No horizonte da
depressão
Estilhaços filosóficos
Os sintomas são recorrentes. Hoje, pela
manhã, eles me acometeram. Estou irritadiço, enfadado, fadigado, e
profundamente desanimado; mas disposto a me tratar. Reconheço-me doente e
preciso tirar algum proveito disso. Volto aos livros... Camus: “só
existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.”
A
filosofia só me serve se, de algum modo, me ensina a viver bem; de outro modo,
não me serve sequer para “pregar um prego”. Ontem, uma amiga da UERJ me ligou,
preocupada e atenciosa; disse que precisa de mim e de meu potencial, que o
mundo precisa de meu potencial; isso me alegrou momentaneamente e me gestou
alguns pensamentos. Pois sou um educador, e nada me dá tanto contentamento
quanto provocar o desejo pelo saber. Sei que a docência, neste país, sofre de
muitos poréns; as dificuldades e as frustrações acompanham a lida diária do
professor; elas são reais e até o desencorajam... Mas há algo que me é
visceralmente verdadeiro: VIVER É SEMPRE RESISTIR. O sofrimento pode ser fonte
de criação. Viver é resistir ao não-ser, à tendência da vida a destruir, a
arruinar... Daí que existir é trabalho de edificação, e se a filosofia não se
põe a serviço desse trabalho, de nada serve realmente, pois que filosofia “é a
vida tentando se pensar”; onde há pensamento há resistência, fôlego... Mas acho
sinceramente que isso é destino (que os gregos tematizavam como necessidade
absoluta) – diríamos hoje predisposição genética – porque nem todos se
dispõem ao exercício da filosofia, ou à arte da poesia, que também é uma forma
de pensar, distinta, se bem que mais elevada...
A
academia matou a filosofia... Hoje a experiência que os estudantes de filosofia
têm com a filosofia na universidade é semelhante à que os vivos têm com os
mortos ou à que o jardineiro tem com o jardim; eles nutrem por ela uma
deferência ou a cultivam; mas essa experiência está longe da experiência
originária dos gregos... Em todo caso, é preciso passar pela filosofia
acadêmica para depois abandoná-la, (re)criando um modo próprio de fazer
filosofia, de vivê-la... Não viso ao diploma por si mesmo; já os tenho; viso à
fruição do prazer que a filosofia pode proporcionar e de que no momento estou
sendo privado. Ou não totalmente privado, porque mesmo ausente das aulas, não
estou ausente dos livros que me ensinam a filosofar, a saber, a viver.
O
que sou senão apenas mais um dentre os que sofrem e precisam dar sentido ao seu
sofrimento, para resistir na existência, que é tarefa, que é trabalho de
edificação, pois a morte está imiscuída na estrutura de uma única célula, a
fazer seu trabalho continuamente... Por isso, as condições de manutenção da
vida são sempre frágeis... É preciso resistir... existir, resistir, ou desistir
– todas se prendem ao latim SISTERE (‘tomar posição’, estar fixo).
Os
antigos preconizavam que o essencial é viver o instante, é pedir ao presente o que
ele pode dar... É também aproveitar o momento propício (Kairós), a densidade da
duração, aquela ponta de tempo. Trata-se de ser indiferente ao passado e ao
futuro. É alegrar-se na experiência do momento sem esperança de retorno. Quão
difícil é isto quando o momento é impregnado de sofrimento! Não obstante, o que esta lição oferece se revela profundamente verdadeiro: o presente é o real; o
real é o presente.
“Aristipo lamenta que a maioria não
saiba encontrar o júbilo onde ele se encontra: na adesão ao instante, na
expansão de si limitada ao presente do qual é preciso tirar proveito como de
uma oportunidade que não volta a se apresentar. O pecado pagão consiste em
perder o presente”.
O tédio: tema sério. Filosoficamente
importante. No sonho, como pensava Nietzsche, as configurações do real aparecem
como produto de um processo criativo do qual o homem se reconhece como agente
produtor e criador... No sonho, cada indivíduo é artista pleno, observou
Nietzsche. Justamente o que nos falta na vida em vigília... E na experiência
estrutural do tédio existencial.
“Mas, e se
não houver religião suprema nem sentido político perfeito para a vida? E se o
sentido da vida for a própria vida, e vivê-la com sabedoria e ternura for o
único propósito que lhe pudermos dar? Então a via cômica pode nos salvar de nós
mesmos, persuadindo-nos a nos levar menos a sério (...)”.
A falta de sentido exuberante da vida é
o que pode nos enrobustecer o amor pela vida e pela vida dos outros com quem a
compartilhamos. É por esse caminho que me esforcei por pensar a reinscrição do
sagrado numa filosofia do desespero, como a de Kierkegaard e a de Cioran.
Afinal,
“Não
sabemos por que a Terra, a nossa mãe provedora, porém indiferente, nos pariu, e
ela talvez não saiba também; mas aqui estamos, lançados na exuberante falta de
propósito do ser. Parece uma pena não desfrutar dela por si só. Mas, antes de
podermos contemplar esse estado feliz, teremos de pensar novamente nos monstros
que reprimem a alegria humana – e nas pessoas notáveis, poucas em qualquer
geração que resistem a eles” (p. 168-169).
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