Um itinerário filosófico-(des)amoroso
O amor-paixão e suas
desventuras
Na
história do pensamento filosófico,
não foram raros os filósofos que levaram
a efeito uma crítica corrosiva do amor, que os levou a considerá-lo uma espécie
de mal contra o qual deveríamos nos imunizar. Pode-se citar, entre os filósofos
para os quais é necessário prevenir-se contra as maquinações do desejo amoroso,
Lucrécio, Schopenhauer e Nietzsche. Se nosso interesse é meditar sobre o amor
filosoficamente, cumprir-nos-á, de início, reconhecer a necessidade de
distinguir entre três tipos de amor, contemplados no curso da tradição:
amor-eros ou amor-paixão, amor-philia e amor-caritas.
Quando
me debruço sobre o tema do amor, concebendo-o como experiência de envolvimento
entre um homem e uma mulher, e busco encaminhá-lo, tomando como modelo para o
desenvolvimento de minhas reflexões, o amor materno, que defino como amor de
cuidado, estou ciente de que construo uma perspectiva de amor idealizada,
explicável, no entanto, pela interpretação psicanalítica, segundo a qual
escolhemos nosso parceiro amoroso com base no modelo de amor constitutivo de
nossas experiências com nossa mãe. A forma como se deu essas experiências de
amor vai moldar nossas escolhas amorosas na fase adulta. O equívoco que se
segue dessa tentativa de estender um modelo de amor, fundado na experiência do
cuidado, à busca por entender a experiência de amor entre um homem e uma
mulher consiste em ignorar que essa experiência de amor é sempre a de um amor
interessado e sexual. Disso resulta que, segundo vários filósofos, essa
experiência de amor, fundada na atração sexual, é uma experiência de
possessividade, contaminada pelo ciúme e pela ilusão de fusão.
Quando
Schopenhauer observou que o amor é um mal, ele se referia ao amor- paixão, ou
ao amor romântico. A paixão amorosa é um perigo que Lucrécio, filósofo romano
do século I a.C, tratou de denunciar. Lucrécio recomendou que os homens
deveriam evitar se apaixonar, sob pena de se tornarem escravos de seu desejo
jamais satisfeito definitivamente. O desejo sexual é fonte de sofrimentos, pois
carreia ciúme e inveja, além de levar também os amantes a idealizar um ao
outro. Poder-se-ia dizer que os que se deixam embeber-se da paixão amorosa estão
a amar a imagem construída do outro, e não o outro tal como realmente é.
Este
texto se destina à exposição e ao esclarecimento do pensamento desenvolvido por
Lucrécio, Schopenhauer e Sartre acerca do amor, na tentativa de nos fazer ver
as maquinações com as quais nossa sensibilidade moderna está entrelaçada, por
força do trabalho de uma tradição romântica, cujos alicerces repousam numa
longa tradição socrático-platônica e cristã, no interior da qual o valor do
amor foi sobremaneira estimado. É certo que o Romantismo se encarregou de
deturpar a visão de amor platônica, a qual não privou o amor de sua dimensão
sexual; devemos a essa tradição romântica a crença, muito corrente no senso
comum, de que o amor platônico é amor da impossibilidade de realização, da
impossibilidade de consumação sexual. O amor platônico é impulsionado por Eros
e nunca deixa, por isso, de ser erótico. No entanto, o amor para Platão deve
conduzir os amantes, numa escalada de conhecimento, a amar o Belo em si. Os
amantes são produtores de belezas; de modo que os enamorados devem ser movidos
a amar o saber, a filosofia, até experienciar o amor à Forma, à Essência do
Belo.
Cumpre
frisar que o amor que será por mim contemplado nesta exposição é o amor-paixão.
1. Da necessidade de não se
apaixonar: uma lição de Lucrécio
Lucrécio,
poeta e filósofo romano do século I a.C, tornou-se famoso por seu poema
filosófico De rerum natura (Da
natureza das coisas), no qual enaltece Epicuro e revela sua visão de mundo.
Lucrécio, poeticamente, descreve os fenômenos da natureza, os mais belos e os
mais horríveis, esclarecendo suas causas naturais, à moda do atomismo
mecanicista de Epicuro. Para Lucrécio, a filosofia precisa libertar os homens
do terror, das superstições e do medo dos deuses. Face a esses medos, o
filósofo deve empreender a busca pelo sentido do belo e a tranquilidade da
alma.
A
Roma de Lucrécio era um lugar de pragmatistas. O pragmatismo estruturava quer a
esfera política, quer a da engenharia, quer ainda a do amor. Para Lucrécio, o
amor não é mais do que um impulso natural que se corrompe quando se torna
objeto de expectativa para a remissão do sofrimento (concepção esta que a Roma
cristianizada viria a rejeitar, quando o cristianismo conferiria ao amor um
valor supremo e o veria como uma força capaz de remir o sofrimento, o pecado e
a morte), do mal e da morte.
