensão de quem é o homem; e as questões que o interessavam diziam respeito ao modo como o homem deveria viver na pólis. Sócrates preocupou-se em formular questões atinentes ao domínio ético-moral da vida humana. Essa mudança na orientação da investigação filosófica não significou o desinteresse pela metafísica. A metafísica continuou com Platão, discípulo de Sócrates e primeiro grande sistematizador da metafísica, e encontrou longevidade na história da filosofia até sofrer um duro golpe com as marteladas de Nietzsche. Não estou interessado em discorrer sobre o desenvolvimento do pensamento filosófico, muito embora, conforme se vê, ao tentar elucidar aquilo de que trata a filosofia, seja difícil não fazer alguma consideração sobre alguns momentos do desenvolvimento do fazer filosófico, que melhor contribuem para tornar possível tal esclarecimento.
O que nos ensina a experiência original da filosofia é que a filosofia privilegia dois objetos de investigação, a saber, o Todo (o Cosmo) e o homem. A investigação sobre as primeiras causas ou princípios do Todo supõe a experiência do espanto em face do ‘haver’, da ‘Primeira Hora’ em que o Mundo vai-se iluminando, passando a existir por ocasião do aparecimento do Homem, pois que só há mundo porque há homem. Em suma, a filosofia nascente se ocupa do problema do Ser. O fato de que há mundo e de que estamos lançados no mundo em meio a outras coisas existentes era um acontecimento espantoso para os antigos! (pelo menos, deveria continuar a sê-lo para aqueles que rejeitam as explicações religiosas). A filosofia começa como meditação sobre o Ser. O que é o Ser? Essa é, provavelmente, a palavra mais esvaziada semanticamente que existe, a ponto de Hegel identificar o ser com o nada. Mas o Ser, tal como pensado em Parmênides, é o princípio (arkhé). Se nossa experiência sensível nos permite dizer que todas as coisas que existem são mutáveis, aparecem e desaparecem, tudo está em um fluxo constante, tudo muda, se transforma; se tudo que é tende a transformar-se em seu contrário, como explicar que a mudança incessante de todas as coisas não culmine com a perda da identidade de cada ente, como explicar que ainda haja algo, ou seja, que a mudança incessante de todas as coisas não culmine com o nada? É necessário que haja um princípio inultrapassável, eterno; um princípio que seja condição de possibilidade do devir, que seja o suporte do devir; afinal, é necessário que aquilo que muda seja algo (que tenha essência), e é necessário que, se, no aparecer, há mudança incessante de todas as coisas, se o que é num momento deixa de ser em seguida para ser o diverso do que era, é necessário - repito - que haja algo que permaneça idêntico a si mesmo, que seja imutável, que não nasça nem pereça, que preserve a identidade fixa de todas as coisas. Esse "algo" ou  princípio é o Ser, além do qual nada pode ser dito ou pensado, senão que é. A multiplicidade, a mudança, em suma, o processo de transformação de todas as coisas, que é o vir-a-ser - o devir - situa-se no nível da aparência, da ilusão (para Parmênides).  O Ser é condição de possibilidade para se pensar o ente. A verdade é o Ser. O ser é o real em seu sentido mais fundamental. O ser é imutável; é o real em seu sentido fundamental e abstrato. O Ser parmenidiano é o absoluto pleno, o presente eterno, imutável, indestrutível, uno e necessário. Parmênides foi responsável por estabelecer a identidade entre ser e pensar: “o ser e o pensar é o mesmo”. O ser é e pode ser pensado e dito. O não-ser não é e não pode ser pensado e/ou dito. A metafísica clássica, pela pena de Parmênides, sustentará que o pensamento é a própria manifestação do ser. O pensamento é íntimo do ser; o pensamento se dá no interior do ser. Por seu turno, o ser mesmo manifesto é o pensamento, de modo que o ser do pensamento e o pensamento do ser são inseparáveis. Parmênides não afirmou apenas que só podemos pensar e dizer o que existe (o que é) e que não podemos pensar e dizer o que não existe; ele foi além, e manteve que o que é pensável e dizível existe necessariamente e o que não é pensável e dizível não existe. Tal é a identidade que constitui o cerne da ontologia parmenidiana.
Sem pretender me estender sobre esta matéria, gostaria de insistir, contudo, que o Ser de que trata a metafísica de Parmênides não é este ente (singular) diante de mim (esta cadeira em que me sento, esta girafa ou aquela árvore frondosa, etc), mas a condição de possibilidade de aparecimento dos entes, de mim mesmo, enquanto ente humano; enfim, da totalidade do que existe. Este Ser subjaz a todas as coisas singulares que se dão à experiência sensível; ele é fundante, ele instaura o horizonte de possibilidade do aparecimento de todas as coisas.[4]
O existencialismo – e aqui considerarei, de passagem, a contribuição de Sartre, seguindo Heidegger - nos despertará para a significatividade profunda da experiência do ser. A náusea de que trata Sartre é o sentimento que experimenta o homem ao dar-se conta de seu abandono no mundo. O homem não encontra em si o fundamento de seu ser. Ele está lançado no mundo sem qualquer razão e seu destino é a morte inevitável[5]. O fato de o homem, sem nenhuma razão, encontrar-se no mundo em meio às outras coisas (ele se apercebe como existente entre outras coisas que simplesmente são), o fato de dar-se conta de que sua existência não é necessária, de que, não sendo nada antes de existir, é unicamente liberdade para ser enquanto existente que precisa edificar-se sobre um fundo de nada, torna o acontecimento do ser seu grande fardo e fonte de profunda angústia.  O existencialismo, na medida em que se ocupa do homem concreto, do homem como ser-no-mundo, como ente que precisa realizar-se a si mesmo enquanto existente, tem predileção pelo tema da finitude humana. Mas o que é a finitude no existencialismo? Trata-se do sentimento subjetivo da finitude, isto é, da contingência radical do ser humano. Contingência é o oposto de necessidade. Se, por necessidade, em filosofia, entende-se aquilo que não pode ser de outro modo, que não pode ser diferente do que é, a contingência recobre tudo aquilo concebido como podendo ser ou não ser. Sou um ser contingente: quer dizer, minha existência não é necessária, eu poderia não ter nunca existido. No existencialismo, a contingência recobre o caráter daquilo que carece, em si mesmo, de sua própria razão de ser. O ser é, segundo Sartre, sem razão, sem causa, sem necessidade. Contingência original, portanto: tudo está aí e eu sou um ser-aí junto a tudo o mais sem razão de ser. Nada me pôs aqui onde tenho de ser segundo a determinação exclusiva de minha liberdade.  A finitude, como experiência subjetiva, é, portanto, experiência que tem o indivíduo humano dos limites de seu ser – experiência esta impregnada de medo, de angústia. O sentimento da finitude é o sentimento da absurdidade da existência. Quando, em filosofia, se diz que a existência é absurda, quer-se dizer que ela não pode ser racionalmente justificada; quer-se, ademais, dizer que não é possível atribuir um sentido à existência das coisas. Quando, comumente, nos perguntamos se a existência tem sentido, estamos preocupados com a ameaça do caráter absurdo da existência. A expressão “sentido da vida” supõe um salto metafísico, pois que o sentido que buscamos determinar não é o sentido humanamente constituído. Está claro que os homens estão condenados a construir sentidos. A cultura é justamente esta rede de significados à qual se prendem as vivências do homem. Ao viver, o homem busca dotar cada ato que pratica de algum sentido. A linguagem está a serviço da constituição de experiências que se organizam numa estrutura dotada de sentido. Mas essa estrutura de sentido que sustenta a existência humana é tão frágil quanto o próprio construtor. Não raro, ela sofre abalos, podendo, inclusive, em circunstâncias de profunda dor e sofrimento, ruir. Nós sabemos que essa estrutura de sentido que dá sustentabilidade a nossa existência carece de um fundamento, isto é, de uma justificativa racional, uma razão de ser. Mas muitos desejam que exista tal fundamento (muitos o tomam como Deus), tal em-si que, por definição, não é suscetível às vicissitudes do Tempo, dos cataclismos existenciais que nos expõem à fragilidade de nossos corpos, à precariedade de nossa existência. Assim, se a vida tem sentido, esse sentido é concebido como originário da ordem da transcendência, deve ser doado por uma instância infinitamente superior e absoluta. Portanto, na expressão “sentido da vida”, não se quer dizer o sentido do qual o homem dota sua própria existência para não sucumbir ao desespero, à loucura ou não cometer suicídio. O sentido que se busca deve ele mesmo nos transcender, ser heterodeterminado; ser, pois, um sentido metafísico. A experiência da deterioração da rede de sentido e amparo de nossa existência pode ser exemplificada na depressão. Segundo a psicanalista Maria Rita Kelh,

 A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do “amor”, trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles. “A depressão é uma imperfeição do amor”, escreve Andrew Solomon, autor de “O demônio do meio-dia”, vasto tratado sobre a depressão publicado nos Estados Unidos e traduzido no Brasil no final de 2002. Faz sentido, se considerarmos o sentido mais amplo da palavra amor.


Já me referi à experiência do espanto. Convém, agora, me deter um pouco mais na tentativa de esclarecê-la. A filosofia começa no espanto. O que é essa experiência do espantar-se que está na origem do filosofar? Ela é aquilo que o homem sente ao dar-se conta de que o real se lhe apresenta em desacordo com as suas expectativas. Seu espanto, sua admiração é decorrência do fato de que, ao se debruçar sobre a realidade, ao buscar examiná-la, as coisas com as quais crê estar familiarizado se lhe apresentam diferentes, donde o estranhamento que experimenta. É porque a realidade constitui um problema para o homem – e unicamente para ele – que ela desperta nele o desejo de examiná-la. A filosofia, assim, é um esforço por conhecer radicalmente a realidade. Conhecer radicalmente é ir às raízes da problematicidade do real. A filosofia surge no hiato ontológico que há entre o homem e a Natureza. Se a Natureza satisfizesse todas as necessidades do homem, ele não sentiria necessidade de interrogá-la. Mas ocorre que a realidade tem uma falha: ela não assegura a plena integração do homem a ela mesma. O homem é excesso em relação ao mundo. A realidade falha no que toca às expectativas fundamentais do homem. O homem, estranhamente, quer buscar os porquês das coisas, as causas últimas que fazem as coisas serem o que são. Embora produzido pela natureza, o homem é um ente desnaturado: sua existência se caracteriza por um arrancamento em relação ao seu equipamento biológico. O homem é um ente que, ao ser produzido pela natureza, volta-se contra ela e produz cultura.   O homem surge no mundo num Silêncio original sobre quem é e sabe (embora não assuma) que será absorvido por um mesmo Silêncio derradeiro. Enquanto existe num intervalo que o separa da absorção no Silêncio derradeiro, o homem sente a necessidade de interrogar o sentido (se há algum) desse espantoso acontecimento que é seu aparecimento no Tempo, que constitui um ínfimo episódio entre duas infinidades.
Não se pode crer que a filosofia esteja apartada da vida. Decerto, a filosofia não é o mesmo que viver, se por viver entendermos o ocupar-se da lida cotidiana. Mas a filosofia, como nota Sponville, é “a vida tentando se pensar”[6]. É forçoso esclarecer esse ponto. A filosofia como vida que se esforça por se pensar supõe que aquele que vive dedicando-se a pensar a vida filosoficamente precisa, como condição de possibilidade do próprio filosofar, distanciar-se da vida. Fogel, a propósito, nos mostra que a experiência do “viver chapado” inviabiliza o exercício da filosofia. Incapazes de situar-se nesse lugar de distância em relação ao viver comum, ao viver da cotidianidade, algumas pessoas, absorvidas nesse “viver chapado”, simplesmente não sentem a necessidade da filosofia e nem podem senti-lo porque incapazes da experiência do olhar em profundidade as coisas. Nas palavras de Fogel, devemos, então, reconhecer que:


“Estou vivendo” é sinônimo de: estou “correndo atrás”, “estou ralando”, ou seja, sou e estou todo preocupações e azáfamas, todo correrias e agitos, de tal modo que não parece haver distância entre mim e as coisas, entre mim e o mundo – enfim, entre mim e o próprio viver, uma vez que, na correria, parece que estamos diluídos nas próprias coisas, confundidos com elas, inteira e absolutamente misturados com o próprio viver. Está-se como que chapado, colado às coisas de modo que nada se vê, nada se pode ver, pois não há a necessária distância! Portanto, o afastamento em questão é a distância necessária entre mim e as coisas, entre mim e o próprio viver, para que estes apareçam, se façam visíveis.[7] (ênfases minhas).


