Uma
filosofia da práxis
Marxismo e materialismo histórico
1. Karl Marx
Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo alemão, nascido em
Trier, proveniente de uma família judia convertida ao protestantismo. Sua obra
exerceu grande influência em sua época e um significativo impacto na formação
do pensamento social e político contemporâneo. Seu pensamento se desenvolveu
quando da ocasião em que entrou em contato com a obra dos economistas ingleses
Adam Smith e David Ricardo e rompeu com o hegelismo e com a tradição idealista
da filosofia alemã. Malgrado essa ruptura, o pensamento de Marx deve muito à
filosofia de Hegel e ao materialismo de Feuerbach no qual foi buscar o conceito
de alienação. Marx reconheceu em Feuerbach o mérito de ter superado a dialética
idealista de Hegel, mas lhe censurou a incapacidade de analisar adequadamente a
autoconsciência e suas projeções religiosas num quadro de referência que
abrigasse a influência determinante de forças econômicas e sociais
fundamentais. Para Marx, todo o materialismo ao longo da história do
pensamento, inclusive o de Feuerbach, apresenta um problema básico: apreende a realidade, a sensibilidade sob
a forma de intuição e não como atividade humana sensível, isto é, como práxis.
O que Marx censurou propriamente em Feuerbach foi o não ter este apreendido a
própria atividade humana como atividade objetiva. Segundo Marx, o materialismo
de Feuerbach descuidou de considerar a práxis. Feuerbach fez abstração do curso
da história, o que o levou a pensar tanto o sentimento religioso como algo em
si ( e não como produto social, produto de condições históricas, materiais
concretas) quanto a tomar o indivíduo humano de modo abstrato. Seu materialismo
– tendo em conta a crítica que lhe desfere Marx -, é um materialismo intuitivo,
porquanto não teria chegado a apreender a sensibilidade como atividade prática.
De Hegel Marx tomou
emprestado o conceito de dialética;
no entanto, censurou seu idealismo e sua noção de verdade cujo desdobramento
culminaria com a assunção do Absoluto. Ao idealismo de Hegel, à luz do qual o
sujeito da história é o Espírito que toma posse de si mesmo ao cabo de um
processo que é a história de suas realizações, Marx opôs seu materialismo dialético, que assenta na
proposição segundo a qual a contradição que move a história não é a contradição
do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva com sua
face objetiva, mas a contradição que se estabelece entre homens reais em
condições históricas e sociais reais. Essa contradição, de acordo com Marx, tem
um nome. Chama-se luta de classes. Os indivíduos só formam uma classe porque se
veem obrigados a sustentar uma luta contra outra classe; do contrário, eles
continuariam a se enfrentar uns aos outros com hostilidade em termos de
competência. O sujeito da história não é o Espírito, consoante pensava Hegel,
mas as classes sociais em luta. A história passa, então, a ser concebida não
mais como história das realizações do Espírito, mas a história do modo como os
homens reais produzem suas condições reais de existência.
Foi, portanto, a partir
tanto da ruptura com a tradição idealista hegeliana, na esteira da qual o real
era compreendido a partir da ideia, quanto da revisão crítica do materialismo
intuitivo de Feuerbach, cujo problema fundamental foi não considerar a práxis
histórica, que se desenvolveu o chamado materialismo
histórico, termo de que fez uso Engels (posteriormente Lênin) para designar
o método de interpretação histórica proposto por Marx. Antes de considerar, em
linhas gerais, esse método, cumpre dar a conhecer quem foi Friedrich Engels,
principal colaborador e amigo íntimo de Marx.
2. Friedrich Engels
Engels (1820-1895) também
era alemão e também sofreu influência do hegelismo. Tendo estudado na
Universidade de Berlim, lá conheceu o trabalho dos “jovens hegelianos”. Engels
não foi só um colaborador teórico de Marx, mas também seu amigo mais íntimo,
tendo-o assistido, inclusive, financeiramente. Ambos escreveram quase sempre
juntos, o que torna difícil distinguir, entre as principais teses do marxismo,
quais são as ideias de Marx e quais são as de Engels.
Admite-se, contudo, que o
materialismo histórico é um produto
típico da pena de Engels, muito embora tenha grande importância no
desenvolvimento da filosofia marxista.
