quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O que ama o amor - Um estudo sobre FEDRO

                        

Este texto constitui parte do trabalho final desenvolvido como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia Antiga IV do curso de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro




O discurso de Lísias e o mito da Parelha Alada: uma análise de Eros e do Belo



1. O discurso de Lísias: a psicologia subjacente ao amor-paixão


Principiamos esta subseção destinada à análise do discurso de Lísias sobre o amor, lembrando o que, no início deste trabalho, procuramos sublinhar: para Platão, o discurso de Lísias não foi produzido por um verdadeiro filósofo. O amor de que fala Lísias está longe de ser o amor a que aspira o verdadeiro filósofo e ao qual devemos a força da verdadeira filosofia. Não obstante, Lísias não deixa de nos ensinar muito sobre a experiência amorosa humana, sobre o modo como o amor nos afeta, de tal sorte que podemos dizer que Lísias nos oferece uma psicologia subjacente à experiência do amor, mais precisamente do amor-paixão. Tal nos parece irrecusável a evidência dessa psicologia, que o discurso de Lísias sobre o amor encerra um ensinamento atemporal, de cuja ressonância nos dão testemunho pensadores como Lucrécio, Ovídio, Schopenhauer, Proust, Freud e Sartre que, em comum, cada qual à sua maneira, são céticos quanto às tendências do imaginário coletivo ocidental, devedor, nesse tocante, da tradição platônico-cristã, de fazer do amor uma fonte de felicidade plena e de realização humana.[1] De passagem, cabe dizer que a concepção moderna de amor romântico e do sujeito amoroso devemos a três matrizes históricas: 1) a mística cristã e o lirismo trovadoresco da Idade Média, no século XII; 2) a subjetivação como resultado de práticas do convívio interpessoal das Sociedades de Corte; 3) as ideologias que se formariam com as revoluções econômico-políticas e culturais nos séculos XVI e XVII, as quais, por sua vez, culminariam com a ascensão do capitalismo impulsionada pela Revolução Industrial ocorrida a partir do século XVIII. (Costa, 1998).
 Acresce-se que o discurso de Lísias, na medida em que busca oferecer uma psicologia inerente ao amor-paixão não deixa de fazer eco à nossa época, especialmente marcada pela liquidez dos relacionamentos humanos[2] - época nossa em que o amor atrai cada vez mais o interesse científico, tanto o das ciências humanas quanto o das ciências naturais.[3]
Nossa interpretação do discurso de Lísias sobre o amor não pretende sugerir que Lísias tenha-nos legado alguma “novidade” ao tratar do tema (em se tratando de um tema universal como este, há muito pouco de “novo” a ser dito). Interessa-nos é mostrar que o discurso de Lísias inscreve-se numa tradição discursiva sobre o amor que se desenvolveu como contribuição desmitificadora.
Comecemos por referir a tese de seu discurso. A tese nos parece ser a seguinte:

(...) de regra, os amantes se arrependem do bem que tenham feito, tão logo se extinga neles o desejo, ao passo que os outros, nunca lhes chega o tempo do arrependimento, pois não é sob a pressão de alguma necessidade, senão de deliberação refletida e pelo estudo de sua situação que promovem o bem do amigo no que neles estiver.[4]


