Pré-disposições filosóficas
O contrário
de um ressentido
Que me censurem os que, por
ventura, dentre meus familiares e amigos próximos que me são, de resto,
distantes, venham a se ocupar com a leitura deste texto; que me repreendam de
devassar regiões tão íntimas que, se vistas à luz do senso comum, deveriam
permanecer encobertas. Que me censurem, pois; mas que não deixem de
compreender-me a partir de um lugar que é próprio da filosofia, onde a liberdade
de pensar com profundidade a vida, o mundo, em sua universalidade, deve
suplantar qualquer gesto de censura ou medo do preconceito.
Em Ecce Homo, Nietzsche
escrevera: “Eu mesmo não sou ainda atual; alguns nascem póstumos”. Com essa
fórmula, ele reconhecia, em seu tempo, que muitos o ignoravam ou não o
compreendiam. Mas ele vaticinou o surgimento, no futuro, de institutos que se
destinariam a estudar a sua obra. E hoje, em diversos meios do mundo acadêmico,
sente-se fortemente a atualidade de Nietzsche.
Que alternativa resta para quem,
desde o nascimento, foi cinzelado pelo sofrimento que, cirurgicamente lembrado
no corpo, moldaria indelevelmente sua personalidade e caráter? Uma observação
se impõe urgente aqui: o caráter, em psicologia, embora seja compreendido como
sinônimo de personalidade, dela se distingue por encerrar um significado mais
restrito. Destarte, o caráter recobre apenas aqueles aspectos da personalidade
que constituem o ego e que, quando manifestos, distinguem uma pessoa da outra. A
personalidade, por seu turno, recobre a totalidade dos impulsos, afetos,
talentos, comportamento social e reações, tomados em sua organização global.
Como sejam inúmeras as definições propostas para o termo personalidade, na
literatura especializada, considere-se suficiente, para fins desta exposição, a
definição que dela nos dá Freud: a personalidade é a integração do id, ego e
superego. Em face do caráter, conceito mais restrito, a personalidade é um
conceito mais lato, porquanto abriga também os fenômenos que são comuns a todas
as pessoas.
Que resta a esta pessoa,
familiarizada com o transtorno depressivo que lhe enraizou no espírito
tristeza, desânimo e pessimismo, os quais oscilam, de tempo em tempo, em termos
de intensidade e persistência e cuja dinâmica parece prender-se a conteúdos
recalcados? Que lhe resta, finalmente, quando descobre, contando vinte e sete
anos, que as agruras da primeira infância lhe legaram um mal insidioso? Diria
até que terrível, àquela altura, não tanto por seus impactos fisiológicos
danosos (reversíveis com o tratamento atual); mas por seus efeitos psíquicos
perturbadores. O sangue de um desgraçado que, talvez, jaza sob a terra,
possibilitando-me a sobrevida, fez-me engrossar a fileira dos “condenados”, à
época; e promoveu-me, enfim, a hospedeiro de dois males: de um dos quais me curei,
não pela vontade de algum deus, segundo ainda creem meus familiares – crença,
aliás, que me é afrontosa e indecente- mas pelos esforços do homem, único ser
capaz de combater as forças destrutivas da ordem natural.
Quando se me revelou a verdade
desta que seria minha dificultosa condição, desde então, eu fora tragado por
uma depressão da qual viria a emergir não sem o amor de meus pais, irmão e
madrinha, em especial, que foram sobremaneira diligentes, não sem o apoio de
meus familiares, não sem a competência de minha psiquiatra, não sem as doses
diárias do antidepressivo, que se faziam acompanhar das doses, também diárias,
dos anti-retrorivais, não sem o aturado exercício da leitura e da escrita, e não
sem a continuada dedicação aos estudos, àquela altura, de doutoramento.
Felizmente, o destino me poupou de
um fardo igualmente terrível: não leguei a ninguém o meu infortúnio, pois que
não conhecia ainda as venturas e desventuras da experiência sexual. Os ares
atuais são mais frescos; mais amenos, e minha condição clínica reconduziu-me a
vida à normalidade. Ostento saúde e força ativa. É necessário, então, avançar e
ultrapassar essa atmosfera depressiva, decadente, que pode parece solicitar
comiseração, circunstância esta aviltante e adversa à proposta deste texto.