3. Materialismo histórico
Impõe-se-me esclarecer
agora o materialismo histórico. Esse
método recobre a interpretação dos acontecimentos históricos como fundados em
fatores econômico-sociais (técnicas de trabalho e de produção, relações de
trabalho e de produção). O materialismo histórico, endossando a perspectiva
antropológica à luz da qual a natureza humana é constituída por relações de
trabalho e de produção, estabelecidas pelos homens entre si com vistas à
satisfação de suas necessidades, está calcado sobre a tese de que as formas
históricas assumidas pelas sociedades humanas dependem das relações econômicas
que predominam durante as fases que conformam seu processo de desenvolvimento.
A dimensão histórica do
materialismo repousa, portanto, sobre o fato de ele assumir a perspectiva segundo a qual a produção historicamente
diversa da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida
social, política e espiritual. É preciso, no entanto, salientar que só
relativamente as condições materiais são determinantes, porque elas próprias
são produtos da ação histórica. Também só são materiais em um sentido muito
relativo, porque a prática que as modifica na história é condicionada não só
pela base material da sociedade, mas também por fatores ideais.
O materialismo histórico
se opõe a toda forma idealista de pensamento, ou seja, a toda forma de
pensamento que pretende dar primado teórico ao “Pensamento”, à “Razão”, ao
“Espírito”, tomados esses conceitos como realidade primeira, em detrimento das
relações sociais, particularmente as relações sociais de produção. À luz desse
método de análise e de interpretação do real, a natureza humana e as formas
históricas das sociedades são consideradas relativamente às relações de
trabalho concretas, diversas e mutáveis. Por conseguinte, não admite que o
“Espírito” possa ser pensado como o “Sujeito” da história ou o princípio
organizador da totalidade social.
A dimensão histórica do
materialismo repousa sobre a assunção de que a produção historicamente diversa
da vida material condiciona, em última instância, a produção da vida social,
política e espiritual. O materialismo histórico vê a História à luz da
articulação de duas dimensões, a saber, a da superestrutura e a da infraestrutura,
uma das quais condiciona a outra. A superestrutura compreende o domínio dos
fenômenos intelectuais, artísticos, políticos e jurídicos. Nela devemos situar
a ideologia. A infraestrutura é a base econômica da sociedade. O materialismo
histórico preconiza, portanto, que a superestrutura é determinada, em última
instância, pela infraestrutura. Assim, os fatores econômicos constituem a
realidade primeira. A ideia de materialismo,
neste quadro de referência, sublinha o fato de se conceber a
infraestrutura, a dimensão material, como o fundamento. Ele é histórico, porque entende que a formação
da infraestrutura e do modo de produção é historicamente determinada. O modo de
produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e
intelectual em geral.
Não obstante, é sempre
importante ter em conta o fato de que a infraestrutura, embora determine, em
última instância, a superestrutura, não é o domínio exclusivamente
determinante. Destarte, a produção das ideias e das representações incide sobre
a atividade material do homem, e os fatores superestruturais podem tornar-se
determinantes da forma das lutas históricas.
4.
Marxismo
Entende-se por marxismo o conjunto de ideias, de
conceitos, de teses, de propostas de metodologia científica e de estratégia
política e, de modo geral, a concepção de mundo, da vida social e política,
considerada como um corpo homogêneo de proposições que viriam a constituir uma
verdadeira e autêntica “doutrina”, que se pode deduzir das obras de Karl Marx e
Friedrich Engels.
O próprio termo marxismo,
assim compreendido, dá margem à tendência de distinguir o pensamento de Marx do
pensamento de seu amigo e colaborador Engels. É possível também identificar
diversas formas de marxismo, seja em razão das diferentes interpretações do
pensamento desses autores, seja em razão de juízos de valor com base nos quais
haveria um marxismo que se deve aceitar e outro que se deve rejeitar.
Doravante, descerei a
pormenores sobre os conceitos da doutrina marxista. Começarei por esclarecer o
método dialético de Marx; em seguida, apresentarei e definirei os conceitos de modo de produção e meios de produção;
posteriormente, serão contemplados, nesta ordem, os conceitos de ideologia, trabalho e valor, mercadoria, mais-valia,
fetichismo de mercadoria, alienação e
práxis. Na sexta seção deste trabalho, vou apresentar, em linhas gerais, a
visão de Engels sobre o Estado, situando-a no lugar de confronto com a visão
hegeliana de Estado. Na sétima e última seção, apresento, também em linhas
gerais, a dialética de Hegel, tendo em vista sua influência no pensamento de
Marx.
5.