Lucrécio
atribuiu ao amor e a amizade um lugar central na vida, mas rejeitou o
endeusamento da paixão, a qual era vista como uma espécie de escravidão e
portadora das mais terríveis infelicidades. Tendo examinado cuidadosamente o modus
operandi do desejo sexual e a irresistível necessidade em que ele está
baseado, a saber, a necessidade de procriação e de prazer, Lucrécio esperava
que nós nos tornássemos capazes de controlá-lo, em vez de nos deixar controlar
por ele. Assim, acreditava que nos libertaríamos do medo, da loucura e da
ilusão consequentes da tirania do desejo.
Lucrécio
entendia que aquilo que as pessoas eroticamente embriagadas chamavam de amor
não é senão um sintoma do instinto inconsciente de autoperpetuação. Seu modus
operandi é poder e manipulação, guerra e ilusão.
O
amor não era, para ele, uma virtude, mas um perigo; e a arte de amar consiste
em viver esse instinto impulsivo e imprudente sem nos submetermos a ele. Fica
excluído dessa visão de amor qualquer domínio de espiritualidade.
O
sexo vicia – disso tinha certeza Lucrécio. O desejo nunca é satisfeito de modo
definitivo e, diferentemente de outras formas de desejo, como o de comida e de
água, quanto mais buscamos satisfazer o desejo sexual, mas dele ficamos
inflamados. Lucrécio não negará a necessidade de gratificação do apetite
sexual, mas recomendará moderação. Seu intento é nos libertar da tirania desse
desejo e da paixão amorosa.
Não
se segue do exposto acima que Lucrécio deixe de regozijar-se com o impulso
amoroso, o qual vê como um poder generativo da deusa Vênus. A vitalidade desse
poder emociona-se consigo. É ela o deleite ao qual devemos a conservação da
vida como um querer mais de si mesma. Isto é, um querer de procriar.
Não
devemos nos apressar em concluir que Lucrécio entendesse ser a vida boa em si
mesma, nem má. Não sendo má a vida em si mesma, Lucrécio não era um pessimista,
como o foi Schopenhauer. Lucrécio era um desalentado: ele evidenciava os horrores
da vida cruamente, sem daí concluir que fosse mal em si.
Schopenhauer
também verá a paixão sexual como uma energia erótico-cósmica de que está
impregnada a natureza. Essa força vital procriadora ele chamará de “Vontade de
vida”. No entanto, ao contrário de Lucrécio, por reconhecer nessa força sua
insaciabilidade e o sofrimento a que ela nos conduz, ele verá a vida como um
mal em si mesma.
2. Os três remédios de
Lucrécio
No
mundo antigo, grego e romano, a necessidade de prevenir-se contra a loucura do
amor, mormente contra a tendência a ser idealizado ou a ser demonizado, quando
nos lega uma grande decepção, era lugar-comum. Lucrécio oferece três remédios a
esses males do amor, quais sejam: contemplação, casamento e promiscuidade.
Destarte, a tirania do sexo pode ser acalmada pela contemplação, contida pelo
casamento e, se tudo o mais fracassar, dissolvida pela promiscuidade.
Pela
contemplação, desfrutamos prazeres simples e sociáveis. Podemos ver pessoas
sexualmente atraentes, sem nos deixar dominar pela lascívia, o medo, o ciúme, a
possessividade ou outras paixões tirânicas.
Correndo
o risco de dizer muito esquematicamente, uma vez nos surpreendamos desejando
fortemente alguém, devemos, propõe Lucrécio, estabelecer uma relação de amizade
com essa pessoa e desfrutar deleites moderados, inclusive sexuais. Aqui,
Lucrécio revela-se claramente epicurista. Mas reconhece que é extremamente
difícil disciplinar nossos impulsos sexuais e nossos anseios por emoção
embriagadora em geral.
Aos
que, dentre nós, são incapazes disso, ele sugere o casamento e a geração de
filhos, como meio de por termo à tendência de produzir ilusões sobre o nosso
parceiro amado. Ambos os amantes passariam a se ver com realismo, sem o qual as
relações humanas estão destinadas ao malogro. O desejo, em virtude do
casamento, será refreado pela satisfação circunstancial, bem como pelas rotinas
da vida conjugal. O sexo será canalizado para seu fim próprio: gerar a prole.
Lucrécio
não pretende ser cínico ao sugerir o casamento como remédio para arrefecer o
desejo sexual, livrando os amantes de suas armadilhas; ao contrário, ele elogia
o casamento, porquanto ele resolve o eterno problema de como tornar possível a
socialização e a satisfação de nossos anseios desregrados, tornando possível,
assim, atingir uma relação duradoura e feliz.
Não
há espaço para dar a saber o que nos diz Lucrécio sobre quem deve ser a pessoa
adequada para a união conjugal. Considere-se, finalmente, o seu último remédio
contra a tirania da paixão amorosa: a promiscuidade.