Pôr-se à distância é desafogar-se da cotidianidade, do viver atribulado; é experienciar a solidão das alturas, dos lugares desérticos que protegem nosso pensamento contra os balbucios corriqueiros, contra a avalanche de palavrório que perturba a hora do olhar. A necessária distância em relação ao viver é que torna possível, segundo Fogel, ver o visível. De outro modo, não vejo; não posso ver aquilo que está demasiado próximo: “com a cara colada à parede, jamais vejo a parede; com lápis chapado no meu nariz, jamais vejo o lápis” (Fogel, 2009, p. 92).
Até aqui, vim esforçando-me por determinar o objeto de interesse da filosofia; também chamei atenção para as condições de possibilidade do próprio filosofar. No entanto, cumpre ainda apresentar o que é a filosofia. Antes de mais nada, a filosofia não é ou não deve ser experienciada como uma disciplina. Ela pode até apresentar-se, na universidade, na escola, como uma disciplina (entre outras) que compõem o currículo. Mas aquele que está pré-disposto à filosofia deve experienciá-la como exercício existencial. Não se faz filosofia, como se ela fosse um produto resultante de um trabalho; ela é o próprio trabalho que se cumpre fazer; exercita-se a filosofia. A filosofia é uma experiência que se vive como integrante da dinâmica psicofisiológica do experienciador. A filosofia é uma atividade, uma prática, um exercício, um esforço que se realiza, necessariamente pela produção de discursos, e cujo fim é cunhar modos próprios de ser. Sigo de perto Hadot (2014)[8] e assumo que não só a filosofia antiga, mas a filosofia tem como fim a transformação, a metamorfose da personalidade, da afetividade e da imaginação, do modo como aquele que a ela se dedica se relaciona com, sente o mundo. A filosofia é, sobretudo, exercício existencial, a saber, um processo contínuo de submissão da problematicidade da existência ao pensamento reflexivo. Como exercício existencial, a filosofia também orienta-nos a viver consciente e livremente. A filosofia destina-se a cunhar modos de ser, enriquecendo nossa vida interior, contribuindo - como quer Ferry e como creio residir aí também seu valor -, para nos livrar das angústias provocadas pela consciência de nossa própria morte inevitável.
A fonte mais profunda de toda reflexão filosófica é, em uma palavra, a finitude humana, a saber, está no fato de que o homem, lançado no mundo sem razão, sabe, no entanto, que sua vida chegará ao fim. A consciência de que seu tempo é contado, de que não é o fundamento de sua existência, de que sua irrupção no ser ou no devir do mundo instaura o começo de seu fim inevitável é, em suma, o que arrasta alguns homens e mulheres para a filosofia. Assim, assinala Ferry,

Filosofar, mais que acreditar é, no fundo – pelo menos do ponto de vista dos filósofos (...), preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço.[9]



1.2. Aspectos formais do exercício filosófico

filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber.
                                                                                  
                                                                                                                                Sponville.


A exposição que venho fazendo da significatividade existencial da filosofia é a maneira como eu experiencio a filosofia. Não apresento, portanto, a única maneira de entender e viver a filosofia. É preciso que isso fique bem claro. No enquadramento interpretativo à luz do qual apresento a filosofia, está, portanto, pressuposta a concepção de filosofia como uma maneira de viver. Nesta seção, considerarei os aspectos formais do exercício filosófico, ou seja, serão apresentados os aspectos que tornam a filosofia um modo específico de pensar.
Não obstante eu ter esclarecido os dois objetos fundamentais da filosofia – o Todo e o homem -, não são os objetos que a definem, mas o modo como ela os aborda. A abordagem filosófica se caracteriza por uma radicalidade que se abre para o questionamento. A prática filosófica se orienta pela exigência de racionalidade, pela busca de uma explicação primeira ou derradeira. Nas palavras de Sponville, que são lembradas aqui sem pretensão de que elas esgotem tudo que se pode dizer a respeito do que é a filosofia, devemos reter que a filosofia


“(...) é uma prática teórica (discursiva, razoável, conceitual), mas não científica; ela se submete unicamente à razão e à experiência – com exclusão de toda revelação de origem transcendente ou sobrenatural – e visa menos a conhecer do que pensar e questionar, menos a aumentar nosso saber do que a refletir sobre aquilo que sabemos ou ignoramos. Seus objetos de predileção são o Todo e o homem. Seu alvo, que pode variar segundo as épocas e os indivíduos, será com mais frequência a felicidade, a liberdade ou a verdade, e mesmo a conjunção das três (a sabedoria) (...)”[10].