A dialética marxista
5.1. Modo de produção e meios de produção
Desde já, urge frisar que
a dialética de Marx é a antítese da dialética de Hegel. A dialética de Marx se
pretende crítica e revolucionária; ela se apresenta numa forma “racional” e
não, como a de Hegel, mistificada. A dialética marxista está calcada sobre
concepção de realidade como uma totalidade complexa e marcada por contradições.
Ela rejeita as abstrações dos economistas clássicos, que, conquanto
acreditassem haver uma oposição fundamental entre o consumo e a produção, não
se aperceberam de que essa oposição era apenas aparente e de que, em essência,
o consumo e a produção são indissociáveis.
Se, por um lado, Hegel
transformou em sujeito autônomo a ideia, entendida como o demiurgo do real, o
qual se reduziu a uma manifestação daquela; por outro lado, para Marx, a ideia
ou o ideal não é nada mais que o material transposto e traduzido na consciência
do homem. Por conseguinte, o motor da dialética materialista é a forma
determinada das condições de produção e reprodução da existência social dos
homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é,
pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de
trabalho e não-proprietários (trabalhadores assalariados, escravos, etc.).
A matéria de que fala Marx é, portanto, a matéria social, ou seja, as relações sociais entendidas como
relações de produção, o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas
condições materiais de existência e o modo como eles pensam e interpretam essas
relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens
produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens
e de organizarem suas vidas como homens.
De acordo com essa
perspectiva, o sujeito da história não é o Espírito (Hegel), mas as classes
sociais em luta. As classes sociais não são ideias, mas relações sociais
determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais
de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas de
propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio
das instituições sociais e políticas. As classes sociais também são
determinadas pelo modo como os homens, em suas condições materiais de
existência, representam para si mesmos o significado daquelas instituições,
mediante sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado
real de suas relações. Esses sistemas de ideias cuja função é mascarar o
significado real de suas relações sociais materialmente determinadas são
chamados de ideologia. Antes de
considerar o conceito de ideologia, necessário é dar a conhecer o significado
dos conceitos de modo de produção e meios de produção.
Modo de produção designa a relação determinada que as forças produtivas e as
relações sociais mantêm entre si. As relações sociais estão intimamente ligadas
às forças produtivas. No momento em que desenvolvem novas forças produtivas, os
homens mudam seu modo de produção, e, mudando seu modo de produção, a maneira
de ganhar a vida, eles mudam também todas as relações sociais. O modo de
produção, portanto, na visão histórica da dialética marxista, determina a forma
das relações sociais. Os meios de
produção, a seu turno, recobrem o conjunto de ferramentas, instrumentos,
terra, maquinaria indispensáveis ao processo de trabalho e que constitui a
propriedade do capitalista.
Na dialética
materialista, a produção é imediatamente consumo; e o consumo, imediatamente
produção. Um é imediatamente o oposto do outro.
5.2. Ideologia
Em Marx, a ideologia é uma ilusão necessária
à dominação de classe. Por ilusão, deve-se entender abstração e inversão. A abstração
é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência
imediata, como algo dado, feito e acabado, que se presta à classificação, à
ordenação, sem que nunca nos indaguemos como tal realidade foi concretamente
produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, ou seja, porque produzida
por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de
maneira necessária. Por inversão deve-se entender o fato de se tomar o
resultado de um processo como se fosse o seu começo, de se tomar os efeitos
pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo
determinante. Assim, a ideologia, porque é abstração e inversão, permanece
sempre no plano imediato do aparecer. Em suma, a ideologia, segundo Marx, é o
modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido) pelo qual os homens representam o
aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Por influência
da ideologia, a relação entre o real e a ideia aparece para a consciência de
modo invertido: não mais o real justifica a ideia, mas, ao contrário, a ideia é
que explica o real.
5.3. Trabalho e valor
A condição sine qua non da história é a satisfação
das necessidades. Para satisfazê-las, os homens constroem os meios necessários.
Atingindo o seu fim, os homens modificam a própria natureza. Ao modificar a
natureza pelo trabalho, os homens modificam, pelo trabalho, a si mesmos. Numa
primeira aproximação, o conceito de práxis,
no interior da teoria marxista, recobre a relação dialética entre o homem, o
trabalho e a natureza. Retomarei esse conceito na seção seguinte. Por ora,
descerei a considerações sobre os conceitos de trabalho e valor.