A leitura filosófica já estava
entre as atividades que preenchiam a agenda de meu cotidiano; e o que eu chamo
de libertação do flagelo da fé e do despotismo da tradição judaico-cristã, que concorreu com meu interesse pela
doutrina budista, cujo caráter realista, quando confrontado com a indecente
mentalidade religiosa com a qual me familiarizei desde a infância, foi logo
reconhecido por mim: no budismo, o reconhecimento do vínculo inerente entre viver
e sofrer não se dobra a qualquer tentativa de justificar o sofrimento.
A ruptura com a tradição religiosa
do cristianismo se deu sem resistências, pois que a leitura filosófica lhe ia
iluminando o caminho. As circunstâncias que, em parte, explicam a ruptura lhe
conferiram uma virulenta expressão discursiva, em seus inícios. Nada mais
natural quando se sente a necessidade de instaurar um lugar de oposição a uma
velha concepção de mundo e afirmação de uma forma outra de sentir e ver
(pensar) o mundo. Escusa dizer que, àquela altura, participavam de minhas
relações sociais pessoas que supunham estava eu navegando por mares de
rebeldia, em meio a tempestades tenebrosas, de resto, passageiras; para essas
pessoas, tratava-se de uma fase de rebeldia típica de quem não foi
suficientemente forte para continuar crendo no “amor divino” mesmo em face das
aflições e do absurdo que as acompanha.
Para a mentalidade que se forma
pelo insistente trabalho das forças doutrinárias religiosas, os fortes são
aqueles que perseveram na fé, apesar das intempéries, dos cataclismos da
existência. O que estava em jogo, em última análise, é a determinação do
significado de “força” e de “ser forte”. De minha perspectiva, ia-se tornando
evidente que permanecer preso aos grilhões da fé não era sinal de força, mas de
fraqueza (e veremos a razão disso).
Dois filósofos, cujo pensamento já
estava acostumado a frequentar, antes mesmo de dar-se a fatídica descoberta e a
alegre ruptura, contribuíram decisivamente para que eu suplantasse as tentações
do ressentimento e não me desviasse para o caminho dos decadentes –
ressentimento e decadência deverão ser bem entendidos à luz da crítica
demolidora à tradição socrático-platônica e cristã que Nietzsche levaria a
efeito.
1.
Sobre o sofrimento do mundo
Que o leitor, desde já, seja
prevenido contra uma má e deturpada interpretação: de minha inclinação à
filosofia pessimista de Schopenhauer não se segue que do meu horizonte
existencial estejam definitivamente excluídas as possibilidades de experiência
de alegria e satisfação momentâneas. Igualmente importante é preveni-lo, leitor
incauto, contra a crença de que a adoção da perspectiva schopenhauriana da
existência conduz, necessariamente, ao desespero, se por desespero entendermos
um mal-estar profundo decorrente de nossa consciência de que se destruíram as
fundações que mantinham sólida a existência.
Não estou interessado em me deter
muito na filosofia de Schopenhauer, já que o grande salto de que se deve dar
aqui um testemunho verdadeiro é o que a filosofia de Nietzsche me permitiu dar.
Todavia, alguns trechos de Schopenhauer servirão aqui não só para pavimentar o
terreno pelo qual transitei até fazer o referido salto, mas também para
assinalar alguns pontos da doutrina schopenhaueriana que são como tijolos da
edificação de uma visão de mundo que, afinando-se com a minha intuição
primaveril segundo a qual o sofrimento tece as malhas da existência, dispensa
as exigências para justificá-la . Começarei por referir alguns trechos de
Schopenhauer, colhidos da obra Parerga e Paralipomena, que se topam no
capítulo destinado à exposição de sua doutrina do sofrimento do mundo:
“O sentido mais próximo e imediato de nossa
vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos
contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da
necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental
e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não
ocorre com nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a
infelicidade em geral que é a regra, embora a infelicidade individual apareça
como exceção” (p.113)
Escuso-me de fazer uma análise
cuidadosa do referido trecho. Bastar-me-á notar as seguintes ideias articuladas
por Schopenhauer: a) a existência tende (dirige-se, encaminha-se) para o
sofrimento; b) a dor é infinita e nasce da necessidade essencial à vida, de
modo que a essência da vida é dor; c) antecipando uma tese que viria a ser
endossada e desenvolvida por Freud, Schopenhauer afirma que somos suscetíveis
mais à dor e poucas são as possibilidades de experiência de prazer, o qual,
poderíamos acrescentar, é sempre fugidio; d) a infelicidade em geral é a norma
da vida. Nesse elenco de ideias, já se deixam ver, pelo menos para os já
iniciados, os rastros da influência budista no pensamento schopenhaueriano.
