sexta-feira, 2 de outubro de 2015

"Eu não escrevi para publicar livros, senão para dar expressão à vida. O ato de escrever é uma perpétua busca de ti mesmo" (Cioran)

                    

         O princípio Dor: a marcha da carne consciente  


Amanhã estará à disposição dos leitores, neste e no outro blog, provavelmente o meu texto mais extenso e, talvez também, o mais esmeradamente projetado para ser publicado em meu blog. Este, no entanto, que agora se apresenta reúne retalhos de cadeias de pensamentos que encontrarão na presente tessitura uma totalidade coesa e coerente. Começo, pois, sem qualquer compromisso com a definição do tema. Deixo ao leitor o encargo de reconhecê-lo e explorá-lo à proporção que ele levar adiante a leitura.
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            Sartre foi o maior exemplo de intelectual global. Como filósofo, foi engajado politicamente; foi polêmico; não cessou de intervir no mundo das lutas sociais.



“Afinal de contas, é preciso (sobre) viver, dar-se um escopo, agarrar-se a uma fé qualquer, sem perder, porém, o charme da negatividade”.[1]

Trabalhar... Estar empregado: significa produzir a teia fina e débil de sentidos sobre a ausência abissal e infinda de fundamentos. Produzir no mundo absurdo é simplesmente tomar parte na marcha que, cotidiana e inconscientemente, reproduz o drama da existência. Estar empregado é empregar a obsoleta energia vital na reprodução dos horrores, do absurdo, da fragilidade a que os indivíduos e as multidões estão sujeitos.
Estar empregado é estar pregado na tábua dos inconsoláveis, dos aflitos que vivem na inconsciência de seu desespero, suportando suas dores, seus tormentos na esperança de um paraíso promitente.
Estar desempregado: é estar em privação; é estar condenado à esterilidade do absurdo; é viver à margem daquilo em virtude do qual todo indivíduo humano é gerado e domesticado para o mundo. No mundo do trabalho, ele é forçado a levar adiante a marcha absurda, não sem esforçar-se por produzir sentidos, no entanto, quebradiços, num mundo machado pela dor ingênita, pelo sofrimento estrutural e pela crueldade banal.
Homo faber: homem absurdo. O homem, o indivíduo humano, é posto no mundo para produzir e reproduzir-se; e produzindo e se reproduzindo, reproduz sua história de misérias até que venha a sucumbir ao Irremediável.
No Princípio, era a Dor. E a Dor se dilatou em explosões de uma singularidade agonizante. Desses processos terrificantes, a Dor se fez Tormento. E o Tormento se fez carne, ganhou forma e toldou o caos atormentado. E a carne, de agora em diante, ordenada se fez existência, esquecendo-se do caos primordial e constitutivo que a fez ser, por natureza, um acidente da Dor e do Tormento. Ainda hoje, a carne luta, em sua agonia lancinante, contra suas tendências ingênitas a iludir-se sobre sua origem enferma.
Mas esta carne, irremediavelmente destinada pela própria circunstância nefasta que a gerou a apodrecer e a extinguir-se, criou; ela é criadora: a filosofia foi, dentre todas, sua criação mais excelsa e astuciosa, porque só a filosofia pôde reconciliá-la com suas origens, sem condená-la ao martírio, à culpa. Com a filosofia, a carne assumiu-se como existente, a saber, como angústia.

Uma nota esclarecedora

Aos que creem numa fonte transcendente doadora de sentido,  pode parecer que repisar a ideia do absurdo da existência constitui um hábito por meio do qual não se faz nada mais do que inscrever numa estrutura linguística uma antítese, por si mesma desprovida de qualquer significado. Quando uma expressão linguística é usada ad nauseam, ela acaba por agastar-se semanticamente,  ela torna-se um truísmo, uma combinação sonora já cansada, ipso facto, incapaz de apelo fisiopsicológico na constituição integral do enunciatário.
Na filosofia existencialista, Kierkegaard, expoente moderno do existencialismo cristão, foi, sem dúvida, o pai do absurdo. Opondo-se ao hegelianismo, afirmou tanto a impossibilidade de apreender o indivíduo, enquanto subjetividade, num sistema racional quanto a necessidade de instaurar uma ética religiosa calcada sobre a crença numa transcendência inacessível. No existencialismo de Sartre, por seu turno, o absurdo recobre a impossibilidade de justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um sentido. Absurdo é, pois, uma categoria negativa, já que ela descreve a negação de sentido ou de possibilidade de dar ou apreender sentido. Sartre, relacionando o absurdo à existência de Deus, definiu-o como a impossibilidade de o homem ser o fundamento de sua própria existência, definição que ganhou expressão na sua fórmula poética “o homem é uma paixão inútil”. Assim, o homem absurdo está destinado a “ek-sistir”, a saber, a ser para além de si mesmo como uma consciência, isto é, um nada. A consciência é o nada, porque não sendo (seguindo Hurssel) uma espécie de recipiente onde são armazenadas as imagens e representações dos objetos externos, ela se caracteriza fundamentalmente pela intencionalidade, isto é, por tender para fora de si. Daí Sartre extrai uma consequência: não sendo definida por qualquer ser, a consciência pode, porque é nada, transcender as circunstâncias imediatas, imaginar, fazer com que exista mundo.[2]
 Sendo um existente, o homem está “condenado a ser livre”, o que implica ser responsável por seu ser e por sua própria razão de ser. A categoria do absurdo subsume esses aspectos da condição humana, que fazem do homem o fundamento sem fundamento de sua própria existência.
Por fim, a partir de Camus e Kafka, o absurdo aparece com bastante frequência para designar o incompreensível, o desprovido de sentido e o sem finalidade, especialmente nos domínios da moral e da metafísica.
Na obra de Schopenhauer – arrisco-me a dizer -, também podemos encontrar descrições que nos dão a tonalidade do absurdo. Fiquemos com este trecho que, tendo sido obra de um gênio profundamente arguto e cirúrgico, faz alegrar-se minha fisiologia dada a frieza com que o absurdo é posto a descoberto:

“Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. Na vida dos povos, a história só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E, da mesma maneira, a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte, encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem trégua, e morre-se com as armas na mão”.[3]




[1] Emil Cioran e a Filosofia Negativa: Homenagem ao centenário de nascimento. Deyve Redyson (org.). Porto Alegre: Sulina, 2011.
[2] O leitor poderá encontrar uma exposição mais acurada deste e de outros pontos do sistema de Sartre em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2013/12/o-homem-deve-ser-inventado-cada-dia.html
[3] Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 26.

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