Todo processo de trabalho
produz um valor, que é, inicialmente,
um valor de uso, ou seja, algo útil
à vida humana, passível de ser trocado por outro valor de uso (por exemplo, uma
camisa por um sapato). Assim, a utilidade de uma coisa faz dela um valor de
uso. O valor de troca é, por seu
turno, uma forma que a mercadoria assume enquanto relação quantitativa, isto é,
enquanto proporção na qual se dá a troca entre os valores de uso. Ele surge com
a divisão social do trabalho e como tal tende a eliminar a dimensão de
utilidade do produto do trabalho e a reduzir o próprio trabalho a uma dimensão
abstrata, indiferenciada.
O valor de troca do
produto do trabalho não reside no objeto produzido, tampouco na sua utilidade.
Na relação de troca, esse valor aparece como independente do valor de uso. O
que torna possível a troca não é a utilidade, mas o fato de os objetos serem
produtos do trabalho. A fim de dilucidar a distinção entre esses dois
conceitos, é imperioso considerar a gênese da mercadoria.
O que é a mercadoria? A
mercadoria não é a coisa em si, mas um valor. Como valor de uso, vale por sua utilidade; como valor de troca, vale
pelo preço no mercado. O valor de troca comanda o valor de uso.
Acontece que o valor de
troca não é determinado pelo preço como aparece à primeira vista. O valor da
mercadoria não é fixado no momento em que ela entra em circulação no mercado e
é consumida. Seu valor é produzido em outro momento e se forma pela quantidade
de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o
tempo gasto diretamente na fabricação da mercadoria, mas inclui também o tempo
para produzir as máquinas, o tempo para extrair e transportar a matéria-prima,
etc. Esses tempos são tempos de trabalho da sociedade.
O preço da mercadoria
também encerra o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica
essa mercadoria, pagamento que é chamado de custo de produção e que é o
suficientemente necessário para que ele se alimente, se aloje, se vista, se
transporte e se reproduza, gerando filhos para o mesmo trabalho de produzir
mercadorias. A mercadoria é, portanto, trabalho social concentrado e não uma
coisa.
A mercadoria, enquanto
problema teórico, demanda um pouco mais de atenção. Situando-a no modo de
produção capitalista, deve-se dizer que o dinheiro também é uma mercadoria.
Cada modo de produção (antigo, escravagista, asiático, feudal e capitalista) é
constituído pelas forças produtivas e pelas relações sociais de produção a elas
relacionadas e cujo epicentro é um determinado tipo de propriedade dos meios de
produção. O modo de produção capitalista
se caracteriza pela separação entre o trabalho livre e a propriedade dos meios
de produção, separação que se acompanha da produção da mais-valia (conceito a que destinarei uma seção mais
adiante) e da formação do próprio capital. Nesse contexto, surgem as novas
classes sociais e as formas de relação entre elas: o proletariado,
expropriado dos meios de produção (inclusive da terra) que, para viver, precisa
vender sua força de trabalho, que não é senão uma mercadoria; e o capitalista,
proprietário dos meios de produção e dono do capital. Retomarei o tema da
mercadoria, quando me debruçar sobre o conceito de fetichismo da mercadoria.
Convém, agora, definir o
termo capital. O capital se constitui
com a condição de o possuidor do dinheiro poder trocá-lo pela capacidade de
trabalho de outrem, que é mercadoria. Portanto, é necessário que a capacidade
de trabalho seja colocada à venda, como mercadoria, no processo de circulação,
para que o dinheiro se transforme em capital.
Para sobreviver, o
proletário precisa vender sua força de trabalho, a qual passa a ser encarada,
na relação antagônica e desigual entre proletariado e burguesia, um valor de
troca, uma mercadoria. No domínio do aparecer social, o salário do trabalhador
se apresenta como valor de seu trabalho, isto é, como uma certa quantia de
dinheiro paga por uma quantidade de trabalho equivalente. Deveras, o que se dá
não é isso; e para entendermos o que se passa nessa relação – que, conforme
veremos, é de expropriação do proletário pelo capitalista- , devemos
compreender o conceito de mais-valia,
tema de nossa próxima subseção.
5.4. Mais-valia
No circuito capitalista
do dinheiro, cuja configuração supõe a relação dinheiro-mercadoria-dinheiro, a
mercadoria comprada é a força de trabalho, a única mercadoria cujo consumo
produz um outro valor de uso (o produto do trabalho). A diferença entre o valor
da força de trabalho e o valor do produto do trabalho constitui a mais-valia, sem a qual não
existiria o capitalismo.
