domingo, 21 de fevereiro de 2016

Toda crença religiosa torna inútil a filosofia




4 Lições de Marcel Conche
(às quais eu dou minha aquiescência)



1ª lição:

Crer no Deus judaico-cristão é imoral. O cerne do argumento de Conche se afina com minha posição, desenvolvida em alguns textos, nos quais me ocupo com a materialidade histórica da ideia de Deus. Para se crer no Deus judaico-cristão, é preciso se deixar afetar pelo esquecimento, é preciso não ter memória histórica, ou recusar-se a tê-la. Segundo Conche, a memória histórica impõe o dever de negar a existência de Deus.

2ª lição:

A filosofia, hoje especialmente, pressupõe um ceticismo profundo, de tal modo que todo filósofo deve renunciar à pretensão de alcançar uma Verdade em si. Os filósofos jamais se entenderam no tocante a uma proposição filosófica de caráter universal. Não há, por conseguinte, conhecimento filosófico; mas tão-somente pensamentos filosóficos (se preferirmos, interpretações) que se orientam para a apreensão do real segundo uma maneira de aqueles se posicionarem no mundo.

3ª lição:

O Sábio é aquele que consente incondicionalmente no caráter efêmero e universal da Aparência. Tudo que há é da ordem da aparência. Não há um ‘em si’, um fundo nas coisas (uma essência) que se deve aspirar a auscultar. O mundo se reduz a um fluxo de aparências.


4ª lição:

Toda crença religiosa torna inútil a filosofia, porquanto a religião, ao pretender fornecer uma resposta definitiva e incontestável à questão do sentido do mundo e do homem, proíbe a permanência da própria questão como tal. Não há mais questão; tudo está resolvido sem que nada verdadeiramente tenha sido dito ou pensado.
Marcel Conche não faz concessão ao caracterizar o filósofo e o religioso como tipos antagônicos. Assim, o verdadeiro filósofo não tem outra escolha senão decidir-se entre a filosofia e a religião. A filosofia, segundo Conche, não busca a felicidade, mas a verdade (que, no entanto, nunca é do tipo objetiva); por sua vez, a verdade (como acontece com frequência) não significa a felicidade.
Ademais, conforme já se expôs, em filosofia, não é possível uma verdade positiva, objetiva, pois que cada filosofia visa a atingir sua própria verdade. Não havendo, assim, conhecimento filosófico, o ceticismo é a verdade, ou seja, a ausência de verdade (objetiva) é a verdade.
Resta, então, perguntar o que nos oferece a filosofia, na impossibilidade de nos permitir o acesso à verdade objetiva (e nesse tocante, seu antagonismo com relação à religião fica mais saliente). A filosofia nos oferece (e isso não é pouca coisa) a possibilidade de destruir os dogmas, as ideologias e todos os sistemas (filosóficos, políticos, religiosos) que tenham a pretensão de atingir e impor uma verdade positiva. Nesse sentido, o verdadeiro filósofo é antidogmático.
Mas Marcel Conche não ignora que o filósofo possa aderir a uma religião ou a uma ideologia qualquer. Nesse caso, contudo, lembra Conche que ele o faz recusando-se a filosofar até as últimas consequências.


Segundo Conche, portanto,


“terá sido preciso que ele suspenda o direito da razão de questionar sempre. pois nenhuma religião, nenhuma ideologia pode se justificar totalmente, senão seria ciência e conhecimento unanimemente aceitos. O filósofo se torna crente apenas por uma escolha pessoal e arbitrária, que sem dúvida pode explicar a outros, mas não justificar. o verdadeiro filósofo, que não filosofa para contentar o desejo, mas que quer a verdade a qualquer custo, mantém-se portanto à margem de tudo o que é religião ou ideologia. Montaigne, quando escreveu os ensaios em sua torre, deixa a religião de fora: isso é se comportar como puro filósofo”

(p. 99)


E ainda, apesar de minha anuência às quatro lições de Conche, rejeito sua crença de que o sentido da vida deve consistir em legar à posteridade nossos ideais e nossos valores, com vistas a que as gerações futuras nos eternizem (quando morrermos) e levem adiante o trabalho empregado na construção de nossa obra. Cuido que assim se está assumindo como fundamento do sentido da vida a expectativa, a esperança, o desejo, o que nos autoriza a perguntar que vale a um indivíduo viver na esperança de que a sua obra legada seja apropriada e usufruída pelos que lhe sucederão no tempo, se uma vez estando morto, não pode intervir de modo algum no destino de seu legado? Que tem a ver o morto com aquilo que poderão fazer com seu legado? Ademais, querer erigir o sentido da vida sobre a esperança de que continuemos a existir através de nossa obra e do uso e usufruto dela pela posteridade não elimina a vanidade de nossos esforços, já que, de qualquer modo, estaremos mortos e não poderemos responder pelo que as gerações futuras farão de nossa obra... A morte nos priva do direito de intervir. Por isso, não me contento com essa alternativa. Para mim, a vida continua carecendo de qualquer razão de ser... Tudo que fazemos se realiza sobre o fundo de nada... Tudo é vanidade sob o sol.
Toda e qualquer filosofia que pretenda estabelecer um sentido para a vida carece de justificação. Por isso, minha orientação filosófica combina o trágico com o pessimismo. E, acompanhando o pensamento trágico de Clément Rosset, defendo e defenderei até o fim de minha vida que, se há alegria em estar vivo, ela deve ser celebrada como força que resiste a qualquer argumentação. A adesão ao viver significa celebrar o efêmero, a finitude, seu aspecto mutável, sua fragilidade, o risco constante da perda, o sentimento inextirpável do abismo, do Nada, a certeza da ausência de promessas salvíficas e de soluções para o drama da condição humana.


Bruno de Andrade Rodrigues.

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