Dispensemos atenção ao excerto referido acima. De início, diz-se que a filosofia é uma prática teórica, o que supõe ser uma prática que se realiza através de discursos, com exigência de razoabilidade e interessada na criação de conceitos. Ser uma prática de criação de conceitos é, sem dúvida, uma dimensão do exercício filosófico. Para Deleuze, criar conceitos é uma função importante da filosofia[11]. Atentando ainda para o que se segue a essa compreensão da natureza da filosofia, no fragmento citado, observamos que se diz que a filosofia não tem caráter científico. Ela não uma ciência (no sentido moderno do termo), porque não é demonstrável (diferentemente da matemática), nem pode ser refutada empiricamente (como sucede com as ciências experimentais). O fato de a filosofia não ser uma ciência torna sua pretensão de alcançar uma verdade objetiva bastante problemática. Não sendo mais “a rainha das ciências”, como era vista no passado, a filosofia não deixa, por isso, de contribuir com as ciências. Tendo em vista sua relação com as ciências, a filosofia – na forma de filosofia da ciência – se preocupa em analisá-las, conceituá-las, definir seu papel social, político e econômico, bem como em dar a conhecer os interesses a que elas se prendem.  A filosofia da ciência visa a analisar a especificidade do conhecimento científico, indagando sobre sua origem, sua história, seu valor cultural, seus procedimentos metodológicos de verificação, de justificação, de validação, buscando sempre questionar os critérios de cientificidade que variam segundo o tipo de ciência e as abordagens teóricas adotadas.
Outro aspecto importante da prática filosófica, que não pode ser ignorado, na consideração que dela faz Sponville, reside na submissão dela à razão e à experiência “com exclusão de toda revelação de origem transcendente ou sobrenatural”. Está claro, portanto, que a filosofia também se distancia da religião. Desde os gregos, a filosofia nasce em ruptura com a religião e a mitologia; com o advento do cristianismo e com a apropriação que fazem dela os doutores da Igreja, a filosofia põe-se a serviço da fundamentação do pensamento cristão. Desde a antiguidade cristã, passando pela Idade Média e alcançando a Modernidade, a relação entre filosofia grega e pensamento cristão foi marcada por uma tensão. Foi somente com o Iluminismo (séc. XVIII) que se impôs a necessidade de fazer da filosofia novamente uma ciência rigorosa, afastando-a da religião cristã.  Mormente com a crítica corrosiva de Nietzsche, a filosofia expulsa de seu domínio as especulações extravagantes da metafísica. Não se deve daí concluir que a filosofia não se preocupa com o exame da religião; ao contrário, a filosofia é uma investigação sobre os fundamentos da religião; portanto, interessa-se pelas causas, as origens e as formas das crenças religiosas. Cumpre ainda notar que a filosofia, segundo podemos ver no excerto supracitado, é uma atividade que visa mais à reflexão sobre o que sabemos ou ignoramos do que à ampliação de nosso saber. Pensar e questionar são atividades que caracterizam de maneira especial o exercício filosófico.
Vamos considerar, mais acuradamente, três importantes práticas que constituem a atividade filosófica: a análise, a reflexão e a crítica. Vimos que a filosofia, originalmente, começa na experiência do espanto, da admiração. Devemos agora ajuntar que a filosofia, enquanto modo de pensar, assenta numa atitude que lhe é própria. Podemos chamá-la atitude filosófica. A atitude filosófica consiste na decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, os fatos, as ideias, os valores que permeiam nossas vivências cotidianas. Essa atitude filosófica incita-nos a nos colocar num lugar de suspeita, de recusa a aceitar, sem questionamento, tudo que se pensa, se diz, se acredita, bem como os modos como se estabelecem os comportamentos humanos. A atitude filosófica abarca as questões: o que é? para que é? como é? por que é? e tem como escopo de seu interesse o mundo e os homens em suas relações no mundo.
A filosofia também envolve uma forma de reflexão que lhe é própria. Denominemo-la de reflexão filosófica. O pensamento reflexivo é o pensamento que se volta sobre si mesmo, sobre o conteúdo pensado. A reflexão filosófica se ocupa, como haveria de se esperar, dos seres humanos, mas na condição de seres pensantes. As questões que a reflexão filosófica se coloca dizem respeito à capacidade e à finalidade de conhecer, pensar e agir, que são próprias dos seres humanos. A reflexão filosófica busca, então, responder às seguintes questões: 1) quais são os motivos, as razões, as causas do que dizemos, pensamos e fazemos?; 2) qual é o sentido do que dizemos, pensamos e fazemos?; 3) qual é a finalidade do que dizemos, pensamos e fazemos?
A análise, a reflexão e a crítica constituem momentos que, articulados entre si, atravessam todo o processo de constituição do trabalho filosófico. Analisar significar “dividir o todo em suas partes constitutivas”, “separar”. Dada a complexidade de um objeto de estudo, é necessário submetê-lo à análise, procedimento pelo qual a complexidade é decomposta em seus elementos constitutivos, em partes mais simples, de modo a facilitar a compreensão. A análise permite que compreendamos como um objeto se estrutura, isto é, como suas partes se organizam, se articulam para compor a totalidade do objeto. A análise não é, evidentemente, uma prática específica da filosofia; ela perpassa um vasto campo de saberes humanos. Em Linguística, por exemplo, a prática de análise constitui uma atividade fundamental para a compreensão dos modos como a língua se organiza para a produção de sentidos. O leitor deve lembrar suas aulas de análise sintática e de análise morfológica, quando lhe era solicitado que decompusesse as frases e as palavras a fim de compreender o significado e o funcionamento de suas partes. A reflexão, na medida em que é a volta do pensamento sobre si mesmo, toma o próprio pensamento para objeto do pensar. A reflexão é pensamento sobre as representações mentais produzidas na atividade do pensamento elaborador. Refletir é um trabalho do pensamento sobre o próprio pensamento, sobre o já pensado. Trata-se de um processo cognitivo, através do qual o que é produto do pensamento – o conhecimento, a saber, a representação conceitual da realidade na consciência humana – é tomado para objeto de conhecimento. A filosofia, pela reflexão, é conhecimento do conhecimento. O pensamento reflexivo, que caracteriza a prática filosófica, é o processo pelo qual o pensamento se apropria do conteúdo pensado, pensa o próprio pensamento, donde a importância de distinguir entre o “pensamento elaborador”, o qual é a atividade mental pela qual as feições do real se convertem em conceitos na consciência humana, e o pensamento reflexivo, atividade mental ou cognitiva através da qual se pensa o conteúdo que resulta da atividade do pensamento elaborador, ou seja, a representação conceitual das ocorrências da realidade.
Finalmente, a crítica ou o exame crítico não deve significar, no quadro da investigação filosófica, o que significa em outras formações discursivas constitutivas do senso comum. A palavra “crítica” não deve significar, portanto, “reclamar de”, “apontar os defeitos”. Ela recobre a capacidade de julgar, de discernir corretamente. Crítica é exame racional das coisas sem preconceito e prejulgamento. Criticar é avaliar, examinar minuciosamente uma ideia, um acontecimento, um valor, um costume, um comportamento, uma obra de arte ou científica, um texto. Quando se elabora a crítica, busca-se, portanto, examinar, avaliar, julgar os princípios, as causas, as condições de alguma coisa que se põe como objeto de investigação. A crítica visa a determinar os princípios, as causas, as condições, as mudanças e o sentido de um comportamento, de um acontecimento, de um ideia, de um costume, etc.
Deve-se sublinhar que um dos mais importantes benefícios da filosofia consiste em ser ela um trabalho de desmistificação. Sendo um trabalho de desmistificação, a filosofia possibilita àqueles que para ela se voltam se desilusionar tanto quanto possível. Devemos, no entanto, evitar a conclusão de que o desilusionar-se seja a erradicação de toda ilusão, já que, consoante nota bem Sponville (1997: p. 177), “não podemos viver sem ilusões”. Mas “podemos pensar  sem mistificações”. A mistificação é ilusão sobre nossas ilusões. Quer definamos a ilusão como ‘estado de engano’, ‘distorção da percepção da realidade’, quer a compreendamos como Freud, a saber, primazia do desejo sobre a realidade, de modo que, na ilusão, o homem forma uma imagem da realidade da qual elimina os traços desagradáveis, substituindo-os por outros conformes ao seu desejo, a ilusão impede que o homem encare a realidade tal como é. O homem mistificado é duplamente iludido: ele não só tem ilusões sobre a realidade, ou seja, não só forma imagens que distorcem a realidade; mas também crê reais as suas ilusões, tomam-nas como se fossem a própria realidade. Porque crê que suas ilusões constituem a realidade, tem ilusão sobre suas ilusões. Desmistificar-se, portanto, não é erradicar as ilusões – já que não se consegue viver sem ilusões -, mas reconhecê-las, pensá-las como ilusões. Aquele que se desmistificou sabe que tem algumas ilusões; ao saber que as tem, não mais se engana com relação a elas. Ele sabe que tem certas ilusões e que elas são ilusões e devem ser encaradas como tais, e não serem tomadas como “a realidade”.
Gostaria de pôr termo a esta seção acrescentando que a filosofia é um trabalho intelectual sistemático. Compreendamos o que significa as três palavras que entram a fazer parte desse sintagma. A filosofia é trabalho, já que, como todo trabalho, produz alguma coisa. O que produz o trabalho filosófico são ideias, conceitos. A filosofia é trabalho intelectual, porquanto se realiza pelo intelecto ou razão. Esse trabalho intelectual é sistemático, já que opera com enunciados precisos e rigorosos e busca encadeá-los logicamente. Entende-se por sistema uma totalidade cujas partes se relacionam entre si de modo coerente. Na Linguística, por exemplo, assume-se que a língua é um sistema de signos, o que significa dizer que é um conjunto de signos que se relacionam entre si reciprocamente. No sistema, todos os componentes estão interligados. Quando falamos em sistema filosófico, queremos dizer que se trata de um conjunto de ideias que se articulam entre si segundo princípios ou regras da argumentação e da demonstração que as ordenam num todo coerente. O sistema filosófico é uma totalidade organizada de ideias governada por princípios ou regras de argumentação e demonstração. A filosofia enquanto trabalho intelectual sistemático não se limita a obter as respostas para as questões suscitadas, além disso exige a adequada formulação das questões. Exige também – não poderíamos deixar de notar – que as respostas sejam verdadeiras e que se articulem umas às outras, compondo conjuntos coerentes de ideias e significados, que sejam suscetíveis de demonstração racional.
A filosofia, em suma, é uma atividade intelectual que exige provas e justificações racionais. E racional diz-se daquilo que foi argumentado, debatido e compreendido. Só podemos falar em compreensão racional, se no processo de argumentação e de debate, estamos interessados em conhecer  as condições e os pressupostos de nossos pensamentos e dos interlocutores. Racional significa obedecer a certas regras de coerência de pensamento, a fim de que um argumento ou debate faça sentido para os outros. Só é racional o processo de argumentação e debate que encaminhe conclusões que podem ser compreendidas e aceitas pelos interactantes.
Deixo ao leitor a tarefa de meditar sobre o valor da filosofia, tão bem ressaltado por Bertrand Russel, em Os problemas da filosofia (2008, p. 216-217). Que o leitor não ignore que a vida filosófica é a mais elevada conquista da humanidade no homem. A vida filosófica não é uma gratuidade ao alcance do homem, mesmo ao daquele que se percebe naturalmente propenso a ela; a vida filosófica precisa ser conquista, apropriada, incorporada à sensibilidade, tornando-se, assim, a musculatura da dinâmica existencial. Quem vive uma vida filosófica encontra-se na escalada (terrificante) da Lucidez.


Devemos procurar o valor da filosofia, de fato, em grande medida na sua própria incerteza. O homem sem rudimentos para a filosofia passa pela vida preso a preconceitos derivados do senso comum, a crenças costumeiras da sua época ou da sua nação, e a convicções que cresceram na sua mente sem cooperação ou o consentimento da sua razão deliberativa. Para tal homem o mundo tende a tornar-se definitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não levantam questões, e as possibilidades incomuns são rejeitadas com desdém. Pelo contrário, mal começamos a filosofar, descobrimos (...) que mesmo as coisas mais quotidianas levam a problemas aos quais só se podem dar respostas muito incompletas. A filosofia, apesar de não poder dizer-nos com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, apesar de diminuir a nossa sensação de certeza quanto ao que as coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento quanto ao que podem ser; remove o dogmatismo algo arrogante de quem nunca viajou pela região da dúvida libertadora, e mantém vivo o nosso sentido de admiração ao mostrar coisas comuns a uma luz incomum.”



2. A vida como destino de Dor

O título desta seção foi tomado a Gilvan Fogel, em seu O que é filosofia (2009). Naturalmente, esse título carece de esclarecimento, e uma parte desta seção será reservada para a realização dessa tarefa. Faz-se mister, no entanto, demarcar o quadro interpretativo à luz do qual o problema da dor e do sofrimento[12] será por mim considerado como a condição de abertura para a inclinação ao exercício filosófico. Esse problema está, como facilmente se vê, intimamente ligado ao problema da finitude humana, mas ele deve ser encarado como um problema mais amplo, visto que a dor e o sofrimento afetam não só o homem, mas também os animais não-humanos sencientes. Se, como sustentou Freud, a dinâmica da vida consiste em sua primordial tendência para a morte ou para o estado inorgânico, essa propensão da vida para a morte se realiza por meio de um processo ininterrupto de destruição dos organismos, quer por predadores, quer por cataclismos, quer por doenças que lhes crescem e os arruínam desde o interior de seus corpos.
A fim de desenvolver minhas reflexões sobre a dor e o sofrimento como modos do acontecimento da dinâmica existencial, assumirei como axioma a proposição segundo a qual o mundo natural se constitui pela luta sem trégua entre as pulsões de vida e de morte. A visão esplendorosa da natureza, que nos enche o espírito de beleza e fascínio, não deve obinubilar o terrificante espetáculo de carnificina que faz da vida um processo incessante de exploração e destruição de seres vivos. Evidentemente, a vida não é só destruição; é também criação e geração; mas o criador é também destruidor, de sorte que, ao contemplar o modo como se constitui o movimento natural da vida, não devemos perder de vista a luta incessante entre as forças criadoras e as forças destrutivas que conformam o tecido vital.
Mas, devemo-nos prevenir contra uma compreensão da natureza como inerentemente má (tal modo de avaliá-la é um sintoma de ressentimento, que o exercício da filosofia tratará de combater). A natureza é amoral; não podemos submetê-la aos padrões de julgamento da moral, e por uma simples razão: a normatividade da moral supõe a capacidade de ação de agentes racionais, livres e responsáveis. A natureza, em sua dinâmica de autogestão, é desprovida de racionalidade, de liberdade, responsabilidade e finalidade última. Assim, a rejeição ou aniquilação de seres congenitamente fracassados  observada nas muitas espécies de animais é expressão de um “código” que, inscrito na estrutura genética deles, orienta o comportamento dos membros das  espécies para a preservação daqueles que estão naturalmente mais aptos para a reprodução de sua espécie. O mundo natural parece exibir, é verdade, uma inocência da crueldade, mas, porque todo inocência, não pode ser julgado e condenado. Julgam-se e, se for o caso, condenam-se, isto sim, as crenças errôneas e prejudiciais que o homem produz e dissemina sobre o modo de funcionamento do real.
Todo ser humano é o seu corpo. Ser um corpo tem um alto custo, qual seja, estar, necessariamente, entregue à dinâmica vital que se constitui pela luta incessante entre as forças criadoras e destrutivas. O fato de eu ser o meu corpo me expõe aos efeitos dessas forças. Sendo um corpo, estou destinado à suscetibilidade à dor e ao sofrimento como consequência necessária do modus operandi das pulsões de morte. A concepção de vida como dinâmica constituída pela luta entre Eros e Tânatos, entre pulsão de vida e pulsão de morte (que, neste texto, assumo como pressuposto, com o intento de desenvolvê-lo e dilucidá-lo noutra oportunidade)[13] afina-se com a compreensão de que não há direção nem finalidade no processo de seleção natural. A evolução darwiniana é um longo e contínuo processo que envolve tentativas e erros e muito desperdício (visto que o número de indivíduos de uma espécie que nasce é muito maior do que o número daqueles que conseguirão sobreviver para procriar com sucesso), através do qual um ancestral comum aos seres vivos vai sofrendo modificações pela aquisição de caracteres hereditários. Não sendo dirigida por nenhum Designer Inteligente, sendo, ao contrário um processo cego e sem finalidade, a evolução deixa pelo caminho produtos anômalos, indivíduos malogrados que, incapazes de produzir descendentes, virão a se transformar, num lapso de tempo curto, em “lixo genético”.
As forças destinadas a conservar a vida estão constantemente ameaçadas pelo poder das forças que atuam no sentido de sua destruição. Assim, por exemplo, as abelhas melíferas são acometidas de uma doença infecciosa, chamada “cria pútrida”, que ataca as larvas dentro dos alvéolos. As abelhas, em contrapartida, precisam encontrar o alvéolo de cada larva doente, remover a cera que o protege, retirar a larva, expulsá-la da colmeia, lançando-a para junto aos detritos.
Vida é, pois, competição e luta pela sobrevivência. Em seu famoso livro O Gene egoísta (2007: 138), endossando a visão de que cada indivíduo de uma espécie é uma máquina egoísta, programada pela seleção natural, para fazer o que for possível para beneficiar o conjunto de seus genes, Dawkins descreve como se desenvolve a agressividade em um contexto de competição e luta pela sobrevivência.