A mais-valia corresponde
a uma certa quantidade de trabalho excedente não-pago. A mais-valia é o lucro
do capitalista. Para os trabalhadores, essa quantidade de trabalho não
remunerado apresenta-se como o mais-trabalho que suplanta a quantidade de
trabalho imediatamente necessária à manutenção da condição vital deles. A
acumulação da mais-valia está na origem do capital. Graças à mais-valia, a
mercadoria não é um valor de uso ou um valor de troca qualquer, mas um valor
capitalista (eis a síntese dialética). Dialeticamente, o valor de uso se
apresenta como a tese, o valor de troca como a antítese e, finalmente, o valor
capitalista é a síntese.
5.5. Fetichismo da
mercadoria
O conceito de fetichismo da mercadoria
prende-se intimamente ao conceito de alienação;
mas desses conceitos tratarei em seções separadas.
Em vez de a mercadoria
aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela
aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si
mesma e em si mesma, como se derivasse de um dom natural das coisas. As
coisas-mercadoria começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se
fossem sujeitos sociais dotados de vida própria. A mercadoria passa a ter vida
própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sozinha.
O fetichismo da
mercadoria desdobra-se, por conseguinte, em dois momentos. O primeiro momento do fetichismo é o fato de a mercadoria ser um
fetiche, uma coisa que existe em si e por si mesma. O segundo momento diz respeito ao fato de a mercadoria, à
semelhança do fetiche religioso, exercer poder sobre seus crentes ou
adoradores, dominando-os como uma força estranha. O mundo transforma-se numa
grande fantasmagoria.
5.6. Alienação
Retomando-se a ideia de
que a mercadoria exerce um poder sobre os homens e os domina como uma força
estranha, tornar-se-á mais fácil compreender o conceito de alienação. A
alienação é a condição em que se encontram tanto os trabalhadores como a
própria atividade de trabalho, no modo de produção capitalista, quando eles
vendem sua força de trabalho e quando se dá a separação entre eles,
trabalhadores, e o produto do seu
trabalho. O trabalho, no modo de produção capitalista, é trabalho alienado.
Vejamos o porquê.
A alienação é, segundo
Marx, uma forma de relação historicamente determinada, ou seja, típica da
relação capital-trabalho assalariado. Na alienação, o trabalho torna-se
trabalho forçado, o homem e a natureza se separam completamente, e os
trabalhadores não se reconhecem mais no produto de seu trabalho. É preciso
sublinhar este fato, que caracteriza fundamentalmente a condição de alienação: o
trabalhador não se reconhece mais no produto de seu trabalho. Segundo
Marx, porém, a alienação não aparece apenas no resultado, mas também no
interior da própria atividade produtiva. Assim, o trabalho é exterior ao
trabalhador, ou seja, ele não pertence à sua essência. O trabalhador não se
afirma em seu trabalha, mas nega-se. Essa é a condição do trabalhador alienado:
a de um trabalhador que, negando-se no
trabalho, sente-se insatisfeito, infeliz, mortificado. Tudo o que, na
verdade, constitui condição e resultado da natureza interior do homem (a criatividade,
o trabalho) aparece na sociedade burguesa e na sua economia como esvaziamento e
alienação.
No contexto da luta de
classes, as ideologias funcionam como o cimento da sociedade, na medida em que
produzem um senso comum que serve para mascarar a luta de classes. A classe que
exerce o poder material ou o domínio material numa dada época também exerce o
domínio espiritual. As ideologias, forjadas pelas classes dominantes, têm como
função básica ocultar as condições de dominação vigente, mas também podem
servir como um conjunto de referências para a tomada de consciência. A produção
das ideologias é indissociável do processo de vida real, ou seja, do processo
de produção material da vida real. A produção das ideias, das representações,
da consciência está, em primeiro lugar, entrelaçada com a atividade material e
com as relações dos homens.
O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se reconhece no
produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades
reais e seu valor não dependem do próprio trabalho, mas do proprietário das
condições do trabalho. Constituem três os fatores que tornam as atividades
humanas acontecimentos independentes dos homens: alienação, reificação e fetichismo. Esses fatores estão na base de
um processo fantástico pelo qual as atividades humanas começam a realizar-se
como se fossem autônomas ou independentes dos homens, passando, assim, a
dirigir e comandar suas vidas, sem que eles possam exercer sobre elas controle.
Por fim, cumpre dizer que
as ideias originam-se da atividade material, mas essas ideias representam o
modo como a realidade das condições materiais aparece na experiência imediata
dos homens.
