A repetição do novo
Definitivamente, o calor não favorece a produção
intelectual. Djavan já nos lembrava, cantando: “um dia frio, um bom lugar pra ler um livro”. O frio é convidativo à
leitura, ``a escrita e aos estudos. A despeito disso, há pouco, entretinha-me
com a leitura (aliás, prática que ocupa a maior parte do tempo do meu
cotidiano, prática que substituiu a experiência com os brinquedos, conservando,
por isso – e não apesar disso -, a dimensão do lúdico).
Acordei disposto a
escrever sobre Marx, sobre seu materialismo; mas renunciei à intenção,
escolhendo o conforto dos livros. E durante a leitura de um deles, encontrei um
motivo para escrever – despretensiosamente, sem rigidez teorizante e sem o
rigor acadêmico. Este texto é um comentário. Apenas isso. Pretendo, então,
comentar dois trechos que colhi de dois livros. Os trechos, no entanto,
prendem-se um ao outro tematicamente.
Em Nietzsche e Freud – o eterno retorno e
compulsão à repetição (2005), se me depara o que se segue:
“(...) escrever é
interpretar, reler, reavaliar, redizer e, assim fazendo, apresentar as mesmas
coisas sob outra modalidade, outra tonalidade, outra superfície, outra
epiderme, outros disfarces, outras máscaras, outros artifícios. Outra
perspectiva. Nesse sentido, a escrita se manifesta como a expressão ou o
sintoma de uma compulsão à repetição em que os mesmos fenômenos retornam
sempre, se atualizam sempre, mas mediante uma nova maneira de dizer, de
significar, de denominar, de designar, de nomear. Por isso, aquele que escreve
– e que é dotado da arte de escrever – está sempre a conceber e a dar à luz
novos nomes e, portanto, novas verdades. Daí também resultar difícil, para não
dizer impossível, dissociar escrita e compulsão à repetição (...)” (p.14).
Em que sentido
“escrever é interpretar”? Essa afirmação da identidade entre escrever e
interpretar é um postulado da Linguística Textual. Escrever é interpretar,
porque, ao escrever, fixamos ou codificamos certo modo de interpretação, de
leitura. Escrever é uma atividade de estruturação da (re)leitura. Compreendamos
esse ponto. A leitura é uma atividade de produção de sentido. Ela envolve
interpretação e compreensão. Quando escrevemos, estamos relendo, estabilizando
uma releitura. Quando escrevemos, fixamos nossa leitura e, ao fazê-lo, fazemos
retornar o mesmo conteúdo, o mesmo sentido (dentre os sentidos possíveis, não
construídos), com outras formas (outras combinatórias, outras estruturas
significantes). Escrita é repetição, porque fixação do mesmo; não da mesma
forma, do mesmo significante, mas do mesmo significado que, por força da
escritura, que é atividade criativa sobre o já-dito, o já disponível, se
transforma no outro do mesmo
Na escrita (e no
discurso, para falar genericamente), não há criação ex nihilo. O que se cria são estruturações de sentido sobre o
já-dito, sobre dizeres anteriores. Apesar disso – e nisso reside a magia –
fazemos surgir o novo do mesmo, o novo que, entanto, funda-se em regiões do
mesmo. E o mesmo não é tão-só o repisadamente dito, o imitado, ou o repetido ad nauseam; é, ao contrário, fonte de
potencialidades para a emergência do novo olhar que atualiza o mesmo, que o faz
ressignificar num discurso outro – discurso aqui tomado como atividade
sociocognitivo-interativa de produção de sentidos. E os sentidos são múltiplos,
“selvagens”, escorregadios, dispersos, fugidios. Escrevemos para domesticá-los,
para tentar cerceá-los a fim de realizar nosso projeto de dizer. Escrevemos
para represar-lhe a fluidez, todavia, incessante.
Escrever não é
reprodução (vocábulo que suscita a ideia de imitação mecanizada, cópia pura e
simples); mas repetição. Eis, então, que se nos impõe ao reconhecimento, a esta
altura, o paradoxo: há repetição que
muda, que se renova, que se modifica, que se transforma. Há repetição
que está sempre recomeçando. Pela repetição, as coisas voltam, paradoxalmente,
como outras, renovadas, diversificadas, reformuladas, re-escritas, re-criadas,
re-ditas. Não há reprodução, nem retorno do idêntico.
Longe de sugerir
que a doutrina do Eterno Retorno, de
Nietzsche, deva ser interpretada em termos de repetição como fenômeno da
atividade do discurso, vale apreender, no trecho em que Nietzsche expõe sua
doutrina, a ideia do retorno do mesmo renovado, transformado, agora deslocada
para o domínio do devir, do real:
“Que sucederia se,
um dia ou uma noite, um demônio resvalasse furtivamente pela tua mais erma
solidão e te dissesse: ‘Esta vida, que vives agora e que já viveste, deverás
viver mais uma vez e inumeráveis vezes ainda; e não haverá nada de novo nela,
mas cada dor e cada prazer suspiro, e tudo que existe de indizivelmente pequeno
e grande na tua vida deverá retornar a ti, e tudo na mesma ordem e na mesma
sequência – como também esta aranha e este luar – por entre as árvores, e
igualmente este momento e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência, que não
cessa de virar sobre si mesma – e tu com ela, ínfimo grão de pó”. (A Gaia
Ciência, p. 205, parágrafo 341)
Nietzsche qualificou essa sua ideia de
inquietante, terrificante e abissal. Como filólogo, estudioso dos clássicos e
da Bíblia – e levando-se em conta a ideia de que o novo é ele mesmo repetição
-, Nietzsche parece ter entrevisto ou pressentido esta doutrina no pensamento
de Heráclito, de Empédocles, de Platão e Aristóteles, dos estóicos e dos
Eclesiastes, onde se lê, no versículo nono: aquilo que foi é aquilo que será, aquilo que se fez é aquilo que se
fará, pois não existe nada de novo debaixo do sol.
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