Atentemos para o trecho seguinte:
“A história mostra-nos que a vida dos povos,
e ali encontra apenas guerras e rebeliões para nos narrar, os anos de paz nos
parecem tão-somente breves pausas, entre atos, aqui e ali. Igualmente a vida do
indivíduo é uma luta contínua com a necessidade e o tédio, e não apenas no
sentido metafórico. Por toda parte, o homem encontra oposição, vive
continuamente em luta, e morre segurando suas armas” (p. 114)
Esse trecho, somado ao anterior,
já nos permite compor a afinação do tom pessimista de que se impregna a
filosofia schopenhauriana. Devemos, no entanto, nos prevenir contra a conclusão
de que não há espaço, na sua cosmovisão, para um mundo onde seja possível a
experiência de felicidade. Schopenhauer admite sê-lo, se bem que a felicidade
de que nos fala será sempre uma felicidade negativa que se expressa na
tentativa de evitar a dor, no que ele acompanha de perto a tradição ética que
remonta a Aristóteles passando pelo epicurismo.
O próximo passo patenteia-nos um
momento de sua crítica à visão de mundo cristã.
“Suponhamos que o ato da procriação não
fosse uma necessidade e nem viesse junto com prazer, mas fosse um assunto de
pura reflexão racional: será que nesse caso a humanidade continuaria a existir?
Ou, pelo contrário, cada um teria a compaixão suficiente para não impor, com
tanta frieza, o fardo da existência a geração seguinte? Pois o mundo constitui
o inferno, e os homens dividem-se em dois grupos: de um lado ficam os
atormentados, e de outro os demônios. Neste ponto, só porque exprimo as coisas
tais como elas são, terei de ouvir de novo que minha filosofia é desesperadora,
preferindo, as pessoas, que eu dissesse que Deus fez tudo segundo o melhor. Que
essas pessoas, então, se dirijam à igreja, e deixem os filósofos em paz. Ou,
pelo menos, que não exijam que os filósofos disponham suas doutrinas de forma a
corresponder aos seus anseios. Isso quem faz são os filosofastros e os trapaceiros,
aos quais podem-se encomendar doutrinas conforme ao gosto” (p.122).
Particularmente importante é a sua
objeção à pretensa teodiceia de Leibniz:
“Ainda que a demonstração feita por Leibniz
de que, de todos os mundos possíveis, este é o melhor, fosse correta, ela não
forneceria uma teodiceia. O criador não criou apenas o mundo, mas também a
própria possibilidade: dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de
maneira a permitir um mundo melhor” (p.123)
Schopenhauer ilustra bem o que, na
opinião de Luc Ferry, é uma adequada definição de filosofia: “uma doutrina de
salvação sem Deus”. Em Vencer os medos (2008), o autor observa que,
embora a filosofia incorpore a reflexão e a argumentação como momentos de sua
atividade, ela não se reduz a esses momentos, que são seus meios de realização
e não seus fins. Ferry, nesse livro, proporá e desenvolverá a definição de
filosofia como doutrina de salvação sem Deus – definição que diz ser extensiva
a toda a filosofia. Consoante defende o autor, “[a filosofia] é a grande
concorrente das religiões – aliás, é a única atividade do espírito que cumpre
esse papel” (p. 125).
Antes de prosseguir, parece-me
necessário esclarecer em que medida podemos deixar as páginas de Schopenhauer
sem experimentar um amargo sentimento de desespero. Desde que reconheçamos que, ao fim e ao cabo, não é razoável atribuir a causa do desespero à filosofia de
Schopenhauer, que segundo ele mesmo mantém, não faz senão desvelar o mundo tal
como é essencialmente, devemos, pois, encontrá-la na inconsistência entre nosso desejo
e o modo como o mundo é verdadeiramente . Em outros termos, o desespero é, na verdade, consequência do fato
de que a verdade a respeito do mundo contraria o modo como nos habituamos a
desejar que ele fosse. O desespero resulta do peso destrutivo que a verdade
desvelada sobre o mundo tem sobre nossa crença ilusória a respeito dele.
2.
