segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Escrever é repetição

                                 


                                 A repetição do novo


Definitivamente, o calor não favorece a produção intelectual. Djavan já nos lembrava, cantando: “um dia frio, um bom lugar pra ler um livro”. O frio é convidativo à leitura, ``a escrita e aos estudos. A despeito disso, há pouco, entretinha-me com a leitura (aliás, prática que ocupa a maior parte do tempo do meu cotidiano, prática que substituiu a experiência com os brinquedos, conservando, por isso – e não apesar disso -, a dimensão do lúdico).
Acordei disposto a escrever sobre Marx, sobre seu materialismo; mas renunciei à intenção, escolhendo o conforto dos livros. E durante a leitura de um deles, encontrei um motivo para escrever – despretensiosamente, sem rigidez teorizante e sem o rigor acadêmico. Este texto é um comentário. Apenas isso. Pretendo, então, comentar dois trechos que colhi de dois livros. Os trechos, no entanto, prendem-se um ao outro tematicamente.
Em Nietzsche e Freud – o eterno retorno e compulsão à repetição (2005), se me depara o que se segue:

“(...) escrever é interpretar, reler, reavaliar, redizer e, assim fazendo, apresentar as mesmas coisas sob outra modalidade, outra tonalidade, outra superfície, outra epiderme, outros disfarces, outras máscaras, outros artifícios. Outra perspectiva. Nesse sentido, a escrita se manifesta como a expressão ou o sintoma de uma compulsão à repetição em que os mesmos fenômenos retornam sempre, se atualizam sempre, mas mediante uma nova maneira de dizer, de significar, de denominar, de designar, de nomear. Por isso, aquele que escreve – e que é dotado da arte de escrever – está sempre a conceber e a dar à luz novos nomes e, portanto, novas verdades. Daí também resultar difícil, para não dizer impossível, dissociar escrita e compulsão à repetição (...)” (p.14).


Em que sentido “escrever é interpretar”? Essa afirmação da identidade entre escrever e interpretar é um postulado da Linguística Textual. Escrever é interpretar, porque, ao escrever, fixamos ou codificamos certo modo de interpretação, de leitura. Escrever é uma atividade de estruturação da (re)leitura. Compreendamos esse ponto. A leitura é uma atividade de produção de sentido. Ela envolve interpretação e compreensão. Quando escrevemos, estamos relendo, estabilizando uma releitura. Quando escrevemos, fixamos nossa leitura e, ao fazê-lo, fazemos retornar o mesmo conteúdo, o mesmo sentido (dentre os sentidos possíveis, não construídos), com outras formas (outras combinatórias, outras estruturas significantes). Escrita é repetição, porque fixação do mesmo; não da mesma forma, do mesmo significante, mas do mesmo significado que, por força da escritura, que é atividade criativa sobre o já-dito, o já disponível, se transforma no outro do mesmo
Na escrita (e no discurso, para falar genericamente), não há criação ex nihilo. O que se cria são estruturações de sentido sobre o já-dito, sobre dizeres anteriores. Apesar disso – e nisso reside a magia – fazemos surgir o novo do mesmo, o novo que, entanto, funda-se em regiões do mesmo. E o mesmo não é tão-só o repisadamente dito, o imitado, ou o repetido ad nauseam; é, ao contrário, fonte de potencialidades para a emergência do novo olhar que atualiza o mesmo, que o faz ressignificar num discurso outro – discurso aqui tomado como atividade sociocognitivo-interativa de produção de sentidos. E os sentidos são múltiplos, “selvagens”, escorregadios, dispersos, fugidios. Escrevemos para domesticá-los, para tentar cerceá-los a fim de realizar nosso projeto de dizer. Escrevemos para represar-lhe a fluidez, todavia, incessante.
Escrever não é reprodução (vocábulo que suscita a ideia de imitação mecanizada, cópia pura e simples); mas repetição. Eis, então, que se nos impõe ao reconhecimento, a esta altura, o paradoxo: há repetição que muda, que se renova, que se modifica, que se transforma. Há repetição que está sempre recomeçando. Pela repetição, as coisas voltam, paradoxalmente, como outras, renovadas, diversificadas, reformuladas, re-escritas, re-criadas, re-ditas. Não há reprodução, nem retorno do idêntico.
Longe de sugerir que a doutrina do Eterno Retorno, de Nietzsche, deva ser interpretada em termos de repetição como fenômeno da atividade do discurso, vale apreender, no trecho em que Nietzsche expõe sua doutrina, a ideia do retorno do mesmo renovado, transformado, agora deslocada para o domínio do devir, do real:

“Que sucederia se, um dia ou uma noite, um demônio resvalasse furtivamente pela tua mais erma solidão e te dissesse: ‘Esta vida, que vives agora e que já viveste, deverás viver mais uma vez e inumeráveis vezes ainda; e não haverá nada de novo nela, mas cada dor e cada prazer suspiro, e tudo que existe de indizivelmente pequeno e grande na tua vida deverá retornar a ti, e tudo na mesma ordem e na mesma sequência – como também esta aranha e este luar – por entre as árvores, e igualmente este momento e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência, que não cessa de virar sobre si mesma – e tu com ela, ínfimo grão de pó”. (A Gaia Ciência, p. 205, parágrafo 341)


Nietzsche qualificou essa sua ideia de inquietante, terrificante e abissal. Como filólogo, estudioso dos clássicos e da Bíblia – e levando-se em conta a ideia de que o novo é ele mesmo repetição -, Nietzsche parece ter entrevisto ou pressentido esta doutrina no pensamento de Heráclito, de Empédocles, de Platão e Aristóteles, dos estóicos e dos Eclesiastes, onde se lê, no versículo nono: aquilo que foi é aquilo que será, aquilo que se fez é aquilo que se fará, pois não existe nada de novo debaixo do sol.


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