sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"O conhecimento é uma chaga para a vida, enquanto a consciência é uma ferida aberta no âmago da vida" (Cioran)

                            

          A filosofia do desespero: o Nada e o Indivíduo [1]


Apresentação e Justificação

Inscrevendo-se no lugar de encontro entre a filosofia trágica e a filosofia pessimista, este projeto vincula-se ao programa de pesquisa em cujo escopo repousa a questão da inscrição do sagrado no pensamento filosófico contemporâneo, reconhecidamente afetado pelo niilismo, que será posicionado, no próprio trâmite investigativo, em cotejo com a metafísica cristã. Nosso intento consiste em investigar o modo como a hierofania (manifestação do sagrado) se inscreve no pensamento dos filósofos Sören Kierkegaard (1813-1855) e Emil Cioran (1911-1995), dois expoentes do que podemos chamar de filosofia do desespero. O instrumental conceitual de que nos serviremos para empreender nossa investigação será fornecido por Nietzsche e Heidegger, filósofos que, como patenteia Cabral (2014), abrem caminho para pensar a inscrição do sagrado na experiência niilista que profundamente marca a vida e o pensamento filosófico contemporâneos. A Nietzsche tomaremos os termos vontade de poder, diosinio, eterno retorno e além-do-homem, os quais, a despeito de suas especificidades semânticas, se enfileiram num campo hermenêutico que sustenta sua filosofia, enquanto filosofia de afirmação da vida. Todos esses termos dão testemunho do esforço empreendido pelo filósofo para superar o niilismo, cujas raízes ontológicas podem ser compreendidas pela consideração da questão da morte de Deus. Já em Heidegger, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado se articula à verdade do acontecimento do ser enquanto tal, estaremos interessados em acompanhá-lo no percurso de seu método fenomenológico-hermenêutico, que lhe serviu para investigar a vida fática do ser aí humano. De modo algum, temos a pretensão, de resto infactível, de recobrir toda a extensão da analítica heideggeriana. Estaremos, por isso, interessados em, partindo do seu apelo a que se retome a questão do Ser em geral, acompanhá-lo em sua análise do Dasein (ser-no-mundo), naquilo que ela nos aproveita para a investigação do modo como o sagrado se inscreve e se ressignifica num pensamento que pensa o ser-no-mundo  a partir do lugar do desespero.
Urge dizer que a primeira questão que se nos apresentou de modo premente, antes mesmo de nos pormos a redigir este projeto, e que acena ao primeiro e fundamental desafio, consiste em como pensar a hierofania no interior de um pensamento filosófico que se faz na relação de um eu desesperado com um mundo esvaziado de qualquer sentido orientador. Não menos urgente é assinalar a importância que terá o conceito de modo de ser em nossa pesquisa. Nesse tocante, nossa investigação se norteará pela hipótese segundo a qual o niilismo, sobre o qual discorreremos mais adiante, enquanto acontecimento histórico e estrutural, foi decisivo para a produção do modo de ser próprio do homem contemporâneo: o homem desesperado. Daí a pertinência da questão sobre como é possível pensar a reinscrição do sagrado nessa existência desesperada.


  1. O Niilismo e a Morte de Deus

1. 1. O Niilismo como princípio de determinação

Principiamos com a observação de que, segundo Cabral (2014, p. 12)[2], o niilismo é um princípio de determinação da história ocidental. A morte de Deus, que é uma conjuntura do nosso tempo, por seu turno, revela a positividade do niilismo. Citemos o autor: o niilismo “é o acontecimento fundamental de nossa história atual” (p.16). Não perdemos de vista, com base em Cabral, o fato de que o niilismo não pode ser pensado reducionalmente em termos de deteriorização dos antigos princípios vinculativos (p. 23). Ainda segundo Cabral (p. 25), a caracterização negativa do niilismo que toma como causas os sintomas, quais sejam, “negação da instituição familiar, dissolução dos paradigmas políticos, rejeição da autoridade dos antigos saberes”, remonta ao romance do escritor russo Ivan Turguêniev.

