Linguagem e Razão
Um caminho de mão única
Um caminho de mão única
Tão logo iniciei meu contato com a filosofia,
uma coisa pareceu-me bastante clara: toda discussão filosófica não pode
prescindir, desde o início – ou melhor, como condição mesma de possibilidade de tal discussão – da definição dos termos em torno dos quais se desenvolverá a
discussão. Se os interlocutores não estiverem de acordo quanto ao sentido
atribuído aos termos implicados na questão, o debate se inviabiliza. Definir é,
sem dúvida, um momento fundamental da reflexão filosófica; entre os gregos,
chegar à definição é o fim (finalidade) da dialética. É claro - poderia intervir o leitor - que a dialética é o instrumento de busca da verdade, uma pedagogia científica do diálogo, desde Platão. Mas a verdade só se alcançava - pensemos na maiêutica socrática - ao cabo de um processo que culminaria com a definição do que se postulava na questão inicial. O que é o ser? A questão reclama uma
definição do objeto interrogado. É à busca da definição que se lança o filósofo. Definir, para
Aristóteles, é exprimir a essência de uma coisa. A verdade só se contemplava quando a coisa se deixasse revelar em sua essência na definição. Que a dialética vise a atingir a verdade não há dúvida, mas a verdade, para os gregos, só se alcança quando se deixa ver na transparência do lógos (discurso), quando através da definição expressamos a essência de uma coisa.
Quando, recentemente, ventilei a
questão sobre que direção devemos dar à relação entre linguagem e razão, não o
fiz por pressupor saber qual é a verdade suscitada pela questão. Especialmente, nesse caso, a verdade parece ser obnubilada pelos próprios termos da questão. A questão –
lembro – consiste em saber se a razão é ontologicamente anterior à linguagem,
isto é, é o fundamento desta, ou ao contrário. Parece que Aristóteles resolveu
essa questão assumindo ser a razão o fundamento do desenvolvimento da
linguagem. Eu, no entanto, - e não estou sozinho nessa dúvida – não estou
convencido da resposta aristotélica.
Hobbes, por exemplo,
lembrar-nos-á, no Leviatã, que os gregos entendiam não haver raciocínio sem
linguagem, o que explica, entre eles, a existência de uma palavra – LÓGOS –
para designar tanto linguagem quanto razão.
Mas o problema inicial – que é o
da definição – precisa ser retomado. Precisamos nos perguntar o que estamos
entendendo por razão e linguagem? Comecemos por elucidar o significado de
linguagem. Rechacem-se dois sentidos que não devem nos interessar: 1) linguagem
como sistema de sinais; 2) linguagem como instrumento de comunicação. Ao nos
referirmos à linguagem, aqui e no contexto mais abrangente da tradição
filosófica, estamos interessados na linguagem verbal; ou, mais precisamente, na
capacidade natural que tem todo ser humano normal de usar uma língua.
Se por razão entendermos a capacidade que temos de articular conceitos e
proposições para deles extrair conclusões de acordo com princípios lógicos, ou,
o que nos levaria ao mesmo resultado, tendo em vista meus propósitos
argumentativos, entendermos por razão
a capacidade humana de atribuir sentido a, de ordenar, de estruturar nossas
experiências de mundo, reconhecendo nelas relações constantes, então não
podemos pensar essa capacidade de modo indissociável da linguagem, ou mesmo
sequer podemos pensá-la como anterior ao desenvolvimento da linguagem. Por quê?
Porque a linguagem não é mero instrumento de comunicação, também não é meio de
registro de nossos pensamentos. A linguagem é responsável pela constituição de
nossas experiências de mundo. Entre as muitas funções a que se presta a
linguagem, a função de SIMBOLIZAÇÃO lhe é básica. No que consiste essa função?
É a função graças à qual podemos transformar todos os elementos do mundo em
dados da nossa consciência e em assuntos dos nossos discursos. O mundo
experimentado pelo homem não entra em sua consciência de forma bruta e caótica,
mas de forma ordenada, estruturada por meio das categorias fornecidas pela
linguagem. Assim, estruturadas nossas experiências de mundo, elas se tornam
conteúdos da consciência passíveis de serem comunicados no discurso. Portanto,
a língua ou linguagem verbal, antes de tudo – antes de servir à interação
social (que não deixa de ser uma função importantíssima), - é um sistema de
categorias que permite ao homem organizar o mundo numa estrutura dotada de
sentido. Naturalmente, o que povoa a consciência do homem não são as coisas
dadas à experiência sensível deles. A linguagem, por intermédio das palavras, e
graças à sua função de simbolização, transforma os dados da experiência em
conceitos; é na forma de conceitos que esses dados se tornam dados da
consciência. O que nossa consciência apreende são os conceitos. Ora, o conceito
de “ave” não é a coisa ou o animal bípede, com asas e bico. O conceito é um
esquema geral, uma ideia geral que nos permite representar (re-apresentar) a
coisa na/à consciência.
Ortega y Gasset, em seu livro
QUE É FILOSOFIA? (1971), define o conceito como “um conteúdo mental enunciável”
e a esta definição acresce: “o que não se pode dizer, o indizível ou o inefável
não é um conceito” (p.83). O que nos chama atenção em sua definição de conceito
é a característica de ele ser “enunciável”. Ora, um conceito que não possa ser expresso em palavras não é conceito, o que corrobora a visão de linguistas para
os quais as palavras criam conceitos com os quais organizamos nossas
experiências de mundo. O pensamento conceitual, portanto, não existe sem
linguagem. E mesmo que possamos admitir, como queria Piaget, um pensamento
pré-linguístico, ele ainda não é o tipo de pensamento socializável,
comunicável, o pensamento sem o qual o homem não seria um ser racional,
produtor de cultura, produtor de arte, filosofia, literatura; enfim, de
sociedade.
Uma coisa me parece bastante clara
e incontestável, ao menos: que o desenvolvimento da capacidade da linguagem
levou ao grande “boom” da capacidade intelectual humana. Independentemente do
que está na origem - se a linguagem ou a razão-, o fato é que o desenvolvimento
da linguagem levou a um aumento significativo da capacidade racional do homem.
Serviu-lhe como uma espécie de “upgrade”, possibilitando a ele transcender os
limites de suas experiências imediatas com o mundo e criar outras formas de
ser, agir e experimentar o mundo. Mundo? Isso já é uma questão de linguagem.
(BAR)
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