“Para uma máquina de sobrevivência, outra máquina de sobrevivência (que não seja o próprio filho ou outro parente próximo) é parte do seu meio ambiente, tal como uma rocha ou um rio ou um bocado de alimento. É uma coisa que se mete em seu caminho e atrapalha, ou que pode ser explorada. Só difere de uma rocha ou de um rio num aspecto importante: quando agredida, tende a contra-atacar”.


O contra-ataque do organismo agredido, além de ser o recurso espontâneo para evitar ser morto, é também um meio de assegurar o futuro de seus genes. A seleção natural favorece os genes que programam suas máquinas de sobrevivência para fazer o melhor uso possível do meio ambiente. Fazer o melhor uso possível do meio ambiente implica também fazer uso de outras máquinas de sobrevivência, quer elas pertençam à mesma espécie, quer pertençam a espécies diferentes.
Tendemos a crer, não sem alguma razão, que a “morte programada” está inextricavelmente ligada à vida. Certamente, isso é uma verdade que dispensa demonstração. Mas não deixa de surpreender que a definição de vida não pressupõe necessariamente a morte. A morte não apareceu em concomitância com a vida. Muitos organismos unicelulares, embora possam morrer como resultado de algum acidente ou inanição, não são programados para morrer. A inexorabilidade da morte apareceu há um bilhão de anos depois que a vida apareceu, como consequência de sua complexificação. Portanto, foi quando os organismos unicelulares evoluíram para as formas de vida pluricelulares que a morte programada instalou-se no âmago da vida. A reprodução sexuada foi decisiva para o aparecimento da morte programada nos organismos pluricelulares. Há, todavia, duas grandes vantagens, do ponto de vista evolutivo, na relação sexual: 1) ela aumenta a variação genética, possibilitando a adaptação mais rápida das espécies a um ambiente em transformação; 2) ela permite o reparo ou a eliminação de erros genéticos, já que, na reprodução sexuada, há combinação aleatória de genes na descendência. Nesse último caso, se um dos parceiros com um gene defeituoso gerar filhos com um parceiro que não tenha esse gene defeituoso, é mais provável que os filhos sejam compensados pela cópia do gene “saudável”. Mas, se, por acaso, um dos filhos herdar a cópia do gene defeituoso, ele poderá não sobreviver, contribuindo, assim, para a “redução” do número de cópias ruins do gene que se propagariam numa população.
Agora, devemos reter o seguinte. Chama-se senescência ao processo natural de envelhecimento. Trata-se de uma espécie de relógio que marca o tempo que teremos de vida. Quando esse relógio para, nós morremos. Uma das razões por que a reprodução sexuada trouxe como consequência a senescência e a morte programada parece residir no fato de ela ter separado o DNA utilizado para fins reprodutivos do DNA usado para orientar as funções diárias das células. Quando os organismos eucariontes tornaram-se pluricelulares, o DNA reprodutivo não só foi armazenado em núcleos separados, como também foi apropriado por algumas células especiais do corpo de animais e humanos, chamadas células germinativas. Essas células cumprem a função exclusiva de transmitir o DNA na reprodução sexuada de uma geração para a outra. As demais células do corpo – as células somáticas -, conquanto recebam os mesmos conjuntos de DNA cromossomial, ficam encarregadas da realização das funções não reprodutivas e cotidianas do corpo. As células somáticas se reproduzem por fissão simples; não recombinam o DNA com outras células, não fazem sexo. O único fim a que servem as células somáticas é favorecer a sobrevivência e a função das células germinativas, guardiães do DNA.
O DNA transmitido à geração seguinte pelas células germinativas é combinado e misturado com outro DNA. Muitos erros nesse processo poderão ser corrigidos ou alterados. Mas o DNA das células somáticas não é recombinado, de modo que se torna excrescente. Porque excrescente, torna-se também perigoso. E perigoso porque não sofreu a recombinação aleatória que sofre o DNA das células germinativas. Em decorrência disso, o DNA das células somáticas continua a abrigar mutações de incontáveis gerações; esse acúmulo de mutações tornar-se-á lixo genético, que já não servirá mais para governar de modo adequado a célula. Consoante assinala Clark (2006, p. 86), “só as células germinativas conservam o potencial para a imortalidade”.  Esse “potencial para a imortalidade” deve ser atribuído à capacidade que têm elas de se combinar com outras células germinativas, num processo durante o qual continuam se dividindo, gerando uma progênie que, por sua vez, se divide e gera outro organismo pluricelular portador de outro conjunto de células germinativas. Ao final do processo, quando esse novo organismo pluricelular se forma, o relógio da senescência retrocede ao ponto zero. Por outro lado, as células somáticas são programadas para envelhecer e morrer. Uma vez cumprida sua tarefa que consiste em garantir a sobrevivência das células germinativas, elas juntamente com seu DNA excrescente, se tornam desnecessárias.
Todo esse processo se repete também em nosso corpo. Destarte, nas palavras de Clark (2006, p. 86-87):


“Todas as nossas células somáticas envelhecerão e morrerão. O sexo pode salvar nossas células germinativas, mas não pode nos salvar. Com os paramécios e outros eucariontes unicelulares, o organismo pode ser rejuvenescido pelo sexo porque organismo e célula germinativa são sinônimos. Depois que o DNA do organismo (somático) foi separado do DNA reprodutivo do organismo (germinativo), o sexo pode até ter se tornado obrigatório – até desfrutável -, mas não rejuvenescedor. Não para as células somáticas. Nem para nós.” (grifo meu).


O que gerou o DNA excrescente ou extragerminativo foram dois fatos: o impulso para o aumento do tamanho do organismo e o impulso para a pluricelularidade. O sexo encarregou-se de destruir o DNA somático no fim de cada geração. Embora nem todas as células que se reproduziram pelo sexo tenham criado DNA somático, os protoctistas , no processo evolutivo que se seguiu até nós, seres humanos, o criaram. A criação do DNA somático atendia à necessidade de obter mais material genético para dirigir as funções de organismos ainda maiores. Da combinação dessa tendência com o sexo, resultou a morte inevitável.


2.1. A indiferença da natureza

A luta pela sobrevivência, na crueldade inocente da natureza, se faz pela composição de uma perpétua cadeia de matanças. Notando que a natureza “é uma vasta cadeia alimentar” e que “matar é tão intrínseco a sua finalidade quanto o sexo”, Holloway, em Entre o monstro e o santo: reflexões sobre a condição humana (2008, p. 63), será aqui citado por sua contribuição para o árduo trabalho que consiste em convencer os que ainda não se desabituaram de viver na semi-obscuridade, que os impede de protestar contra a insistente crença na (boa) Criação orquestrada por um Deus sumamente bom, de que quanto mais conhecimento nós acumulamos da natureza tanto mais vigoroso se torna em nós o sentimento da irracionalidade do mundo, do Intolerável que faz do mundo um grande palco diante do qual a uma platéia entorpecida é dado ver o desfilar de seus horrores. Consideremos, pois, as palavras de Holloway:


“A natureza é impiedosa (...). Metade dos filhotes do urso polar morre nos primeiros anos de vida. O Kalahari mata os elefantes jovens que tentam atravessá-lo à procura de água. E por todo o reino animal os predadores emboscam a vítima antes de se lançarem ao ataque paralisante. Em meio à vida, estamos na morte. É a crueldade da ordem natural que fortalece o ateu contra qualquer ideia da existência de um criador benevolente. (...) a natureza é uma vasta cadeia alimentar, e matar é tão intrínseco a sua finalidade quanto o sexo. A luta é tão fundamental quanto a trepada. A vida que engatinhava há bilhões de anos no mar de substâncias químicas luta não só para se reproduzir, mas para se manter, principalmente caçando outras criaturas.” (grifo meu).



Uma fatia da dura verdade sobre a vida, que a maioria das pessoas, porque vivendo permanentemente divorciada da filosofia, é incapaz de incorporar à sua fisiologia, recobre a indiferença da natureza para com os seus rebentos que são abandonados a um implacável jogo de azares. Não importa quantas vezes nos esforcemos por desvelá-la: a grande maioria dos homens e mulheres tem por costume desviar seu olhar diante dessa verdade, e, muito frequentemente, uma parte, não menos considerável, demonstra animosidade na insistência com que evita deixar-se afetar pelo terror que lhe pode provocar a visão de sua nudez. Tanto mais espantoso é, no entanto, não se responsabilizarem por agravar a loucura do mundo, crentes que são no elevado status ontológico da espécie humana. A verdade, porém, é que, por toda parte para onde se olhe, o Universo não dá sinais de preocupação com seus inquilinos. A vida do homem segue seu curso na mais absoluta escuridão que descansa sobre a indiferença de um Universo cuja imensidade e surgimento do Nada insondável nos faz tremer de angústia. Mas, ávida de escapar ao desespero paralisante, uma imensa maioria tão docilmente se encaminha para ocupar as igrejas, onde aprendeu que uma vela acesa tem o poder de convocar o Vazio a pronunciar suas consolações ardorosamente desejadas, onde esperam ouvir de um mudo palavras de Salvação.
Todo este enquadramento interpretativo à luz do qual o problema da dor e do sofrimento é considerado a experiência que tão urgentemente produz em alguns a necessidade da filosofia, graças à qual eles são arrancados do estado de entorpecimento que impregna o viver na impessoalidade, que, no mundo cotidiano das ocupações, mantém os homens seguros da importância de suas ações; todo este enquadramento interpretativo à luz do qual a filosofia é vista como trabalho, como atividade, como esforço que arrasta aqueles que dela se apropriam para uma vida contemplativa que aspira à sabedoria, com a mesma necessidade imperiosa com que um bebê deve deixar o acolhimento do útero para tornar-se mais um sobrevivente no mundo; todo esse enquadramento – insisto - precisa abrigar a verdade a respeito da indiferença da natureza, da qual nos dá testemunho Schopenhauer, com uma acuidade descritiva que não encontra par na história da filosofia. Antes de apresentar o que Schopenhauer nos ensina sobre a indiferença da natureza, assinalo que ele soube reconhecer na morte “a musa da filosofia”, lembrando que foi Sócrates quem soube determinar qual deveria ser a função fundamental da filosofia: “um exercício de preparação para a morte”. Com Sócrates, a filosofia passa a ser o único caminho possível que forçosamente deveremos trilhar se quisermos nos livrar do medo e das angústias provocados pela morte. “Sem a morte – escreve Schopenhauer – seria mesmo difícil que se tivesse filosofado”.[14]