Lendo, com acuro, a tese, percebemos que Lísias a constrói com base na oposição entre os amantes e os outros (que, adiante, se nos revelarão tratar-se dos que não amam). Os amantes constituem o objeto-de-discurso marcado pela qualificação semântica /euforia/, de sorte que diremos ser esse referente o termo /eufórico/; por outro lado, os não amantes são marcados pela qualificação semântica /disforia/ e dele diremos ser o termo /disfórico/[5]. Essa oposição marcada pelas categorias /euforia/ e /disforia/ é extensiva aos pares “amor” (amor-paixão) e afeição recíproca (philia). O amor-paixão é marcado pela qualificação semântica /disforia/ - é o termo disfórico -; e a “afeição recíproca” é marcada pela qualificação semântica /euforia/ - é o termo eufórico, conforme se pode ler em: “Os que não amam, ninguém pensa em censurá-los por tais encontros, pois todos sabem muito bem que semelhantes colóquios terão de ser fruto de afeição recíproca ou da necessidade de espairecer”.[6] Essa passagem contrasta com a que a precede, na qual Lísias exprime sua crença de que os amantes costumam ser mal vistos quando surpreendidos sozinhos com seus amados, pois que, nessa circunstância, parece aos outros que eles “acabaram de satisfazer seus apetites ou se acham em caminho disso mesmo”. (v. nota 42).
Antes de avançarmos na discussão sobre a psicologia do amor-paixão, convém atentar para a tese anteriormente referida, a fim de que nos lembremos de que o amor, para Lísias, é desejo. A questão que, inicialmente, fica em aberto no discurso de Lísias é justamente: desejo de quê? Conquanto a resposta pudesse ser deduzida da apreensão dos traços psicológicos do amante e da natureza do amor-paixão, os quais se deixam ver ao longo do discurso de Lísias, podemos inferi-la da seguinte passagem:(...) é comum entre os amantes cobiçarem apenas o corpo dos mancebos, sem lhes conhecer o caráter e os hábitos, de forma que não se pode ter certeza de que semelhante ligação sobreviva ao desejo”.[7] Ora, a visão de Lísias de amor – parece claro – é o antípoda da visão platônica do amor. O amor, em Lísias, é desejo de prazer sensível, desejo de posse do corpo do amado, com claro desinteresse pelos atributos de sua alma.
É importante dizer que o desenvolvimento do discurso de Lísias tem como focalização a figura do amante, a qual constitui o termo de valor negativo. O lugar do amado na relação amorosa é simplesmente negligenciado. Lísias está preocupado em mostrar quão perturbador e infeliz é o destino dos amantes e o fará com o propósito de convencer Fedro de que é melhor não se deixar apanhar pela armadilha do amor-paixão. Ao descrever o amor-paixão, Lísias fornece-nos uma descrição dos traços psicológicos típicos dos amantes.
Devemos notar, em primeiro lugar, que o amor-paixão é, para o amante, uma experiência de perda de si. Sob a pressão da paixão, o amante é incapaz de dominar a si mesmo; além disso, tende a ponderar os “prejuízos materiais que lhes possam ter causado sua paixão”[8] e a considerar todo o empenho dispensado na insistência com que procurou agradar ao amado, acabando por satisfazer-se na ideia de que nada mais de gratidão deve a ele. Em segundo lugar, os apaixonados se tornam mais suscetíveis a mágoas e a aborrecimentos:

Para eles, tudo é pretexto de se sentirem magoados, pois acham sempre que todos só pensam em prejudicá-los. Daí lhes nasce procurarem de toda a forma impedir que seus amados se aproximem de outras pessoas, de medo que os ricos os sobrepujam com o dinheiro, e com sua inteligência façam os instruídos melhor figura do que eles, com o que se põem de sobreaviso contra quem revela alguma superioridade a seu respeito.[9]


Sob o efeito do delírio[10] do amor-paixão, o amante se vê presa fácil das garras do ciúme. Porque dominado pela paixão do ciúme, o amante fará de tudo para afastar o amado de possíveis pretendentes, não sem um alto custo: ver-se destinado à solidão. Triste é, assim, o destino do amante: dominado pela paixão, cobiçoso do corpo do amado, nunca certo de que seu relacionamento subsista ao arrefecimento do desejo e não podendo evitar que outros o sobrepujem com suas riquezas materiais e seus dotes naturais, torna-se vulnerável ao ciúme. Ademais, porque movido pelo desejo, porque submetido às solicitações do amor-paixão, o amante experiencia um desequilíbrio interior - a harmonia de sua alma é rompida. O amante torna-se incapaz de julgamentos corretos. O excerto abaixo, em que Lísias nos mostra de que forma se manifesta o amor e busca convencer Fedro de que procederá de modo diverso ao modo como se comportam os amantes, a fim de obter a amizade dele, permite-nos entrever uma preocupação que é grega, por excelência: a censura da hýbris.