“As interpretações hodiernas se mostraram insuficientes, pensando o niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, e as interpretações não se preocupam em questionar a condição de possibilidade dessa perda. Sintomatológicas, elas gestaram diversas estratégias nostálgicas e remoralizadoras (...). Trata-se de assumir o niilismo como conjuntura atual do Ocidente e reconduzi-lo à sua condição de possibilidade” (Cabral, 2014, p. 26)


No esforço por repensar o niilismo, é indispensável, portanto, trazer à tona, na investigação, suas raízes ontológicas. O niilismo não se reduz às suas manifestações culturais. O que é preciso investigar é o lugar de determinação de sua essência.
A compreensão do niilismo como um fenômeno com raízes ontológicas torna razoável nossa hipótese de que ele contribui decisivamente para “produzir” um modo de ser característico do homem pós-moderno[3]: o modo de ser desesperado. A estrutura ontológica do mundo é abalada. O mundo não é mais a casa, o lar em que se encontra o homem. O mundo não mais se apresenta como um campo de sentidos sólidos, garantidos por uma heteronomia. A relação entre o homem e o mundo sofre uma irreparável fissura, através da qual irrompe no ser do homem o desespero. Essa relação entre o homem e o mundo passa a ser uma relação desesperada, uma relação em que o homem experiencia um excruciante abandono. Tome-se o que entendemos por “mundo”.
Note-se, de inicio, que sem linguagem, não há psiquismo, mas tão-somente processos fisiológicos, porquanto o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais. A consciência se constitui do conjunto dos discursos que o indivíduo interioriza ao longo de sua vida. O homem aprende a compreender o mundo pelos discursos que interioriza e, na maior parte do tempo, os reproduz em sua fala.
O que chamamos de mundo humano não é somente a totalidade das coisas existentes como dadas à experiência sensorial humana. O conceito de mundo não se reduz, evidentemente, à noção de planeta em que habitamos.
O que é, então, o mundo? Num primeiro momento, realçando a importância da dimensão do simbólico na definição de “mundo”, podemos dizer que o mundo é um campo experiencial entretecido de significados em relação ao qual se constitui o homem e onde ele se conhece. O mundo só existe para o homem, porque é apenas para ele que esse mundo pode ser nomeado. O mundo é tudo aquilo que pode ser dito; é a totalidade ordenada passível de ser nomeada, de modo que as coisas só podem existir para uma consciência humana na medida em que são passíveis de receber um nome. Mas o vocábulo “coisas” designa não só os objetos materiais, acessíveis à nossa experiência sensível, mas também as entidades mentais, como ideias, sentimentos, entes imaginários, etc.
Não há existência possível para o homem fora da dimensão simbólica: tudo que existe para o homem tem um nome. Aquilo que não tem nome, em última instância, não existe, tanto no mundo exterior quanto no mundo interior da mente. O que não tem nome não pode ser pensado; e se não pode ser nomeado nem pensado, não existe.
Embora a linguagem verbal seja o sistema fundamental de criação e significação do mundo – a base fundamental da cultura e da sociedade -, não ignoramos a existência de outras formas de linguagem, como a da matemática, a das artes, as gestuais, etc. Aliás, a linguagem corporal é parte constitutiva do processo de produção de nossas interações verbais. Quando falamos, fazemos gestos com as mãos, revelamos expressões faciais, por exemplo, franzindo as sobrancelhas quando não concordamos com o que nos dizem, etc. As expressões de nosso corpo estão em sintonia com o significado de nossas expressões linguísticas. Não franzimos as sobrancelhas ao mesmo tempo em que demonstramos verbalmente contentamento. Franzir as sobrancelhas pode sinalizar reprovação e é de esperar que se acompanhe de expressões linguísticas que demonstrem reprovação ou insatisfação.
O mundo humano é também um gigantesco acervo de conceitos e conhecimentos. Quanto mais palavras conhecemos, quanto mais conceitos conseguimos articular, maior será o nosso mundo, maior é a extensão e alcance de nossa consciência. A extensão de nossa linguagem é proporcional à extensão do conhecimento que temos do mundo.
Num segundo momento, devemos reconhecer que estamos ativamente envolvidos com o mundo; tanto o mundo como as coisas são então percebidos como dotados de significado em função desse envolvimento ativo. A objetividade do mundo deriva de nossa experiência subjetiva com ele. Essa experiência subjetiva é primária. Os nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e nossas capacidades sensório-motoras. Nossa cognição resulta dessas capacidades e de nossas ações no mundo.