“Seguramente não conhecemos nenhuma partida mais séria do que aquela na qual a vida e a morte são os jogadores: toda decisão sobre a sorte dessa partida é aguardada por nós com extrema tensão de espírito, com o maior interesse e o maior temor, pois, a nossos olhos, vale todo o nosso ser. – A natureza, pelo contrário, que, sem nunca mentir, tem sobre essa questão uma linguagem diferente, semelhante à de Krishna em Bhagavad-Gita. A morte ou a vida do indivíduo não importa em nada: é esta a sua afirmação. E ela expressa isso abandonando a vida de cada animal, e também a do próprio homem, aos acasos mais insignificantes, sem intervir por sua salvação. – Considerai o inseto que está em vosso caminho: o menor desvio, o movimento mais involuntário de vosso pé, decide sua vida ou morte. Vede o caracol do bosque, desprovido de qualquer meio para a fuga, para resistir, para lograr o adversário, para esconder-se: é uma presa pronta para o que chegar primeiro. Vede o peixe a se jogar, descuidado, na rede ainda aberta; a rã, cuja indolência natural é um obstáculo à fuga na situação em que esta significaria a salvação; vede o pássaro que não divisa o falcão planando sobre ele; a ovelha que da moita o lobo observa. Armados de pouca precaução, todos eles vão sem malícia ao encontro dos milhares perigos que ameaçam a sua existência a todo momento. Assim, abandonar esses organismos construídos com inexprimível arte, não apenas ao instinto predatório do mais forte, mas também ao acaso mais cego, ao humor de cada louco, ao capricho de cada criança, não é a declaração, por parte da natureza, que o aniquilamento desses indivíduos é uma coisa indiferente, sem consequências prejudiciais para ela, sem real importância, e que, em todos esses casos, o efeito importa tão pouco quanto a causa? É isso o que a natureza exprime tão claramente, e ela não mente nunca; apenas não comenta suas sentenças, e fala bem mais a linguagem lacônica dos oráculos. Ora, se a mãe de todas as coisas se preocupa tão pouco em largar sem proteção seus filhos, entre mil perigos ameaçadores, isso só pode ser porque ela sabe que, caso eles sucumbam, recaem em seu seio, onde estão protegidos, e, por isso, sua queda não é mais que uma brincadeira. A atenção que ela dá aos homens é a mesma que dá aos animais. Seu enunciado, pois, estende-se aos homens: a vida e a morte do indivíduo lhe são indiferentes.”[15]


Preciso interromper por algum instante o fio discursivo, para fazer um esclarecimento. Até aqui, tenho procurado mostrar qual é, de minha perspectiva – já que, ao dizer, produzo uma versão interpretativa do mundo que é expressão de meu modo de ser no mundo – a significatividade existencial da filosofia. Mas essa significatividade existencial não é um valor que se impõe objetivamente sob o modo de uma irrecusabilidade dogmática. A significatividade existencial da filosofia que se trata de se apropriar e em consonância com a qual se deve viver é efeito de um certo modo de ser afetado pelo mundo. O afeto tem mais poder de nos modificar, de nos convencer do que argumentos. Afeto, em filosofia, é tanto o sentimento quanto a impressão que causamos nos outros ou que os outros nos causam. Todavia, não incorramos no equívoco de limitar o afeto à sua qualidade psíquica; o afeto é uma intervenção física, tem um efeito orgânico, fisiológico. Sem pretender eliminar do afeto o que nos acostumamos a chamar de “psíquico”, devemos ver no afeto a impressão psicofisiológica que causamos ou que nos causaram.
A dor ou o sofrimento é uma forma de afeto; certamente, bastante invasiva e indelével, que tem o poder de modificar a forma como compreendemos, sentimos o mundo e nele agimos. Apesar de o sofrimento provocar uma modificação naquele que o experiencia, não se segue daí que ele tenha algum sentido (ou fim) ou, como pretendem os defensores de uma certa orientação da teodiceia cristã, que sirva para algum tipo de aperfeiçoamento moral. A experiência clínica em psicanálise ou em psicologia nos mostra que o sofrimento, especialmente se muito intenso (provocado, principalmente, por violência e/ou sintomático de conflitos na relação com a família), não otimiza o comportamento do sofredor; muito pelo contrário, pode manifestar-se na forma de sintomas traumáticos como raiva, depressão e ansiedade. Quem ousaria renunciar a ver os efeitos danosos da prática de bullying, preferindo encontrar neles um benefício a longo prazo? O bullying está entre as formas de violência que causam profundo sofrimento naquele que é vitimado. O sofrimento do bullying certamente modifica a constituição psicofisiológico de sua vítima (crianças e adolescentes) e, se não bem tratado, poderá deixar registrados no psiquismo traumas permanentes que determinarão penosamente o comportamento desse indivíduo por toda a sua vida.
Terei de insistir, a esta altura, na falsidade da teodiceia pedagógica que, em sendo uma ideologia, distorce a realidade, mascara os reais efeitos da experiência do sofrimento. Quer fazer crer essa teodiceia que o sofrimento serviria a um propósito benéfico, qual seja, desenvolver a nossa capacidade de sentir compaixão e contribuir para o nosso aperfeiçoamento moral. Não é difícil refutar essa tentativa indecente, ignóbil de “livrar a cara do Criador”. Em primeiro lugar, há muitas coisas boas na vida que, para serem desfrutadas, dispensam sofrimento anterior. Em segundo lugar, o sofrimento pode causar, muitas vezes, mais ódio e amargura naquele sobre o qual ele recai do que um suposto amadurecimento ou crescimento espiritual e humano. Em terceiro lugar, há muitos casos em que sofrer se torna tão insuportável, que não é possível extrair dessa experiência qualquer benefício, e o preço pago é alto demais. Por exemplo, quando milhares de pessoas morrem em um tsunami, não podemos deixar de nos perguntar: qual pedagogia efetivamente benéfica eliminaria seus próprios alunos?
O que vulgarmente se chama de “dar a volta por cima” a psicologia chamará de resiliência; e algumas pessoas são capazes de resiliência. A resiliência é a capacidade que tem um indivíduo de superar problemas, de lidar com adversidades, de resistir a pressão de fatores externos. O resiliente é aquele indivíduo que, a despeito das intempéries da vida, mantém-se capaz de se reinventar, de escalar seus abismos para retomar seu caminho. Podemos vê-lo como um habilidoso administrador: é capaz de gerir adequadamente suas emoções, regular a intensidade de seus impulsos, etc.
O que a resiliência nos ensina, fundamentalmente, acerca do sofrimento é que ele, embora seja intrínseco ao movimento do viver, como, aliás, sustentou Schopenhauer, é algo que deve ser superado, é algo contra o qual devemos lutar, sem nos deixar seduzir, por um instante sequer, pela crença de que ele seja portador de algum sentido ou benefício. Mas Cioran figura, a respeito desse tema, como uma voz divergente. Ele entende haver no sofrimento algum benefício, que não é de caráter moral, mas espiritual (intelectual). Assim, em O livro das Ilusões (2014, p. 25-26), ele escreve o seguinte:

Só o sofrimento muda o homem. Todas as outras experiências e fenômenos não conseguem modificar essencialmente o temperamento de ninguém nem aprofundar certas disposições suas a ponto de transformá-las completamente. De quantas mulheres equilibradas não fez o sofrimento umas santas? Absolutamente todas as santas sofreram muito mais do que se pode imaginar. Sua transfiguração não foi obra da intervenção divina, nem da leitura, nem mesmo da solidão como tal. O sofrimento de cada instante, um sofrimento monstruoso e contínuo lhes revelou mundos que ninguém pode suspeitar, os intensificou e aprofundou como não consegue intensificar e aprofundar a vida espiritual de um homem normal, toda uma vida de meditação. Um homem que tem a maldição e o inesgotável privilégio de poder sofrer permanentemente pode prescindir durante o restante de sua vida de livros, de homens, de ideias e de qualquer tipo de informação, porque o puro fato de sofrer é suficiente para dispor à meditação contínua, tem por si mesmo bastantes reservas para tornar inútil qualquer contribuição exterior.
Os homens ainda não entenderam que contra a mediocridade não resta outra arma senão o sofrimento. Com a cultura e o espírito não se muda grande coisa; mas é inevitável o que pode transformar a dor. A única arma contra a mediocridade é o sofrimento. Através dele mudam-se temperamentos, ideias, atitudes e visões; muda-se o sentido da vida, pois todo sofrimento grande e duradouro afeta o fundo íntimo do ser. Ao modificá-lo implicitamente também está modificando sua relação com o mundo. É uma mudança de perspectiva, de compreensão e de percepção (...). (grifos meus).


Vim argumentando que o sofrimento muda o homem e essa é a tese que Cioran procura sustentar nesse trecho. Cioran entende que só o sofrimento transforma profundamente o temperamento; só ele pode livrar o homem de uma vida medíocre. Cioran advoga também que o sofrimento “grande e duradouro afeta o fundo íntimo do ser”, o que significa dizer que transforma pronfundamente o modo de ser da pessoa que o sofre. Ajunta outrossim que o sofrimento modifica a relação dela com o mundo. Tendo a concordar com o filósofo romeno, mas não completamente. Não inteiramente porque o sofrimento em si não parece capaz de provocar uma modificação profundamente benéfica como a que ele alega ser possível. Simplesmente porque a experiência nos mostra que há “grandes sofrimentos duradouros” que aprofundam por quase toda a vida a miséria da condição humana. Não vejo como os milhões de crianças, homens e mulheres que habitam as regiões da África Subsaariana e lá vivem em condições deploráveis de miséria, desnutrição, epidemias, privados do acesso à água potável, a moradias dignas, à alimentação e à educação, poderiam alcançar tal forma de transfiguração pelo sofrimento. Nosso eminente filósofo peca aqui contra o bom senso. Um sofrimento atroz como consequência da precariedade absoluta das condições de subsistência não leva a nenhum aprofundamento espiritual, não abre nenhum caminho para a meditação, especialmente quando ao seu poder de monopolizar toda a energia vital de suas vítimas, com a condição de que ainda lhes reste alguma parcela, oporão elas a vontade de continuar vivendo. Em tais circunstâncias em que a única razão de viver parece consistir em relutar a morrer, qualquer alegação que ignore o poder desumanizador do sofrimento será ridícula. Uma vida de meditação não poderá jamais grassar em condições nas quais é mais premente lutar pela sobrevivência.
Será, então, que nosso filósofo ilude-se, completamente, ao acreditar que o sofrimento pode libertar o homem da mediocridade, que pode ser decisivo para o seu aprofundamento espiritual, para a mudança da intimidade de seu ser? Penso que não, mas não é o sofrimento por si mesmo que provoca essa profunda mudança. Cioran vê no sofrimento permanente um privilégio, e toda a força de meus nervos protesta contra essa compreensão do sofrimento. Discordo de Cioran também quando mantém que quem sofre de modo intenso e permanentemente pode dispensar os livros, a convivência com outros seres humanos; em uma palavra, “qualquer contribuição exterior”. Todo sofrimento pungente não fará mais do que esgotar as reservas de nossa vitalidade, encurtando o caminho em direção ao túmulo, caso estejamos privados do minimamente necessário para fazer valer sobre ele nosso direito à meditação. Todo sofrimento ou toda dor que exceda às condições previstas pelo desdobramento de um processo de cura, é um mal.
Em que medida, portanto, posso eu ainda concordar com Cioran? Só posso anuir à ideia de que o sofrimento pode ter um caráter modificador, desde que se faça dizer aquilo que Cioran silenciou: o sofrimento pode produzir uma profunda mudança intelectual no homem, pode fazê-lo emergir da mediocridade onde vivia atolado, desde que lhe sejam dadas as condições indispensáveis para que ele possa apropriar-se compreensivamente de seu sofrimento como a objetivação individual da essência do movimento agnonístico da vida.
Esta subseção não pode encerrar-se, sem que compreendamos o que está em jogo na proposição schopenhaueriana segundo a qual “a dor é essencial à vida”. No Mundo como vontade e representação (2001, p. 324), Schopenhauer faz lembrar ao leitor o que foi estabelecido no seu segundo livro: “(...) em todo lugar as diversas forças da natureza e as formas vivas disputam mutuamente a matéria, todas tendem a usurpá-la; cada um possui justamente o que arrancou às outras; assim se mantém uma guerra eterna, em que se trata de vida ou morte”. A dor e o sofrimento, conforme se depreende desse passo, são um sintoma necessário da guerra eterna, da disputa incessante pelo monopólio dos recursos que garantam a subsistência dos seres vivos envolvidos. Essa guerra eterna se trava inclusive no interior dos organismos. Dennett (2006, p. 76), nesse tocante, escreve o seguinte:

“Os parasitas têm períodos vitais curtos, se comparados a seus hospedeiros, e em geral se reproduzem muitas vezes durante o período de vida do hospedeiro. Os mamíferos, por exemplo, são hospedeiros de trilhões de parasitas. (Sim, já não importa quão saudável e limpo você seja, há trilhões de parasitas de milhares de espécies diferentes habitando seu intestino, sangue, pele, cabelo, boca e todas as demais partes de seu corpo. Eles vêm evoluindo rapidamente para sobreviver ao massacre de suas defesas desde o dia em que você nasceu). Antes que uma fêmea possa estar madura para a idade reprodutiva, seus parasitas evoluem para se ajustarem a ela melhor que qualquer luva. (Enquanto isso, o sistema imunológico dela evolui para combatê-los, um empate – se ela for saudável – em uma permanente corrida armamentista”.


FRAGMENTOS DE AS DORES DO MUNDO[16]

“Este mundo, campo de carnificina onde entes ansiosos e atormentados vivem devorando-se uns aos outros, onde todo animal carnívoro torna-se o túmulo vivo de tantos outros, e passa a vida numa longa série de martírios, onde a capacidade de sofrer aumenta na proporção da inteligência, e atinge portanto no homem o mais elevado grau; este mundo, quiseram os otimistas adaptá-lo ao seu sistema, e apresentá-lo a priori como o melhor dos mundos possíveis.” (p. 38).


“Querer é essencialmente sofrer, e como viver é querer, toda a existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida... A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina: uma história natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados”. (p. 39).


“Considerando a vida sob o aspecto de seu valor objetivo, é pelo menos duvidoso que ela seja preferível ao nada; e eu diria até que se a experiência e a reflexão se pretendessem fazer, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos túmulos para perguntar aos mortos se querem ressuscitar, eles abanariam a cabeça. É também essa opinião de Sócrates na apologia de Platão, e até o amável e alegre Voltaire não pôde deixar de dizer: “Aprecia-se a vida, mas o nada também tem o seu lado bom”, e ainda, “Não sei o que é a vida eterna, esta, porém, é um mau gracejo”.
(p. 39)


Sempre que revisito os dois primeiros trechos supracitados, não consigo evitar perguntar-me como é possível que, em face das evidências esmagadoras de que a história natural é a história de embates mortais e derramamento de sangue, é a história de dominação, de exploração cruel dos mais fortes e aptos sobre os mais fracos e inaptos; é a história de um ciclo eterno de um querer cego, acompanhado de um sofrer permanente, de um lutar sem tréguas, de um empilhamento de cadáveres sem fim, ainda se possa acreditar que este mundo seja obra de um Deus sumamente bom, piedoso e providente; e mais ainda, que se possa acreditar que o homem, para quem o mínimo inseto infeccioso pode ser mortal, seja, dentre as criaturas, a mais amada por seu Criador.

Prossigamos com a procissão (que belo espetáculo!) e “deixa aos mortos enterrar os seus mortos” (Luc 9: 60)


2.2. Dor-Homem

Cumpre-me, doravante, esclarecer o significado do título com que iniciei esta seção A Vida como destino de dor. Fá-lo-ei nesta subseção, que estampa o título Dor-Homem, expressão esta colhida do livro O que é filosofia (2009) de Gilvan Fogel. A fim de realizar esse propósito, vou-me debruçar sobre a análise de um trecho de Fogel, que transcreverei, mais adiante. Antes, porém, é forçoso dizer que o tema da dor e do sofrimento será contemplado restritamente aqui como uma experiência fundante da condição humana. E é no reconhecimento de que a condição humana é fundada na Dor, na Dor de ser Homem que a filosofia vem reclamar sua importância.
Vou principiar por examinar duas passagens tomadas a Becker no livro A negação da morte: uma abordagem da finitude humana (2012). Nesta primeira passagem, interessa-nos compreender o que a visão da realidade provoca no homem e como ele evita, a todo momento, o encontro compreensivo com essa visão.

“O mundo real é simplesmente terrível demais para que se admita a sua existência. Ele mostra que o homem é um animal pequeno, trêmulo, que irá decair e morrer. A ilusão muda tudo isso, faz com que o homem pareça importante, fundamental para o universo, de certa maneira imortal”. (p. 168).


Ao produzir cultura, o homem produz também as ilusões necessárias para viver. Já notamos que não é possível viver sem ilusão. O ser humano que fosse completamente desilusionado, provavelmente se mataria ou enlouqueceria antes de que se completassem as vinte quatro horas de um dia. A filosofia não se cansa de pintar o terrível retrato da condição humana para expor ao homem a verdade da qual insistentemente ele foge. Um exemplo desse retrato é dado nas seguintes palavras de Pascal (2005, p. 25):

“Quando contemplo a pequena duração de minha vida absorvida na eternidade precedente e seguinte (...) – o pequeno espaço que preenche e mesmo que vejo abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, apavoro-me e admiro-me por me ver aqui e não lá, pois não existe razão por que aqui e não lá, por que então (...)” (Pascal, 2005, p. 25)


O universo físico desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem se sentir um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Não resta ao homem senão apoiar-se na sua liberdade e identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual acarreta mais angústia do que satisfação e força.
A ilusão é um mecanismo psicológico através do homem foge à angústia que se seguiria se tomasse consciência de sua condição de insignificância cósmica. Podemos entendê-la como um mecanismo de defesa. Nela, forma-se uma imagem do mundo, construída com base em certas crenças a respeito da realidade, que dizem respeito ao valor e importância de nossa vida, de nossa função ou papel na família ou na sociedade a que pertencemos, etc. Se essa ilusão se estilhaça, somos como que invadidos de um sentimento de apreensão, de opressão dolorosa, de inquietude profunda, com repercussões somáticas que nos paralisam. Esse sentimento é o que, em psicologia, chama-se angústia. A angústia é também o nome dado à ansiedade. Nesse estado de humor, o indivíduo antecipa um perigo ou um infortúnio iminente. Aquilo que, no estado de angústia, o ameaça pode ser real ou imaginário. Os sintomas físicos típicos da angústia, pelos quais nosso corpo reage à ameaça, são tensão muscular, respiração mais rápida e aceleração dos batimentos cardíacos. Há também um tipo de ansiedade, chamado pela psicanalista norte-americana Karen Honey de ansiedade básica, que se caracteriza pelo sentimento de estar abandonado, desamparado e em perigo num mundo hostil.  Esse estado de angústia básica parece ilustrar bem o que pode ocorrer quando o indivíduo, na apercepção, experimenta o sentimento de ser um ponto insignificante na imensidão de espaços que ignora e que o ignoram. A angústia parece jogar o “eu” num movimento de retorno confrontativo sobre si mesmo, sobre sua condição existencial. Na angústia, o “eu” experimenta, nesse retorno sobre si, a sua insignificância em face de uma totalidade (social ou cósmica) que o esmaga. Kierkegaard se ocupou da experiência da angústia, tomando-a na sua relação com o surgimento do espírito no homem. Para Kierkegaard, “quanto menos espírito menos angústia”[17]. O espírito inscreve no homem a possibilidade de ser-capaz-de, portanto, de ser liberdade. O espírito expressa, dá testemunho da liberdade do homem relativamente à natureza. Nesse sentido, o espírito marca o arrancamento do homem em relação às determinações do mundo natural. Esse arrancamento, essa insubmissão do homem em relação aos imperativos da natureza, faz nascer nele o espírito, isto é, o eu. O espírito ou o eu é o princípio de reflexão no homem. O aparecimento do “eu” é sintomático de um cisão irremediável no homem: a cisão entre a alma e o corpo. O eu expressa a relação entre a alma e o corpo. É no “eu” que essa relação se relaciona com ela mesma. O “eu” não é propriamente a relação entre a alma e o corpo, mas essa relação em sua reflexividade na dinâmica do tempo. Portanto, o eu ou o espírito é essencialmente a instância pela qual a relação entre alma e corpo relaciona-se reflexivamente consigo mesma. Com o surgimento do espírito, forma-se a consciência de si no homem. Ao se debruçar sobre a identidade do eu, Kierkegaard insiste em sua reflexividade, insiste na singuralidade de cada indivíduo, graças à qual o “eu” que cada indivíduo é se desprende da impessoalidade da espécie e se desfaz das máscaras forjadas pelas convenções sociais. Agora, é possível compreender melhor o que Kierkegaard quis dizer ao enunciar “quanto menos espírito menos angústia”. Em outras palavras, podemos dizer que a angústia é sintoma do excesso de consciência de si no homem, que o permitiria reconhecer-se como liberdade radical. Por força do espírito, o homem, então desgarrado da natureza, apropria-se de si, de seu ‘eu’ reflexivamente como singularidade que não se reduz aos papéis sociais que deve assumir. Ser um espírito, ser um “eu” é uma condição angustiante para o homem: ele se apreende como ‘excesso’ em relação ao finito, ao temporal; ele aspira ao eterno, ao infinito, mas sua condição é inerentemente temporal. Daí que ele tem de manter o equilíbrio entre sua condição finita e seu desejo pelo infinito. Porque é um ‘eu’, um espírito, o indivíduo é necessariamente  liberdade para ser. É ele que precisa se determinar a si mesmo, se escolher.
O eu, em Kierkegaard, é ainda algo que se apreende como unidade, pois que é síntese da relação entre alma e corpo. Kierkegaard pensa ser possível que o ‘eu’ continue a existir independentemente de suas máscaras sociais. O eu não se reduz aos papéis sociais que assume. O eu é o espírito enquanto relação consigo mesmo. Relacionando-se o espírito consigo mesmo, ele se relaciona como angústia.
Mas será que existe mesmo esse “eu” como unidade da consciência? Nietzsche dirá que não; a psicanálise concordará com ele. E Sartre – para nos ater  aqui apenas a outro filósofo existencialista - não vê o eu mais do que como produto da necessidade de conferir unidade a experiências passadas. Para Sartre, portanto, não há um “eu”, um sujeito, entendido como conteúdo da consciência. Não há cisão entre corpo e alma. O “eu” é um feixe de percepções. Não é fundamento da consciência. Sartre via no eu um objeto da consciência e, provavelmente, inspirado em Freud, disse que o eu não é proprietário da consciência. Se não é proprietário, o que é então? Para o filósofo existencialista francês, o eu é um objeto da consciência e, como tal, pode ser reinventado. Essa concepção acena, em outros termos, com a ideia de que o homem é um projeto, de que é livre e de que pode reinventar-se continuamente.
Se, como pensava Sartre, o eu é o lugar da ausência, do nada, um lugar do silêncio do significante, disso se segue que sou o que os outros pensam a meu respeito. Isso é uma parte do que parece ser verdadeiro. A outra parte é que sou aquilo que penso que sou também.
Concluindo: é apenas na relação, na troca e na comparação com o outro que eu me descubro (venho à tona), que me apresento a mim (ainda que não com total clareza). Não há, ao contrário do que insiste o senso-comum, como escapar à comparação com o outro, já que dela depende, em parte, a constituição de nosso eu.
O eu é, então, uma imagem (uma ilusão), ou um lugar simbólico que se constrói dialeticamente na relação com o outro. O eu é o lugar de uma dialética significante já que supõe a relação com o outro com base na diferença, num universo estruturalmente significativo. A primeira observação fundamental que deve ser feita sobre a natureza do eu é que é produto de uma interpretação. Eu sou como eu mesmo me interpreto. O eu é uma entidade imaginária, ou ainda uma imagem do corpo. A imagem que o eu constrói de si na relação com outro será permeada de distorções e de enganos.
Como, então, pensar a angústia à luz dessa compreensão do “eu” como imagem, como lugar de ausência ou feixe de percepções? A angústia parece ser agora o sentimento de nada ser que se apodera do indivíduo. A angústia é o modo como se realiza a dessubstancialização do eu. Não há “eu” como alma, entidade transcendente ao corpo, não há “eu” como substância pensante; há “eu” apenas como sentimento de “eu”. Não há uma singularidade substancial do “eu”, mas apenas do corpo. Sou o meu corpo, cujo cérebro produz percepções, sentimentos (afetos) com base nos quais se formam crenças sobre quem sou; mas é o corpo ou cérebro que sou que “se sente” como um “eu”.
O indivíduo se angustia por reconhecer que não é mais do que um corpo; ele é o seu corpo, como tal, algo perecível, destinado à morte inevitável; ele não é mais do que um complexo orgânico formado de uma estrutura óssea, de nervos e carne destinado à degeneração e ao perecimento. Na angústia, o homem experiencia o sentimento poderoso e doloroso de sua limitação animal. Citemos o próximo trecho de Becker que lança luzes sobre a condição humana. Esse trecho ajudar-nos-á a compreender que a angústia é resultado da percepção da insignificância de nossa condição:


  “A visão do caráter da pessoa é trabalhosamente construída para negar uma coisa, e apenas uma coisa: a sua condição de criatura. Isso é o terror. Uma vez admitido ser uma criatura que defeca, você convida o oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você. Mas isso é mais do que angústia da criatura, é também angústia do homem, angústia que resulta do paradoxo humano de que o homem é sim um animal, porém cônscio de sua limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da verdade de nossa condição. O que significa ser um animal consciente de si mesmo? Significa saber que se é alimento para vermes. Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo pelo qual certo tipo de homem cultural se rebela abertamente contra a ideia de Deus. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos do homem para se divertirem”.

(Becker, 2012, p. 115-116)


A verdade última de nossa condição não é outra senão a de ser alimento para vermes. O horror é um sintoma da constatação de que, compartilhando com os outros animais a condição de animalidade, a qual inclui, entre outras coisas, um conjunto de necessidades fisiológicas, como a excreção (eliminação de fezes, urina, suor), o impulso sexual, o homem, porém, tem consciência de si e sentimentos de possuir uma região mais elevada, a saber, uma vida interior profunda. Além disso, cada indivíduo sabe ser a encarnação de uma autobiografia, que dá testemunho de sua singularidade, mesmo que essa autobiografia jamais seja escrita. Apesar disso, essa autobiografia não é mais que um registro ínfimo e insignificante de vivências na infinidade do Tempo.
Agora, devemos compreender a finitude humana sob outro olhar. Não se trata de pensar a finitude como um sentimento da contingência radical do ser humano, como crê Sartre; trata-se de buscar em Heidegger a compreensão da finitude como um modo próprio de o homem existir, como o modo próprio da existência humana. A finitude da existência humana se caracteriza pelo fato de o Dasein (ser-aí, o indivíduo humano como existente no mundo) antecipar sempre a totalidade de sua existência que se estende como um arco do nascimento à morte. Essa antecipação do modo finito de existir constitui a estrutura mesma do Dasein. No modo da finitude, a existência humana é apropriada pelo homem, em sua experiência do tempo, em todas as situações, como uma totalidade que unifica toda a sua experiência. Essa totalidade limitada entre o nascimento e a morte está já “presente” ao homem, a cada momento, estruturando seu modo de ser próprio. Por isso, cada instante é decisivo para o homem, pois que é a totalidade de sua existência que é decidida em cada instante. O homem, no instante em que tem de decidir, tem diante de si a totalidade antecipada de sua existência, que se representa em sua consciência como totalidade limitada entre o nascimento e a morte. O homem é, assim, segundo Heidegger, um ser-para-a-morte, ser que se encaminha para a morte, que deve morrer. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade ontológica constitutiva do Dasein. Heidegger propõe que aceitemos nossa própria morte, que aceitemos que somos “ser-para-a-morte”. É só por meio dessa aceitação que o Dasein se torna autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio existir.
O grande problema, aqui, segundo Heidegger, consiste na tendência de o Dasein evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos a própria morte”, o que significa confrontarmo-nos com a possibilidade da realidade de nossa própria morte; não pensar na morte como um acontecimento que só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a morte: o medo e a indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro, quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela e temê-la. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da finitude é, para o Dasein, aceitar a possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Não é difícil ver que abster-se do desenvolvimento do espírito crítico é um estratagema com que uma grande maioria de pessoas busca escapar à angústia. A maioria dos homens, imersa no mundo da impessoalidade, apoiada no seguro arcabouço de obrigações e deveres sociais e culturais, vive em um estado de “semi-obscuridade” com respeito à sua condição humana fundamental. Absorvida em suas ocupações cotidianas, entretida com os aparelhos tecnológicos, orientando sua vida para o consumismo como meio de obter prazer, a maioria das pessoas consegue, assim, afastar o terror que acompanha a consciência da miserável condição humana. Há, certamente, um preço alto a ser pago: as ocupações e o entretenimento levam as pessoas a viver num estado de confinamento que as impede de formar claras percepções  da realidade. Compulsivamente ocupada com as coisas, a maioria dos homens e mulheres evita permanecer parada, para que não lhes perturbe o espírito algum pensamento poderoso e terrificante que se atreva a abrir caminho por entre as densas florestas de suas ilusões, encaminhando-lhes à certeza da insignificância de tudo.
Passemos, finalmente, ao exame do texto de Fogel. O trecho que considerarei estabelece uma relação de intertextualidade com o texto Da visão e do enigma, que consta do livro III de Assim falou Zaratustra (2011). No texto em questão, narra-se a caminhada de Zaratustra por “uma trilha que subia teimosamente entre os seixos” (p. 148), enquanto ele era insistentemente perturbado por seu “espírito de gravidade”, seu daímon. A certa altura, ao leitor se lhe apresenta o seguinte:

O homem, porém, é o animal mais corajoso: assim superou qualquer animal. Com fanfarra superou também qualquer dor; mas a dor humana é a dor mais profunda.
A coragem também mata a vertigem ante os abismos: e onde o ser humano não estaria [senão] diante de abismos? O próprio ver não é – ver abismos?

Quanto mais fundo olha o homem na vida, tanto mais fundo olha também no sofrer. (p. 149-150).


Segue-se, agora, o trecho de Fogel (2009, p. 102-103):

“Dor-Homem é a dor que o homem é. É a dor que é ser homem, isto é, o fato de, de repente, ver-se, sentir-se, vivendo, existindo – precisando fazer seu ser, precisando vir a ser uma possibilidade de ser. É assim que ser homem é ser dor. Dor está portanto falando da hora inaugural do corte, da cisão – da distância, do olhar que se abre e do pouco, do im-perfeito e do in-completo que se revela: “vais comer o pão com o suor da tua fronte”. Por constituir-se em origem, esta cisão, esta dor é aqui e agora, isto é, faz-se, dá-se a cada passo como pulso e cadência da estória que eu sou, que o homem é (...) trata-se de estória (acontecer, suceder, acontencências), de destino de dor. Esta dor que é o ser humano, em constituindo-se em origem, é a dor que dói em todas as dores, em todos os pesares: na enfermidade, na miséria, nas faltas, talvez também nas saturações e na saciedade, no ódio, no amor, na inveja, nas ânsias e desejos, nas aspirações, nos desgostos, na unha encravada, no cálculo na uretra. Por isso, é esta a dor mais funda. Ela em tudo se mostra, em tudo se superficializa... Tão funda que é o próprio fundo – o fundamento. O fundo da vida é dor. Por isso, “quanto mais fundo se olha na vida, tanto mais fundo se olha também na dor”. E: “o próprio ver, não é ver – abismo?”. Olhando assim fundo, o olhar vê abismo.
E o que é ver abismo? Em vendo abismo, o que realmente se vê? Abismo fala abisso, abissal. O a-bisso é o sem fundo. “Sentir a vida” é afundar-se nela, ir ao seu fundo - ao seu “sentido”. Seu fundo é dor. E, vendo esse fundo-dor, vê-se... abismo, isto é, vê-se fundo sem fundo!”