(...) o amor se manifesta do seguinte modo: o menor contratempo, que para muita gente nem seria digno de menção, aos olhos do amante infeliz é desgraça inominável, como, por outro lado, força os amantes venturosos a gastar elogios com o que não tem valor. Donde se colhe que os amantes são mais dignos de piedade do que de inveja. Por isso, se me escutares, em primeiro lugar não só não procurarei ao teu lado apenas o prazer transitório, como cuidarei dos teus futuros interesses. Sem deixar-me dirigir pelo amor, porém sabendo dominar-me, não suscitarei discórdias por motivos fúteis, e até em casos de maior gravidade, com relutância e muito pela rama manifestarei meu desagrado; desculparei as faltas involuntárias, como procurarei impedir as voluntárias. Dize: não são esses os sinais de uma amizade fadada a durar sempre? E se porventura imaginares que não pode haver amizade firme sem amor verdadeiro, reflete que nesse caso nunca faríamos conta dos filhos nem dos pais nem das mães, como também não teríamos bons amigos, pois nenhum dessas ligações se origina do amor, senão de sentimento de outra natureza. Mais, ainda: se for preciso conceder seus favores aos insistentes em suas solicitações, será mais razoável, acima de tudo, não entregar-se ninguém aos que tiverem maior merecimento, porém aos mais necessitados: quanto maiores forem os males de que os aliviares, tanto mais reconhecidos se mostrarão. Em tuas festas íntimas, também, não convides amigos, porém mendigos e famintos; serão sempre os mais atenciosos, acompanhar-te-ão por toda a parte, não sairão de tua porta; são esses os que mais se alegram e sabem ser reconhecidos, além de toda hora formularem votos para a tua felicidade. Sim, porém decerto o aconselhável não será favorecer os mais importunos, senão somente os mais capazes de demonstrar gratidão; não apenas os apaixonados, mas os merecedores de tão grande favor; não os que se propõem a gozar os encantos de tua mocidade, mas os que na tua velhice dividirão contigo seus haveres; não os que depois de alcançarem o que almejam, não falam noutra coisa, mas os que, de puro envergonhados, sabem calar na frente de terceiros; não os de afeição efêmera, mas os de amizade sempre igual a vida inteira; não os que, acalmado o desejo, só procuram pretexto para romper contigo, porém os que depois de perderem o viço, passam a dar provas de sua virtude muito própria. Guarda bem minhas palavras e considera que os amantes ouvem sempre dos amigos que sua paixão é viciosa, ao passo que os não apaixonados nunca foram acusados pelos parentes, por motivo dessas relações, de conduzirem mal os seus negócios.[11] (ênfases nossas).


Nesse momento de seu discurso, Lísias se propõe, de início, mostrar a influência negativa que sobre os amantes exerce o amor. O amor-paixão exaspera as emoções do amante infeliz em face do menor contratempo. Como torne seu julgamento distorcido, o amor-paixão leva o amante a importar-se com inconvenientes que, em condições outras, não seriam graves. O amante venturoso, por sua vez, também sofre da mesma tendência a exceder-se no modo de reagir. No seu caso, o excesso torna-o um adulador. Em qualquer um dos casos, vemos que o amor-paixão é desmesura (hýbris).
Lísias prossegue argumentando que, ao requestar a amizade de Fedro, agirá não com o intento apenas de usufruir o prazer transitório, caso em que se tornaria suscetível de hýbris, mas procederia segundo sophrosýne, isto é, de modo moderado, contendo seus impulsos e desejos. O que o discurso de Lísias parece encenar é a luta entre hýbris e sophrosýne, cujas contrapartes são, respectivamente, o amor-paixão e philia. Não estando sob o domínio do amor-paixão, aquele que não ama reage aos contratempos e manifesta algum desagrado moderadamente. Porque sua alma conserva-se em equilíbrio, está sempre disposto a desculpar as faltas involuntárias, como também estará apto para “evitar as involuntárias”. Quem assim procede, quem evita entregar-se às solicitações do amor está mais bem preparado para garantir uma amizade duradoura. Lísias é bastante claro ao sugerir que a amizade sólida pode realizar-se sem “amor verdadeiro”.
Tendo demonstrado a necessidade de evitar o apaixonamento, Lísias listará várias recomendações a Fedro, que devem ser seguidas caso não seja possível evitar atender aos apelos de alguns pretendentes. Ao fazê-lo, Lísias acena ao “agir razoável”. Esse agir razoável consiste em: 1) favorecer os mais necessitados e nunca aqueles que ostentam merecimento; 2) favorecer os que são capazes de demonstrar gratidão; 3) os merecedores dos favores concedidos; 4) os que continuarão companheiros na velhice; 5) os que são generosos; 6) os que são reservados; 7) os que conservam a amizade a vida inteira; 8) os que conservam a amizade após satisfazer seu desejo; 9) os que permanecem fieis à amizade, mesmo depois que o amigo perde a exuberância, a beleza. Ora, vê-se que essa conduta razoável de quem está sendo requestado supõe a capacidade de discernimento, que só pode ser conservada com a condição de nunca deixar-se dominar pelo amor-paixão.
Para terminar, gostaríamos de sublinhar que, no discurso de Lísias, o amor não tem qualquer vínculo com a vida virtuosa; ao contrário, o amante está sujeito a toda sorte de excessos e sua paixão é considerada viciosa. Se há – como acreditamos haver – alguma preocupação em oferecer uma orientação ética, Lísias o faz com base na contraposição entre amor e philia, de sorte que torna a philia a condição para o agir razoável. Porque tem em vista o estabelecimento de uma amizade verdadeira, o indivíduo deve proceder de modo tal, que possa dominar a si mesmo, evitando, assim, ceder às pressões do desejo.