Aos
que são torturados pela obsessão vã devem, pondo freio à imaginação, se lembrar
de que há outras amantes atraentes no mundo e devem buscar alívio para sua
carga libidinal onde quer que haja oportunidade de sexo recreativo. Escreve,
assim, Lucrécio:
Mantenha longe da imaginação e afugente
Tudo que estimula o amor;
Volte sua mente para outros lugares
Livre-se do fluido em qualquer corpo que
puder
Em vez de guardá-lo para uma pessoa
O que está fadado a levar a infortúnio e
terminar em dor.
3. O amor na visão de Schopenhauer
A
filosofia schopenhaueriana é marcada por um profundo pessimismo. Schopenhauer
mantém que toda a realidade é governada por uma vontade cega e absurda de viver
que leva todo o universo e cada ser vivo a desejar incessantemente algo que,
uma vez obtido, torna-se motivo de insatisfação. Vê-se já aqui a medida da
dívida que o pensamento de Freud tem para com o pensamento de Schopenhauer.
Segundo
o filósofo de Dantzig, a vida do ser humano combina tragicamente dor e tédio,
anseio e luta: desta situação é possível libertar-se somente pondo fim à
vontade e a si próprio, alcançando a tranquilidade nulificante de uma espécie de
nirvana.
O
amor é visto, portanto, à luz dessa concepção pessimista da vida, como um
sentimento falso e enganador, primeiramente porque está calcado sobre o
instinto sexual, que não é outra coisa senão um fatídico estratagema de que se
serve a natureza e, por isso, a vontade, a fim de perpetuar a si própria, por
meio da produção de novos indivíduos. Novamente aqui vemos o amor reduzido a um
instinto, sem bem que perverso, de procriação. Em segundo lugar, o amor é
ilusão, porque a maquinação da natureza se dá à revelia dos envolvidos na
experiência amorosa, os quais acreditam que estão vivendo livremente seu amor,
embora eles sejam meros instrumentos da vontade postos a serviço da sua
finalidade própria: a reprodução. Para Schopenhauer, o casamento também atende
a esta lógica rígida e, portanto, é desprovido de qualquer valor sagrado.
O
amor é servo da vontade, da irracionalidade que governa cada evento e situação,
fato demonstrável pela loucura que, não raro, caracteriza a experiência
amorosa. O amor é poderoso e engana. E o ser humano que sucumbe ao jugo do amor
é capaz de cometer qualquer perversidade e de resignar-se a toda sorte de
sofrimento. O amor o ilude prometendo-lhe uma felicidade não factível. O prazer
sexual é sempre uma experiência momentânea e insatisfatória, porque a
finalidade do amor não é o contentamento do homem e da mulher, mas possibilitar
a geração de filhos e, assim, a perpetuação da natureza.
Schopenhauer,
contudo, contemplou outro tipo de amor, que podemos chamar de amor-caridade.
Trata-se de um sentimento de compaixão que o ser humano experimenta quando
descobre que sua própria dor é igual à dos seus semelhantes. Esse tipo de amor
leva-o a se inclinar a um sentimento de partilha e solidariedade. Mesmo sendo
ateu, Schopenhauer concebe um tipo de amor semelhante ao amor cristão, isto é,
o amor-caridade, que não satisfaz quem o experiencia, mas expressa tão-só
piedade para com a miserabilidade da condição do outro. Poder-se-ia dizer que
esse tipo de amor conduz os homens a se reconhecerem como filhos do sofrimento
inerente à existência.
4. O amor, segundo Sartre
Na
fase existencialista de sua obra, Sartre não cessou de insistir no caráter
conflitante das relações interpessoais. Seu pessimismo é extensivo às relações
amorosas também.
Na
opinião de Sartre, o amor é irrealizável, dado que qualquer relação de um ser
humano com outro implica uma série de contradições insolúveis. É de se notar,
de início, que a experiência amorosa impõe limites à liberdade alheia, não
obstante acreditarem os amantes que respeitam a liberdade um do outro.
Além
disso, segundo Sartre, o impulso amoroso funda-se numa vontade de unir-se
totalmente à pessoa amada, na esperança, de todo injustificável, de que se
estabeleça, assim, uma reciprocidade plena de sentimentos e anseios. Pura
ilusão! – dirá Sartre. Toda tentativa nesse sentido está fadada ao fracasso,
porque, embora o amante declare ser tudo para o amado, sem que isso signifique
reprimir-lhe a livre expressão de sua personalidade, a reciprocidade de
sentimentos resulta irremediavelmente impossível, de modo que só resta a cada
qual um isolamento insuperável.
Não
há lugar para esperanças e salvações, na visão sartreana de amor, porque as
relações humanas jamais escapam à lógica da posse e da sujeição. O amor é
desprovido de autenticidade, já que as relações humanas também o são. Logo,
elas, tanto quanto o amor, estão destinadas ao fracasso. Longe de os outros
serem fontes para relacionamentos gratificantes, eles são, para Sartre, nosso
próprio inferno.
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