Se atentarmos para o limiar do texto, observaremos que Fogel diz que a Dor de ser homem irrompe-se no instante em que o homem se apreende como existente. Ser existente é nada ser de antemão, por isso é sempre um vir a ser, uma possibilidade de ser. O nada ser de antemão é já Dor. A dor de ser homem está, então, no fato de que o homem, surgindo do Nada, não podendo encontrar em si mesmo o fundamento de seu ser, apreende-se como existente que tem de vir a ser.  Isso envolve trabalho, dor. A Dor quer dizer também corte, cisão. Em outro lugar, escreve Fogel “o instaurar-se da distância é o abrir-se deste corte” (p. 96). E o leitor deve lembrar que a experiência da distância é o desafogamento das ocupações que constituem o viver chapado. A cisão, o corte é o próprio acontecer, o abrir-se da distância. No viver chapado o animal cultural que é o homem encontra o conforto de ter à disposição os significados que lhe servirão para conferir sustentação à sua existência. Com o corte - a distância -, o homem vê-se como tendo de ser não mais o destinar-se estabelecido pela sua cultura, mas tendo de assumir-se a si mesmo como destino, destino necessariamente de dor; porque há dor nesse assumir-se como destino, para o qual não encontra qualquer fundamento. E essa Dor supera em profundidade e intensidade todas as dores físicas. Essa Dor que é o homem tendo de assumir-se como destino, apesar de ser a Dor mais funda, se superficializa permeando todos os acontecimentos de história individual dele. “O fundo da vida é dor” - ou, como ensinou Siddharta Gautama, em uma das quatro Nobres Verdades, codificadas na doutrina budista: “nascer é sofrer, envelhecer é sofrer, morrer é sofrer”. Toda existência, segundo rezava Buda, é sofrimento. Isso não significa negar que haja possibilidades de experienciar a felicidade. Significa sim dizer que a vida é, essencialmente, sofrimento. Só a dor é positiva, dirá Schopenhauer; a felicidade, por sua vez, é negativa, o que é o mesmo que dizer: a felicidade consiste na ausência de dor. A dor, o sofrimento é uma constante, está em toda parte; a felicidade é episódica, superficial, sem jamais ter profundidade; ela mostra-se aqui ou ali, mas é incapaz de universalizar-se, ao contrário do sofrimento, que é o modo de constituição, conforme mostrei, da dinâmica mesma do viver. Só o sofrimento “marca”, “cinzela”, “esfola”, “deforma”, “torce”, “contorce”; a felicidade, por sua vez, “desliza”, “escorrega”, “roça” e, devido a seu caráter fugidio, é a experiência da visada da saudade.
Fogel desce a discorrer liricamente sobre a experiência do abismo, e o faz a partir da experiência do afeto. Tentemos interpretá-la. Lembro que se trata de um gesto de interpretação entre outros possíveis. A Dor é o fundamento do viver. Fundamento, aqui, diz-se daquilo que subjaz sustentando. A Dor subjaz e sustenta a dinâmica do viver. Ajunta o autor que sentir a vida é afundar-se nela, ir ao encontro do seu fundo. “Ir ao encontro do seu fundo” é pretender perscrutar o seu “sentido”. Sentido diz-se destinar-se da vida como dor. Ao sentir a vida, ao deixar-se afundar nela, o homem deixa-se ser afetado pela dor, que é o fundamento da vida. O homem que se ocupa reflexivamente da vida, deixando-se penetrar as camadas de seu tecido, conseguirá contemplar este fundo-dor que lhe revela o abismo, a saber, o fundo sem fundo.
Façamos aqui uma digressão. O texto que estou examinando é entretecido de metáforas. No processo de escritura do texto, o autor instaura um plano isotópico. A isotopia é a recorrência de traços semânticos que estabelece a leitura que deve ser feita do texto. As metáforas, juntamente com as metonímias, são conectores de isotopia. Elas permitem passar de uma isotopia a outra num texto pluri-isotópico. Para compreendermos o fenômeno de isotopia, devemos distinguir entre duas espécies de textos: os figurativos, nos quais predominam termos que remetem a algo existente no mundo natural; e os temáticos, nos quais predomina a função interpretativa e explicativa do mundo. Nesses últimos tipos de textos, predomina a ocorrência de termos puramente conceituais, que servem para categorizar e ordenar os elementos do mundo. Em uma palavra, os textos figurativos, porque pretendem representar a realidade, produzir um efeito de realidade, se constituem predominantemente de termos caracterizados pelo traço sêmico [concreto]. Nesses textos, encontramos largo uso de substantivos concretos (casa, árvore, peixe, madeira, etc.). Nos textos figurativos, ao contrário, predominam termos que encerram o traço [abstrato]. Nesses textos, encontramos um largo uso de substantivos abstratos (felicidade, amor, sabedoria, etc.). Textos figurativos e textos temáticos se distinguem, portanto, em última instância, com base na oposição entre [concretividade] e [abstratividade].
Como o texto de Fogel explora a função da metáfora, ele instaura um horizonte de leitura à luz do qual “abismo” não pode ser lido como “precipício”, como uma “depressão natural”, “caverna”, caso em que estaríamos lendo-o como um termo figurativo. É claro que “abismo” guarda propriedades da região natural que chamamos de “abismo”, a saber, sua profundidade, sua falta de “fundo”, o perigo que representa, etc. Mas, porque “abismo” é usado no sentido metafórico, deve nos orientar a leitura para outra isotopia. Isso nos permite ler abismo como um tipo de experiência, um tipo de sentimento. Trata-se do sentimento de nada ser de antemão, do Vazio que é ausência de substancialidade, que é não ter essência alguma, que é não encontrar fundamento de si em lugar algum.
Este sem fundo – que é o abismo – me escapa à medida que avanço em direção a ele. Vejamos como Fogel descreve essa experiência.

“O sem fundo, enquanto e como sem fundo, isto é, guardando sua distância e sua medida exatas, se faz superfície, tal como o outro lado da rua docilmente está aqui comigo, à medida que eu não insisto em chegar até ele atravessando a rua para pegá-lo, tomá-lo, tê-lo... O seu “aqui” é lá. A ele chego não indo, mas parando. Parando, ele vem até mim. É como ausência que sua presença se evidencia. Assim também o seu fundo, o abismo”. (p. 104).


Este sem fundo – que é abismo – me escapa à medida que avanço em direção a ele. Do ponto de vista cognitivo, a metáfora é um mecanismo que implica a conceptualização de um domínio da experiência em outro. O processo metafórico envolve então dois domínios: um domínio-fonte, o qual se caracteriza por propriedades físicas e aspectos relativamente concretos da experiência; e um domínio-alvo, o qual encerra propriedades mais abstratas. Assim, por exemplo, em “O ano está passando muito rápido”, temos um “evento”, “tempo” (o ano) que é conceptualizado como uma entidade que se desloca, que se movimento como um objeto no ESPAÇO. Nesse caso, temos uma metáfora que permite conceber o tempo (domínio-fonte) como ESPAÇO (domínio-alvo).
Volvendo nossa atenção para o texto de Fogel, acima referido, observemos que a imagem que constrói o autor para explicar como o sem fundo se faz atingível/inatingível, apreensível/inapreensível pelo “eu” conta com a analogia com a experiência sensório-corpórea de deslocamento no espaço. Assim, o “outro lado da rua” só se faz presente a mim, enquanto não atravesso a rua; se eu a atravesso, já não há mais o outro lado; ele se suprime no momento em que ocupo a calçada que se mantinha à distância de mim. Estendamos o raciocínio à compreensão da apreensão/ inapreensão do abismo. Retenhamos sempre o significado do pathos da distância. Enquanto estou permanentemente ocupado com as coisas, indo incessantemente ao encontro das coisas, aproximando-me delas mais e mais, até que elas estejam coladas a mim, já não consigo “ver”, “olhar”.  A distância é a condição para o olhar, o ver e também para o repouso, a serenidade, a calma. Como poderia o homem contemplar o abismo que é, sendo ele no cotidiano todo afã?
Mas cabe perguntar, antes de terminar, por que eu haveria de querer ver o sem-fundo de dor que sou enquanto Dor-Homem? Vejamos então. Fogel diz que “para ver abismo é preciso que a alma já não esteja-seja doente” (p. 104). É preciso, prossegue ele, “que a alma tenha sido tocada pela calma”; mas essa calma, essa serenidade é a calma, serenidade da experiência do sem-fundo, mas, se é assim, é preciso “ver” o abissal da dor para alcançar a calma. Mas a calma não seria a condição para ver o abismo? Decerto, e Fogel afirma “não se é capaz ver se já não se viu ou se já não se foi tocado e tomado pelo que cabe ver em sentido a vida – isto é, em convalescendo”. A questão que agora é preciso responder é como a alma é tocada pelo que cabe ver antes de tê-lo visto. Esse paradoxo é resolvido pela compreensão do que chama Fogel de a experiência do salto. O salto é a experiência do súbito. O salto é pura dádiva, puro dom; carece de por quê. No salto, o sem fundo se faz presença sob a forma de superabundância, transbordamento, “suficiência de si, de nada”. “Alegria, a bastança da orfandade”, isto é, alegria do abandono das ilusões em que me apoiava. O salto faz-me sentir em casa onde quer que eu esteja. Pelo salto, “encontro-me na gratuidade do acontecimento inaugural, isto é, do sem-fundo, do sem por quê, do sem para quê, do sem sentido da vida, de dor” (p. 104-105). O homem, habitualmente, quer encontrar sentido onde ele não se encontra, ou quer atribuir sentido ao que resiste a receber um. O salto é a decisão do homem de mergulhar na imanência, sem mais pretender buscar um para além. O salto é aceitar o desamparo, é deixar-se abranger, acolher pelo sem-sentido, pelo abismo. O desamparo do salto é, como escreve Fogel, “o absoluto da existência, da vida”. Enquanto o homem não se decidir por esse salto, enquanto o homem continuar persistindo em buscar sentido onde não poderá encontrar um, permanecerá ameaçado pelo perigo da angústia, continuará vivendo apartado da filosofia, portanto, continuará sendo incapaz de realizar um modo de ser que lhe é próprio - a ele, homem-, um modo de ser que é o modo de ser próprio da vida.





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CLARCK, William. Sexo e as origens da morte. Rio de Janeiro: Record, 2006.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à filosofia – Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.








[1] Se, por “inutilidade”, entendermos a carência da instrumentalidade para a ação efetiva, certamente a filosofia não serve para nada, sequer para nos ajuda a pregar um prego. A insistência na inutilidade da filosofia é uma marca da ideologia da tecnociência que estrutura as práticas humanas e molda a maneira como as pensamos, as vivenciamos. O saber, num período histórico como o nosso, governado pela tecnociência, precisa ter alguma utilidade prática, um fim que vá além de si mesmo.
[2] Mesmo quando os conteúdos pressupostos são anunciados, como uma espécie de pavimento a partir do qual se edifica a construção da argumentação, tais conteúdos não orientam a argumentação. Em outras palavras, eles são aduzidos como conteúdos sobre os quais não se fará recair o encadeamento do discurso. Portanto, tais pressupostos não serão aqui demonstrados, não se colocarão sob a visada da argumentação. 
[3] Este é um dos sentidos atribuídos ao termo phýsis. Para efeito de discussão, cumpre ter em mente que phýsis é a realidade primeira e última de todas as coisas. (Chauí, 2002).
[4] Remeto o leitor a dois  textos meus destinados  ao tratamento da filosofia pré-socrática e, particularmente, da filosofia parmenidiana, que se podem acessar por estes links neste blog:

[5] Este sentimento de encontrar-se abandonado no mundo, de que fala Sartre, será, obviamente, estranho a um teísta. Quem acredita que estamos aqui porque Deus assim determinou rejeitará a ideia de “estar lançado” no mundo ou de que nossa existência é contingente. Essa experiência de abandono pode até ser sentida pelo religioso quando se encontra em situações-limite, quando parece sentir sua fé enfraquecer-se, mas ela jamais será radical, jamais culminará com o total desespero. A fé tem por costume eclipsar a verdade, especialmente quando ela se apresenta demais aterradora.
[6] COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade desesperadamente.  São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 129.
[7] FOGEL, GILVAN. O que é Filosofia? – Filosofia como exercício de finitude. Aperecida, SP: Ideia e Letras, 2009, p. 90.
[8] HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações Editoras, 2014.
[9] FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
[10] COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 24.
[11] Deleuze chega a definir a filosofia como “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”. Veja-se: DELEUZE, Gilles. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2009, p. 10.
[12] Não faço distinção entre os dois termos.
[13] Uma reflexão acurada sobre essa matéria exigirá a consideração da contribuição de Nietzsche e de Freud. Se Freud teorizou sobre a tensão das duas pulsões no psiquismo humano, Nietzsche estendeu a compreensão dessa tensão à concepção de vida como Vontade de Poder.
[14] SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
[15] Idem.
[16] SCHOPENHAUER, Arthur. As Dores do Mundo. São Paulo: Edipro, 2014.
[17] KIERKEGAARD, SÖREN. O conceito de Angústia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 46.

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