1.2. O mito da Parelha Alada e seu complemento[12]: a filosofia como vida virtuosa


Ao nos debruçarmos sobre o mito da Parelha Alada, estaremos interessados, sobretudo, em patentear de que modo Platão maximiza a figura do filósofo e a importância da filosofia. Explicitar essa maximização, tendo sido, inicialmente, o objetivo fixado por nós para o desenvolvimento desta exposição, permite-nos também perceber o estabelecimento por Platão da unidade entre conhecimento, psicologia e ética. No mito da Parelha Alada, essa unidade torna-se ainda mais clara. A fim de que realizemos nosso intento, discriminamos os temas que demandarão nossa atenção especial: 1) quem é o amante; 2) o Belo em si; 3) o valor da vida dedicada à filosofia.
Tão logo terminado o relato do discurso de Lísias, Sócrates manifesta seu primeiro desacordo. Sócrates pensa que Lísias parece ter-se enganado ao sugerir que aquele que não corresponde ao amor de outrem não ama. Para Sócrates, é possível que ame alguma outra coisa. Ao contrário do que pensa Lísias, talvez haja várias espécies de amor. O segundo desacordo de Sócrates consiste em fazer notar a Fedro que Lísias supôs haver uma espécie apenas de delírio - uma espécie má. Ora, Sócrates mostra que os antepassados associavam ao delírio os maiores bens; ademais, o delírio, sempre que decorre de inspiração divina, é considerado algo belo. Sendo de origem divina e, portanto, belo, o delírio foi ligado a mais nobre das artes – manikê (mania). Essa arte permite-nos predizer o futuro.  Sócrates diz que há várias espécies de delírios. Entre essas espécies de delírios, está o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, o qual “ultrapassa em perfeição e dignidade a [arte humana] dos augúrios”[13]; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, o qual “preservou seus participantes de calamidades presentes e futuras”, ensinando “ao homem verdadeiramente inspirado e possuído a maneira de libertar-se dos males do momento”[14]; o delírio poético, que provém das Musas “quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia (...)”[15]; e há o delírio erótico, inspirado por Eros e enviado pelos deuses “para a nossa maior felicidade”.[16]
Está claro, portanto, que nem todo delírio é um mal e que o amor, na medida em que é uma forma de delírio – o delírio erótico – e tendo sido enviado pelos deuses, não pode ser fonte de males, como pensara Lísias. Deve-se dizer, a esta altura, que Sócrates, ao contrário de Lísias, restituirá ao amado o valor que tem na relação amorosa. O amor não é destinado à satisfação egoísta do amante, mas à satisfação do amado, que agora encontra seu importante lugar na convivência com o amante. Na convivência que torna possível o amor, amante e amado se dedicarão ao benefício mútuo. O amor não leva os que dele são possuídos a desejar apenas a beleza do corpo um do outro, mas os faz tomar a beleza corpórea e aparente como sinal da beleza de suas almas.  
No excerto que se seguirá, colhido do mito da Parelha Alada, Sócrates dá-nos a conhecer quem é o amante e alude à teoria da reminiscência. Deve-se notar que, nesse trecho, o conhecimento se articula à virtude, isto é, o ter vivido virtuosamente é condição para que a alma consiga recordar-se do que viu quando vivia em companhia dos deuses.

Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém, o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a receber. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém, não é igualmente fácil para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das celestes, o que se dá tanto com as que as percebem de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepções suficientemente claras, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são de todo em todo privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do brilho peculiar, quando, no séquito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.[17] (ênfase nossa).


Dizer que o viver segundo a virtude é uma condição para que a alma consiga recordar-se do que viu no séquito de Zeus não significa que essa condição lhe seja bastante, porque a recordação do modelo original encontra no próprio corpo em que reside a alma um obstáculo. Novamente, a imagem do corpo como cárcere, que vimos no Fédon, aparece aqui. O corpo, mesmo para as almas que não tenham cometido alguma injustiça, constitui um obstáculo para a recordação do modelo original a partir das imagens terrenas. Ademais, estas, como sejam cópias do modelo original, carecem da qualidade necessária que torne possível a recordação desse modelo (elas são “privadas totalmente de brilho”). A descrição do que sucede com as poucas almas que conseguem perceber alguma imagem do que contemplou outrora é análoga à experiência do prisioneiro que deixa a caverna para assomar à verdadeira realidade iluminada pela luz do Sol. A estrutura imagético-dialética é bem parecida: a queda num corpo é o aprisionamento na caverna. A vida terrena é a vida na caverna. Tal como o prisioneiro, que no mito da Caverna, consegue, libertando-se, contemplar, num movimento ascensional, a verdadeira realidade, a alma, presa no corpo, pode ter vislumbres das coisas celestiais. No entanto, ao contrário do prisioneiro que, depois de um instante de ofuscação, acostuma-se com a luz da verdadeira realidade, a alma, entusiasmando-se com a recordação do que contemplou, “perde o domínio de si mesma” e ignora o que se passa com ela. Essa perda de si e ignorância são consequência de seu estado atual, a saber, do fato de estar ela presa no corpo. A filosofia, nesse momento, ainda não despontou como o horizonte de possibilidade de purificação e ascensão ao Belo em si.
Retome-se, a fim de que possamos compreender a função da filosofia e qual é o estatuto do filósofo na narrativa do Fedro, a figura do amante e sua relação com o amado. O amante, segundo lemos no trecho acima citado, é um apaixonado das coisas belas, é aquele tomado de delírio erótico. Já vimos, ao apresentar a escalada do Belo no Fédon, que Eros é desejo do Belo e do Bem em si. O amante, em Platão, não quer apenas a satisfação dos belos corpos. É na beleza das almas que o amante e o amado descobrem o sinal da causa que as faz belas e boas. Assim, eles se descobrem almas imortais e aparentadas ao divino e à verdade.
Eros ou o delírio erótico é o conhecimento que os amantes alcançam da natureza imortal e da excelência (virtude) da alma dos amados. Atingindo esse conhecimento, eles são conduzidos ascensionalmente à origem dessa excelência. Destarte, eles são beneficiados com o saber através do qual descobrem que a alma bela e boa é aquela que já contemplou a Verdade em outra vida – na vida outrora vivida na companhia dos deuses. É por já ter contemplado a Verdade, que a alma é capaz de lembrar-se dela, e dela se lembrando, aspira a contemplá-la novamente.
Dissemos que, no mito da Parelha Alada, Platão articula, numa unidade, de modo mais claro, conhecimento, ética e psicologia. O primeiro elemento dessa unidade – o conhecimento – deixa-se entrever na caracterização socrática de Eros como força que impulsiona as almas à contemplação da Verdade. É sob o efeito do delírio erótico que elas são capazes de recordar a Verdade. Uma vez que amante e amado sejam imortais e perfeitos, amarão um no outro a verdadeira sabedoria. Assim, o amor que os move é a própria filosofia. Em outros termos, Eros, agora, é filósofo.
O mito da Parelha Alada, conduzindo-nos ao Princípio, narrando a origem das almas, a vida que viviam no séquito de Zeus, ajuda-nos a entender como é  possível a elas distinguir um desejo e amor virtuosos de um desejo e amor que não são senão doença ou vício. Lembremos que a Alma do Mundo, ou psykhé universal, sendo princípio de movimento – portanto, de vida – é responsável por governar a ordem universal. Quando perde suas asas, alguns fragmentos que se desprendem encontram morada em corpos que habitam a terra. Nossa alma nasce, pois, da perda das asas da Alma do Mundo; por isso, são capazes de recordar aquilo que outrora viram. Com o auxílio de Eros, que restitui às nossas almas as asas perdidas, conduz a nós, seres mortais, a retornar às alturas onde está a Verdade. Graças a Eros, a melhor parte da alma – a parte racional – conserva sua imortalidade.