O meu encontro com a filosofia de Nietzsche
Se meu encontro com o pensamento
de Schopenhauer animou-me algumas de minhas convicções viscerais sobre a
essência da vida, elas mesmas gestadas em minhas experiências
sensível-corporais com o meu sofrimento próprio e dos outros, tão cedo
acostumados a frequentar as salas de cirurgia em hospital, meu encontro com a
filosofia de Nietzsche pôs-me no curso contrário ao de um ressentido e
decadente – curso este a que a filosofia de Schopenhauer nos encaminha, segundo
a interpretação do próprio Nietzsche.
É verdade que Nietzsche é
tributário da filosofia schopenhaueriana, mas igualmente é verdade que
Nietzsche viu em Schopenhauer um continuador de uma tradição niilista que
remonta ao teísmo cristão. Em que sentido é o que devemo-nos esforçar por
compreender.
Em primeiro lugar, Nietzsche notou
que o fato de filósofos como Schopenhauer afirmarem filosoficamente seu ateísmo
não significou, contudo, que eles renunciassem ao ideal dos valores superiores.
Nietzsche notou também que os últimos metafísicos, entre os quais está
Schopenhauer, em especial, continuaram a procurar no ideal a “realidade”
verdadeira, a coisa-em-si kantiana, em face da qual o resto é reduzido à
aparência.
Nietzsche, não sem razão, denuncia
em Schopenhauer a preservação do dogma segundo o qual o nosso mundo das
aparências, por não expressar claramente aquele ideal, não poderia ser
verdadeiro. No curso de uma tradição metafísica socrático-platônica,
Schopenhauer foi acusado de ter endossado a opinião de que o mundo das
aparências tem como causa o mundo metafísico. Há, no entanto, - Nietzsche não
deixará de perceber, o que nem por isso livra Schopenhauer da
co-responsabilidade por dar continuidade àquela tradição metafísica, - uma
especificidade na doutrina metafísica de Schopenhauer. Ele imaginou o fundo
metafísico como uma “vontade má e cega”, antítese do ideal, que é como ele se
manifesta no mundo das aparências.
Se investigada até suas últimas
consequências, a doutrina de Schopenhauer acarretaria um enfraquecimento da
vida, que se expressa na forma de desespero e ódio à própria vida. Contra essa
tradição que congregou forças reativas que, enfraquecendo a vida, conduzem
consequentemente ao desespero e ao ódio a ela, Nietzsche desenvolverá seu
princípio da Vontade de Potência e, de modo geral, um pensamento obstinadamente
afirmativo da vida. Em linhas gerais, a fim de atender os propósitos desta
exposição, vou apresentar a crítica à qual Nietzsche submeteu o cristianismo.
Devo especialmente a essa crítica
de Nietzsche o não ter sucumbido à condição de ressentido e a possibilidade de,
em que pese as intempéries da sorte, animarem em mim os instintos afirmadores
da existência, o que me permitiu reconciliar-me com o mundo em tudo que nele há
de dor e sofrimento injustificável.
Nietzsche afirmou que “a vida
acaba onde o reino de Deus começa”. Assim, o filósofo alemão expôs a negação de
que é expressão a ilusão religiosa. Para ele, a religião é uma espécie de
revolta contra a natureza, e o sobrenatural, não sendo um além do natural, é,
pelo contrário, sua negação e a destruição dos melhores instintos.
Ser cristão é, para Nietzsche, o
mesmo que ser niilista, já que, ao atribuir ao mundo imaginário o valor de
verdade, o cristão retira do verdadeiro mundo que habitamos o seu valor. Na
medida em que ele, cristão, se torna um amigo de Deus, torna-se, consequentemente,
um inimigo do mundo. Mas só é inimigo do mundo no sentido de que, ao afirmar a
Deus, nega o verdadeiro mundo em proveito de um mundo imaginário situado no
horizonte da transcendência.
Nietzsche vê, portanto, como
vingança a promessa cristã de uma vida de delícias no reino dos céus. O cristão
estaria, desse modo, se contentando com fantasmagorias e, por conseguinte,
desprezando e aviltando o mundo tal como existe de fato.
A ilusão cristã se torna, na
crítica nietzschiana, patente: toma-se como
verdadeiro o mundo ilusório e considera-se como aparente o único mundo que
existe. A “morte de
Deus” se situa, pois, nesse contexto, sendo então um momento singular da
história do homem, em que aquilo que se mantinha encoberto pela máscara do
niilismo religioso tornou-se abruptamente manifesto.
