4 Lições de Marcel Conche
(às quais eu dou minha aquiescência)
1ª
lição:
Crer no Deus
judaico-cristão é imoral. O cerne do argumento de Conche se afina com minha
posição, desenvolvida em alguns textos, nos quais me ocupo com a materialidade
histórica da ideia de Deus. Para se crer no Deus judaico-cristão, é preciso se
deixar afetar pelo esquecimento, é preciso não ter memória histórica, ou
recusar-se a tê-la. Segundo Conche, a memória histórica impõe o dever de negar
a existência de Deus.
2ª
lição:
A filosofia, hoje
especialmente, pressupõe um ceticismo profundo, de tal modo que todo filósofo
deve renunciar à pretensão de alcançar uma Verdade em si. Os filósofos jamais
se entenderam no tocante a uma proposição filosófica de caráter universal. Não
há, por conseguinte, conhecimento filosófico; mas tão-somente pensamentos
filosóficos (se preferirmos, interpretações) que se orientam para a apreensão
do real segundo uma maneira de aqueles se posicionarem no mundo.
3ª
lição:
O Sábio é aquele que consente incondicionalmente no caráter efêmero e universal
da Aparência. Tudo que há é da ordem da aparência. Não há um ‘em si’, um fundo
nas coisas (uma essência) que se deve aspirar a auscultar. O mundo se reduz a
um fluxo de aparências.
4ª
lição:
Toda crença religiosa torna inútil a filosofia, porquanto a religião, ao
pretender fornecer uma resposta definitiva e incontestável à questão do sentido
do mundo e do homem, proíbe a permanência da própria questão como tal. Não há
mais questão; tudo está resolvido sem que nada verdadeiramente tenha sido dito
ou pensado.
Marcel Conche não faz concessão ao caracterizar o filósofo e o religioso
como tipos antagônicos. Assim, o verdadeiro filósofo não tem outra escolha
senão decidir-se entre a filosofia e a religião. A filosofia, segundo Conche,
não busca a felicidade, mas a verdade (que, no entanto, nunca é do tipo
objetiva); por sua vez, a verdade (como acontece com frequência) não significa
a felicidade.
Ademais, conforme já se expôs, em filosofia, não é possível uma verdade
positiva, objetiva, pois que cada filosofia visa a atingir sua própria verdade.
Não havendo, assim, conhecimento filosófico, o ceticismo é a verdade, ou seja,
a ausência de verdade (objetiva) é a verdade.
Resta, então, perguntar o
que nos oferece a filosofia, na impossibilidade de nos permitir o acesso à
verdade objetiva (e nesse tocante, seu antagonismo com relação à religião fica
mais saliente). A filosofia nos oferece (e isso não é pouca coisa) a
possibilidade de destruir os dogmas, as ideologias e todos os sistemas
(filosóficos, políticos, religiosos) que tenham a pretensão de atingir e impor
uma verdade positiva. Nesse sentido, o verdadeiro filósofo é antidogmático.
Mas Marcel Conche não
ignora que o filósofo possa aderir a uma religião ou a uma ideologia qualquer.
Nesse caso, contudo, lembra Conche que ele o faz recusando-se a filosofar até
as últimas consequências.
Segundo Conche, portanto,
“terá sido preciso que ele suspenda o
direito da razão de questionar sempre. pois nenhuma religião, nenhuma ideologia
pode se justificar totalmente, senão seria ciência e conhecimento unanimemente
aceitos. O filósofo se torna crente
apenas por uma escolha pessoal e arbitrária, que sem dúvida pode explicar a
outros, mas não justificar. o verdadeiro filósofo, que não filosofa para
contentar o desejo, mas que quer a verdade a qualquer custo, mantém-se portanto
à margem de tudo o que é religião ou ideologia. Montaigne, quando escreveu
os ensaios em sua torre, deixa a religião de fora: isso é se comportar como
puro filósofo”
(p. 99)
E ainda, apesar de minha
anuência às quatro lições de Conche, rejeito sua crença de que o sentido da
vida deve consistir em legar à posteridade nossos ideais e nossos valores, com
vistas a que as gerações futuras nos eternizem (quando morrermos) e levem
adiante o trabalho empregado na construção de nossa obra. Cuido que assim se
está assumindo como fundamento do sentido da vida a expectativa, a esperança, o
desejo, o que nos autoriza a perguntar que vale a um indivíduo viver na
esperança de que a sua obra legada seja apropriada e usufruída pelos que lhe
sucederão no tempo, se uma vez estando morto, não pode intervir de modo algum
no destino de seu legado? Que tem a ver o morto com aquilo que poderão fazer
com seu legado? Ademais, querer erigir o sentido da vida sobre a esperança de
que continuemos a existir através de nossa obra e do uso e usufruto dela pela
posteridade não elimina a vanidade de nossos esforços, já que, de qualquer
modo, estaremos mortos e não poderemos responder pelo que as gerações futuras farão
de nossa obra... A morte nos priva do direito de intervir. Por isso, não me
contento com essa alternativa. Para mim, a vida continua carecendo de qualquer
razão de ser... Tudo que fazemos se realiza sobre o fundo de nada... Tudo é
vanidade sob o sol.
Toda e qualquer filosofia
que pretenda estabelecer um sentido para a vida carece de justificação. Por
isso, minha orientação filosófica combina o trágico com o pessimismo. E,
acompanhando o pensamento trágico de Clément Rosset, defendo e defenderei até o
fim de minha vida que, se há alegria em estar vivo, ela deve ser celebrada como
força que resiste a qualquer argumentação. A adesão ao viver significa celebrar
o efêmero, a finitude, seu aspecto mutável, sua fragilidade, o risco constante
da perda, o sentimento inextirpável do abismo, do Nada, a certeza da ausência
de promessas salvíficas e de soluções para o drama da condição humana.
Bruno de Andrade Rodrigues.
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