Já vimos também que a alma humana se apresenta, para Platão, tripartida em alma apetitiva, alma irascível e alma racional. No mito da Parelha Alada, o cocheiro representa a parte racional da alma e está encarregado, por isso, de conduzir toda a alma ao seu destino, domando os impulsos danosos da parte concupiscente. O cocheiro – a parte racional da alma -, tendo visto o objeto amável, sente-se atraído para ele. Nessa ocasião, recorda-lhe a essência da Beleza e do Bem. Inicialmente, o cocheiro recua assustado; mas, sendo auxiliado pelo cavalo bom, é forçado a reter a lembrança do amado. Assim, imbuído de coragem, controla o carro, açoitando o cavalo de raça má para que obedeça.
A articulação da ética com a filosofia se faz pelo amor ao Belo em si. O amante, sendo a alma, pode fundir-se ao amado (o belo), alcançando, assim, a felicidade perfeita, porque, por força da influência de Eros, é capaz de recordar o Belo em si outrora visto. O amante é agora filósofo, aquele que reconhece, nas coisas belas, na multiplicidade do sensível, a unidade perfeita das Ideias. À medida que se vai lembrando do Belo em si, as asas de sua alma vão crescendo. Eros ou a filosofia restitui à alma as suas asas. A filosofia é, assim, delírio erótico, é delírio de inspiração divina, visto que ela, fazendo crescer o amante em sabedoria e em virtude, torna sua alma novamente alada.
Sendo alada, a alma pode, elevando-se, participar da natureza imortal do divino (é este seu desejo). Mas, como ainda está presa num corpo e, por isso, impedida de voar, ela deve voltar-se para a filosofia, exercitar-se nela, tomá-la como caminho que lhe permitirá a tão desejada ascensão. Pela ascensão, a visão da alma se desvia dos assuntos humanos e se dirige para as coisas celestes, mais elevadas.
No Fedro, é o Belo que permite a articulação entre psicologia e ética. Ora, a parte concupiscente da alma deseja as coisas perecíveis. Seu desejo é desejo de possuir unicamente. A parte concupiscente, possuindo o que deseja, nunca está saciada e, em pouco tempo, torna-se possuída por aquilo que então desejava possuir. A parte irascível, por sua vez, deseja também as coisas perecíveis, como a fama e a glória. Se ela mover-se para essas coisas sem comedimento, pode arruinar-se. Demais, seu modo de desejar é desejo de obter boa reputação a partir das opiniões favoráveis dos outros. O risco que se acha nesse anelo é que, sendo bem reputada segundo as opiniões alheias, incorra na desonra ou na vanglória. Somente a parte racional deseja os bens imperecíveis, quais sejam, a Verdade e o Bem em si. Ela não se move pelo desejo de possuir o que é mutável e imperfeito; não deseja obter boa reputação a partir da opinião alheia. Ela se move pelo desejo de participar da essência da Verdade e do Bem. É por isso mesmo que ela está apta para determinar a medida segundo a qual os desejos das outras partes da alma devem-se conduzir. Ela impõe limites ao modo de desejar das partes concupiscente e irascível da alma. Assim, pode torná-las virtuosas.
Eros é, portanto, a força que faz mover a alma, quer sua parte apetitiva, quer sua parte irascível, quer sua parte racional. A virtude, por seu turno, é determinada pela qualidade do objeto para cuja obtenção o amor impulsiona a alma. Sob o governo da parte racional, então, entregue ao exercício da filosofia, a alma torna-se capaz de fazer sempre uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão. A autarquia do indivíduo repousa no poder da parte racional ou da razão de governar as paixões, fixando para cada uma das outras partes da alma bons objetos e desejos.
Finalmente, a areté só pode ser conquistada pela luta entre desejos irracionais e desejos racionais. A virtude não pode ser alcançada sem que haja uma harmonia entre as partes da alma. Essa harmonia é garantida pelo governo da parte racional sobre as outras partes irracionais. Por conseguinte, a virtude, para Platão, é inseparável do conhecimento e da vida filosófica – que é a vida virtuosa. Levamos a cabo este trabalho, referindo um trecho emblemático da oposição socrática ao discurso de Lísias. O trecho se segue ao momento do discurso em que Sócrates compara o destino das almas que viveram afastadas da filosofia com o das almas que viveram “uma vida ordeira e dedicada à filosofia”[18].