O Dasein é sempre um ser interessado no mundo. O significado das coisas deriva do nosso interesse nelas, e disso resulta o caráter de nosso envolvimento com elas. Naturalmente, nosso envolvimento com o mundo não é tão-somente intelectual ou teórico, mas também emocional, prático, estético, imaginário, etc.
Nossa experiência é sempre um mundo pleno de significados. O mundo que um indivíduo percebe é, em certo sentido, o seu próprio mundo, diferente do mundo percebido por outro indivíduo. Esse mundo próprio é um mundo significativo e os significados que têm são aqueles que o indivíduo percebe.
Uma vez que o mundo é o horizonte a partir do qual é possível a experiência humana, o mundo não se reduz ao meu próprio mundo. O mundo e as coisas que nele encontro têm uma propriedade que independe de meus desejos e de meus interesses, de modo que grande parte dos significados das coisas que nele se topam são significados que encontro no mundo. A ideia de mundo como totalidade de significados implica a assunção de que as coisas só ganham significado na sua relação com outras coisas e seus significados, no horizonte da totalidade do mundo.
Finalmente, o sujeito, que não existe senão no mundo e em sua relação ativa com o mundo, é sempre sujeito que age sobre o mundo e sofre dele uma ação. Esse sujeito não se identifica com uma consciência abstrata, mas é sujeito corporificado. A experiência que temos do mundo tem como base nosso corpo: o mundo não é só objeto de reflexão e de interpretação; é mundo que experimentamos com o corpo, ao qual respondemos subjetivamente com o corpo. Em última instância,  o mundo, antes de ser mundo que compreendemos, é mundo que sentimos.
Com vistas a compreender melhor a dimensão do abalo niilista, ponderemos, brevemente, sobre o significado de existir. Existir é, decerto, mais do que o viver biológico. Se os animais são, se a planta é ( em-si, segundo Sartre), o homem é ser para-si, ao que nós acrescentaríamos, ser-com. Existir é um movimento relacional com o sentido, que é seu fundamento. Para o homem, existir é estar consciente da relação com o em-si. A existência do para si (a consciência humana), dirá Sartre, é liberdade e transcendência, pois que nega sua facticidade tanto quanto os objetos. O homem existe sabendo o que não é. E a relação com o sentido é sempre de abertura para um além de sua facticidade, de sua condição natural. O sentido é lugar de transcendência do homem em relação a essa condição, que não pode negar completamente, é claro (não pode deixar de ser finito), mas que lhe permite continuar a existir na condição de ser-para-a-morte (Heidegger). Ora, se o Dasein é constitutivamente um ser-para-a-morte, se a morte é sua possibilidade mais autêntica, se essa condição é fonte de angústia, não pode o homem abrir mão do sentido, de existir tecendo sentido. Se existir é correr para a morte inevitável; se, como notara Durkheim, a sociedade é um bando de homens que caminha em direção à morte inevitável, o homem está condenado, ao longo dessa corrida, a produzir sentidos, a tecer de significados as malhas de sua existência.
Um exemplo extremamente interessante que ilustra a indispensabilidade do sentido para o existir humano é o fenômeno do suicídio.  É um truísmo dizer que somente os seres humanos são capazes de se suicidar, mas o que daí se segue tem importância filosófica. O homem é o único ser que, deliberadamente, pode dar cabo de sua própria vida e não deixa de ser espantoso, para muitas pessoas, que alguém que goze de perfeita saúde  possa se matar. É possível que as razões para explicar o suicídio variem bastante, mas vistas em conjunto, de uma perspectiva filosófica, elas indicam a percepção pelo indivíduo da absurdidade de sua existência. O suicídio também ajuda-nos a ver a importância da dimensão do sentido para a própria conservação da existência. O suicídio parece testemunhar em favor do fato de que, para o ser humano, a manutenção do viver é dependente de sua coerência simbólica. Pessoas se matam porque a vida deixou de fazer sentido para elas. O niilismo dilui o enraizamento ontológico do homem no mundo, de modo que o homem se sente existindo num vácuo que lhe inspira terror.
Tomemos, agora, a importância do anúncio da morte de Deus. Novamente é Cabral (p. 26) que nos adverte de que a questão da morte de Deus, longe de servir à caracterização definitiva do niilismo, constitui o caminho para a compreensão de suas raízes ontológicas.
É claro que o niilismo exibe um caráter histórico, mas apenas na medida em que marca a presentidade de um processo histórico. O niilismo não só é “um princípio constitutivo de nosso presente histórico”, como também “vigora como determinante do desdobramento de nosso tempo” (p. 27). O niilismo é estrutural, e o é porquanto não se reduz às suas manifestações culturais, mas “acomete o modo de determinação do mundo histórico que é o nosso” (p. 27).