5.7. Práxis
Vimos que a práxis pode ser definida, num
primeiro momento, como a relação dialética entre homem, trabalho e natureza. Na
práxis, o homem modifica a natureza por meio do trabalho e, no trabalho,
modifica a si mesmo. Há, contudo, outro significado de práxis cuja elucidação
se faz necessária. Quando consideramos a práxis na sua relação com a filosofia
marxista, isto é, quando a situamos no interior do quadro teórico-metodológico
do marxismo, a práxis é uma compreensão teórica da realidade, é sua explicação
e transformação. A práxis constitui, portanto, o elemento vital da constituição
do marxismo. Apresenta-se como núcleo do pensamento de Marx.
Relembremos aqui a famosa
passagem de Marx – “O que os filósofos fizeram até o momento foi interpretar o
mundo; o que interessa, porém, é transformá-lo”, a fim de que entendamos a
práxis como crítica e a filosofia que subjaz a ela como crítica do real. A
filosofia não tem em si o poder de transformar o real; por isso, precisa
realizar-se por meio da práxis. A passagem da crítica ao real, ou seja, do
plano teórico ao prático, é a revolução. A práxis é uma atividade
transformadora e emancipadora. Nesse sentido, o marxismo se apresenta como uma
filosofia da ação, uma filosofia da práxis.
6. O Estado
Segundo Engels, o Estado
constitui o primeiro poder ideológico. No capitalismo, ele cumpre funções que garantem
o bom funcionamento da economia e que atendam aos interesses da classe
dominante. O Estado destina-se, especialmente, a defender a propriedade
privada.
Na visão de Engels, o
Estado, criado para defender os interesses comuns a toda a sociedade, tornou-se
independente dela, tanto mais se foi convertendo em um instrumento de poder de
uma determinada classe sobre outra. O Estado está a serviço das classes
dominantes, na medida em que lhes serve de instrumento para o estabelecimento e
legitimação de sua dominação. As classes dominantes se servem dos aparelhos do
Estado para instaurar sua dominação e para garantir seus privilégios.
Sem perder de vista a
questão da concepção do Estado à luz do marxismo, tema que continuo a
desenvolver nesta última seção, trago à baila como a dialética se desenvolveu
no pensamento de Hegel, tendo sempre em vista o confronto com a dialética
marxista.
Começo por notar que o
termo dialética (diálogo, em grego, ou o pensamento e a palavra (logos)
divididos em polos contraditórios), em Hegel, consiste num método de
interpretação da História, à luz do qual ela é um processo temporal movido
internamente pelas divisões ou negações (contradições), cujo sujeito é o
Espírito como reflexão.
A dialética hegeliana é,
portanto, uma dialética idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto
também é o Espírito. As obras do Espírito (a cultura), embora apareçam como
fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas
produz ideias e é ideia.
O idealismo hegeliano
assenta na proposição segundo a qual a história é o movimento de oposição,
negação e conservação das ideias, e essas ideias são a unidade do sujeito e do
objeto da história, que é Espírito. O Espírito é, ao mesmo tempo, sujeito e
objeto da história.
O que é o Estado, para
Hegel? O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses
individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Segundo Hegel, somente
no Estado o cidadão torna-se verdadeiramente real e somente nele define-se a
existência social e moral dos homens. O Estado torna-se, assim, o Espírito
Objetivo.
No idealismo hegeliano, o
Estado é uma comunidade, mas difere da família e das classes sociais, porque
não possui aparentemente nenhum interesse particular, mas, ao contrário,
representa apenas os interesses comuns a todos. O Estado não é um dado imediato
da vida social, mas um produto da sociedade concebida como Espírito Subjetivo
que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política, por
excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito.
Engels, naturalmente,
discordará de Hegel, sobretudo no tangente à ideia de que o Estado não tem
interesse particular. E Marx, embora conserve o conceito de dialética, legado de
Hegel, como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a
contradição, rompe com o pensamento de Hegel, ao demonstrar que a contradição
não é a do Espírito com ele mesmo, não é a contradição de sua face subjetiva
com sua face objetiva, não é a contradição de sua exteriorização em obras com
sua interiorização em ideias. Para Marx, a contradição se estabelece entre
homens reais em condições históricas e sociais reais, e essa contradição –
reitero – chama-se luta de classes.
Hegel concebia a história
como o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, como história das
realizações do Espírito; Marx, ao contrário, rejeita essa visão idealista,
insistindo em que a história é a história do modo como os homens reais produzem
suas condições reais de existência.
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