São essas, jovem, as grandes e divinas bênçãos que te ensejará a amizade do teu apaixonado. Quanto à intimidade com quem não ama, aguada com a sabedoria mortal que se ocupa de interesses perecíveis e de nenhum valor, só gerará na alma do amado a mesquinhez que as multidões exalçam como virtude e que será causa de ela vir rolar durante nove mil anos em torno da terra, para acabar embaixo da terra como sombra privada de razão.[19]





[1] Muito embora o cristianismo tenha condenado os traços mundanos do amor romântico, cremos que os traços idealizadores que caracterizam essa forma de amor, tão profundamente marcante da cultura ocidental, podem ser rastreados numa longa tradição que, remontando a Platão, encontra no cristianismo fonte de longevidade. Se Platão concebeu o amor como caminho para aspirar ao que é puro e eterno, o cristianismo, dando continuidade a uma tendência que já se verificava em Platão, viria a maximizar a transcendência de Eros tornando-o a virtude suprema do mundo ocidental, encarnada na pessoa de Jesus. Com o cristianismo, o amor deve possibilitar a conquista da intimidade com a mais elevada bondade, beleza e verdade, que é o próprio Deus. (May, 2012).
[2] Veja-se, a propósito: Bauman, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Joge Zahar, 2004.
[3] Um exemplo disso é a possibilidade de o amor ser estudado tendo em vista a determinação da química do cérebro apaixonado. Ademais, não só neurocientistas se demonstram mais interessados em estudar a natureza bioquímica do amor, como biólogos e psicólogos evolucionistas tratarão de investigar a presença do amor na história evolutiva das espécies, buscando compreender o porquê de nós, seres humanos, amarmos. (Fisher, 2004).
[4] Fedro, 231a.
[5] As categorias /euforia/ e /disforia/ são categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica assenta-se sempre numa oposição. Cremos ser elas úteis para tornar nossa proposta de leitura do discurso de Lísias tanto mais clara quanto consistente com o objetivo por nós perseguido demarcar duas visões contrárias sobre Eros, a de Lísias e a de Sócrates. A categoria /euforia/ é um valor positivo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto, independentemente do sistema axiológico do leitor; por outro lado, a categoria /disforia/ é um valor negativo que marca o modo como um determinado referente se inscreve ou é considerado (pelo autor) no texto.  (Fiorin, 2005).
[6] Ib.id., 232b.
[7] Ib.id., 232e.
[8] Ib.Id., 231a.
[9] Ib.Id. 232c.
[10] Pode-se dizer que o amor tematizado por Lísias é uma forma de delírio negativo, concepção esta a que Sócrates irá se opor, conforme veremos.
[11] Ib.Id.233b-234b.
[12] Referimo-nos ao discurso de Sócrates que, retomando pontos essenciais do mito da Parelha Alada, mais claramente expressa a sua oposição ao discurso de Lísias.
[13] Ib.Id. 244d.
[14] Ib.Id. 244e.
[15] Ib.Id. 245a.
[16] Ib.Id. 245c.
[17] Ib.Id. 249e-250c.
[18] Ib.Id. 256a.
[19] Ib.Id. 257a.

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