2. O niilismo, segundo Heidegger

Heidegger se lançou à investigação fenomenológica do niilismo, tendo em vista a descrição de suas raízes históricas e mais profundas. Para tanto, situou sua análise no lugar de abertura do ser, na ‘clareira’ (Litchung) do próprio ser.  É este o lugar de abertura de revelação-ocultamento do ser ao homem, que caracteriza a história do pensamento ocidental.
O homem ocidental experiencia o ente que se lhe apresenta de diversas formas, ao longo do tempo: algo gerado pela natureza ou artefato, criação divina, coisa extensa, objeto, matéria submetida à análise, à prova e à pesquisa cientificamente orientada. Vê-se, pois, que o “ser do ente” é algo que se apresenta cada vez de um modo diferente.
Heidegger observa, no entanto, que o homem, cada vez em que se debruça sobre a compreensão do que são os entes em seu ser, ele transcende o plano dos entes. Essa transcendência é metafísica. A metafísica é, portanto, para o homem ocidental, o modo fundamental de compreensão do ser do ente. A metafísica acontece no “apresentar-se” do ente, de uma certa forma, ao homem que se ocupa de compreendê-lo.
Quando o ente é definitivamente compreendido e determinado num dado momento histórico, por exemplo, como vontade de poder ou como trabalho, quando o que mais importa é se apropriar do ente como fonte possível de energia como coisa a serviço do trabalho técnico-científico, a abertura originária do ente, isto é, seu ser suscetível de diferentes compreensões se fecha. Disso resulta não só o esquecimento do ser, como também o esquecimento desse esquecimento. É justamente essas duas formas de esquecimento que caracteriza, para Heidegger, o niilismo. O niilismo, na visão heideggeriana, é esta situação em que “não há mais nada” do ser – donde a necessidade premente de retomar a pergunta sobre a essência do ser.