O homem sadio, em seus instintos
mais profundos, é aquele que nega o mundo de suas venerações e deixa fluir os
instintos fortes. Tal é então o modo como se aceita a vida como ela é e como
ela é afirmada, a despeito de suas contrariedades, segundo se nos relevam à luz
de um exame racional.
O homem sadio, reconciliado com o
mundo, é aquele que não busca um sentido além do próprio ato imanente de viver.
A questão que nos propõe Nietzsche é, então, o que faremos diante do vazio
deixado pela demolição do significado transcendente de que se revestia a
existência: ou nos acovardamos e nos satisfazemos com esperanças vãs, ou,
autenticamente, escolhemos viver a vida em toda a sua plenitude, empregando,
para tanto, toda a saúde do espírito e as forças ativas instintutivas.
O que há de problemático na
religião, segundo a interpretação nietzschiana, é menos o fato de sua visão de
mundo assentar em ficções do que o tipo de ficções que dá sustentabilidade ao
seu edifício metafísico.
O discurso religioso é o único que
reivindica uma origem além-mundo. A investigação genealógica desenvolvida por
Nietzsche não cessará de criticar, em seu caminho, as ilusões religiosas. Na
mira dessa crítica, que visava, fundamentalmente, a transvalorar todos os
valores em que se fundamenta o mundo ocidental, está a estrutura ficcional em
que se baseia o conhecimento humano.
Cumpre considerar, brevemente, o
conceito de vontade de potência, a fim de elucidá-lo, visto que ele constitui o cerne da filosofia
nietzschiana afirmadora da vida. A vontade de potência não se reduz à vontade
de dominar. É ela vontade de posse total da existência e de si mesmo. É esforço
por vencer a fatalidade, o aniquilamento, que se expressa, em última instância,
na morte. É vontade de mais, pois que cria o possível.
Para Nietzsche, não há nada de
substancial: nem eu, nem consciência psicológica e moral, nem objeto, nem
verdade. O instante é inteiramente o que é: potência.
E assim se me abriu a
possibilidade de escapar ao desespero, de não ceder ao peso do ressentimento,
de não me deixar seduzir pelas tendências que enfraquecem a vida, tomando, ao
contrário, um curso outro, que, sem me desviar da universalidade do sofrimento,
que constitui a essência da vida, levou-me a aquiescer a ela e a aceitar minha
co-presença com o único mundo verdadeiramente existente.
Ponho termo a este texto, com o
seguinte excerto do comentador Mario Ferreira dos Santos, extraído de Vontade
de Potência (2011). A filosofia de Nietzsche reconduz o homem à
terra. É uma filosofia da terra, do mundo que, através dela, se afirma como
mundo heraclitiano, estruturado pela luta dos contrários. É nesse mundo que
deve surgir o homem forte, regenerado, revigorado, o além-do-homem, o homem
livre e senhor de sua vontade.
“(...) Um mundo de perfeições não conhece
vitórias. Um mundo de perfeições não conhece felicidade. O homem, em vez de
queixar-se, de amaldiçoar a vida, de pregar que esta terra é um vale de
lágrimas, deveria, primeiramente, aprender a amá-la. Amor fati, sua fórmula para os homens. Amor do destino, seja
qualquer for. Amar o mundo, a “terra dos homens”, porque os homens sempre a
amaram. Nunca a terra criou “o amargo desespero de viver”. Mas as crenças
religiosas ensinaram o homem a amaldiçoar a terra. A religião não deve afastar
o homem do mundo. Este é a terra dos homens. A religião deve ensinar-lhes o
aceno de amor. E para amar o mundo é preciso amar o destino. E por amor ao
destino é preciso vencer a si mesmo. Vencer cada uma de suas batalhas e cada uma
de suas derrotas, com um gesto de desdém e de maldade. Maldade e não
malignidade, porque esta é atributo dos “bons”, porque quase sempre os bons são
malignos. O homem deve conhecer a maldade daquele que se obstina, daquele que
quer, daquele que tem de vencer. E grande é o gesto do vitorioso que poupa o
vencido. Isso é nietzschiano. O homem deve vencer cada uma de suas derrotas e
suplantar os empecilhos e os obstáculos. E somente nessa hora os homens poderão
contemplar o mundo com um olhar gotheano cheio de amor e boa vontade para com
seus semelhantes, porque nossa hora já não mais se conhecerá o domínio dos
ressentimentos” (p. 72-73).
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