3. A morte de Deus como imperativo histórico

Em primeiro lugar, é premente considerar a pergunta “o que é Deus, para Nietzsche?”. Para Nietzsche, Deus congrega em si diversos conceitos metafísicos tradicionais: o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito. Deus, nesse sentido, dota o devir de um estrutura de sentido sob uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos (p. 29). Mas Deus também representa o princípio que articula e determina as diversas ações humanas, mormente em razão da influência do pensamento medieval cristão. Segundo Cabral (ib.id.), “o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórico e praticamente”.
O que sucedeu, então? O acontecimento histórico da morte de Deus acarretou no homem o sentimento de abandono, visto que esse acontecimento significou a dissolução da estrutura sólida de caráter metafísico-existencial (p. 29-30). Enfatize-se que Deus encerrava em si o princípio metafísico e o sentido último da existência. Daí se segue que Deus era o signo que permitia pensar o absoluto, ter acesso a ele. Deus também representava a instância de estruturação e normatização das ações e dos pensamentos. Sua morte, portanto, assinala o desmoronamento daquele sentido último estruturante da existência. Sua morte impede o acesso ao absoluto ou ao “em si”, já que estes não mais existem. O devir carece de fundamento ontológico, e as ações não mais encontram apoio em um sentido último e absoluto.

“(...) O acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas (...), a instabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo” (Cabral, 2014, p. 30, grifos nossos).


É oportuno retomar aqui a concepção do sentido como algo em aberto com vistas a compreender o que se pode concluir dessa abertura de um novo campo hermenêutico que se distingue do pensamento metafísico. Ora, o pensamento metafísico opera sempre com base na crença na unicidade do sentido e no controle sobre o sentido. Esse pensamento, na sua modalidade religiosa, se estrutura num discurso autoritário, onde mais expressamente se manifesta a dominação pelo uso da palavra. Por outro lado, o campo hermenêutico que se abre, com o imperativo da morte de Deus, não é mais coagido por um “em si” que sustenta a unicidade do sentido. Sua abertura é, pois, um alargamento do horizonte de possibilidades de sentido.



4. O suicídio

Num horizonte pessimista, o suicídio aparece como uma questão premente. Afinal, é razoável supor que um pessimismo exacerbado pode culminar com a própria negação da vida num domínio não mais teórico, mas prático. Camus – é oportuno lembrar – foi assertivo ao considerar o suicídio, em seu O Mito de Sísifo (2009).  Logo de início, ele escreve: “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia” (p. 17). De modo algum, estamos a sugerir que todo pessimismo filosófico traz em germe o desejo pela consumação do suicídio, tampouco que os filósofos denominados de pessimistas recomendam como solução última para o drama da existência, para a absurdidade do homem, o suicídio. Notemos que Schopenhauer afirma ser o suicídio um ato insensato. Vale acompanhar a posição de Schopenhauer nesse tocante, a qual será apresentada aqui de modo bastante esquemático. Para Schopenhauer, o suicídio é o aniquilamento do indivíduo, enquanto fenômeno, e não da vontade. O que se nega no suicídio não são os males da vida, mas sim as alegrias. O suicida deseja a vida, quer a vida. Sua insatisfação não decorre senão das contradições de que está impregnada a vida. Prossegue Schopenhauer, argumentando que, ao destruir o corpo, o suicida renuncia à vida, sem jamais negar o querer-viver. O suicida deseja a vida e até aceitaria a existência, se ela não fosse continuamente marcada por circunstâncias infelizes e penosas.
Ocorre que o suicídio – e aqui reside um aspecto importante para a nossa argumentação – se nos revela a contradição do querer-viver consigo mesmo. No grau mais elevado da objetivação da vontade, isto é, no indivíduo humano, essa contradição se manifesta com uma força poderosa: o indivíduo declara guerra contra si mesmo; ele quer ardorosamente a vida ao mesmo tempo em que, com ímpeto, se lança à tarefa de remover as adversidades; mas a vontade individual prefere suprimir o corpo a deixar-se sucumbir à dor. Schopenhauer concluirá dando-nos a conhecer a seguinte condição paradoxal: o suicida cessa de viver porque não pode deixar de querer. Não interessa nos deter nas consequências envolvidas na tentativa de Schopenhauer rejeitar o suicídio como solução para a dor de existir. Parece-nos, em todo caso, que Schopenhauer desloca o problema do suicídio da dramaticidade da existência individual (diríamos, com Merleau-Ponty, da corporeidade do vivido) para o domínio do em-si indestrutível e abstrato, de uma Vontade que não carece nunca de fenômenos. Schopenhauer parece recomendar uma resignação do indivíduo à essência da vontade, que é a dor, como um caminho para a salvação que deseja e que, ao contrário do que crê, não alcançaria com a morte, pois esta, eliminando o fenômeno, permite que a Vontade se afirme. A necessidade acompanha o aparecimento da vontade, e o indivíduo é impotente para suprimi-la, e ilude-se ao supor que o faz pondo termo a sua vida corporal. Há uma série de pressupostos que, forçosamente, silenciamos, como, por exemplo, o de que, para Schopenhauer, a morte não é aniquilação, o de que o suicídio não nos oferece o não-ser, o de que o suicídio constitui ele mesmo um obstáculo à redenção, etc.
É preciso abandonar, no entanto, o curso dessas reflexões para assinalar o que, deveras, concerne à nossa argumentação: no horizonte do pessimismo filosófico, a problematicidade do suicídio parece suscitar a necessidade da consideração da reinscrição do sagrado como uma presença silenciosa que desencoraja a consumação desse ato ao qual a vida debilitada no desespero se inclina. Faz-se mister uma observação aqui: acreditamos poder encontrar em Kierkegaard – como esperamos fique claro mais adiante – um terreno seguro em que nos movimentaremos para pensar a questão do desespero; mas, na medida em que a questão da reinscrição do sagrado deverá ser pensada à luz de uma filosofia do desespero que não se orienta por nenhuma promessa metafísica, ou melhor, de uma filosofia em cujo horizonte desapareceu o lugar de Outro transcendente que responde pelo sentido último, segue-se daí que o desespero deverá ser interpretado como desesperança, isto é, como perda profunda e irremediável de qualquer esperança numa redenção por uma transcendência. O estado de desespero é, portanto, aquele experienciado por quem já não aguarda, não espera nada mais além do real, por quem orienta sua vida unicamente pela imanência. O desespero, quando consumado, pode, no entanto, ser alegre e ativo (ativo porque liberta o homem da passividade suposta na esperança). Estamos, neste momento, pensando com Spinoza, ao definir a alegria, em sua Ética (2011: 141), como “a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”. Trata-se de encaminhar uma reflexão sobre o desespero em que ele se revele não como mera perda e abandono, mas como estado em que o homem, não sem esforço, não sem enfrentamento de si mesmo, quer realizar a sua perfeição. Esse estado de perfeição, Spinoza chamou de beatitude (p. 232).
Diferentemente do que sucede em Kierkegaard, em cujo pensamento ainda se vê Deus como a instância ontológica responsável pela origem do sentido existencial em relação à qual o homem se esforça por realizar a síntese entre o finito (corpo) e a alma (infinta), em Cioran, essa instância dá lugar ao Nada. Cioran pergunta-se sobre o modo como pode encontrar sentido em seus tormentos, o que sugere que o sentido pudesse de algum modo ser descoberto nas regiões desérticas e aterradoras do seu ser. A intuição do Nada e a evidência do sofrimento elidem a possibilidade do sentido. O sentido se põe então como um problema para a existência desesperada: não se trata mais de buscar sentido, esperar um sentido já posto, mas de produzi-lo, construí-lo. É o homem (o indivíduo humano) que precisa construir sentido em face de um universo indiferente, infinito e escuro. Do que se expôs até aqui, segue-se a urgência da questão: o que há na condição humana desesperada que a move em seu desespero? O que a faz, apesar do desespero, prosseguir em sua marcha, de resto, absurda? A nossa hipótese nos encaminha à busca por uma resposta mediante a especulação sobre a reinscrição do sagrado.





[1] Este texto é parte do miniprojeto Niilismo e Teofania: a reinscrição do sagrado na filosofia do desespero : uma abordagem de Kierkegaard e Cioran, submetido à FAPERJ como requisito para obtenção de uma bolsa de iniciação à pesquisa (UERJ).
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014.
 [3] LYTOARD, J.F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 2008.

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