sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"Uma coisa que convence, nem por isso é mais verdadeira: é somente convincente" (Nietzsche)

                   
                     


                                Pré-disposições filosóficas
                                                    O contrário de um ressentido


Que me censurem os que, por ventura, dentre meus familiares e amigos próximos que me são, de resto, distantes, venham a se ocupar com a leitura deste texto; que me repreendam de devassar regiões tão íntimas que, se vistas à luz do senso comum, deveriam permanecer encobertas. Que me censurem, pois; mas que não deixem de compreender-me a partir de um lugar que é próprio da filosofia, onde a liberdade de pensar com profundidade a vida, o mundo, em sua universalidade, deve suplantar qualquer gesto de censura ou medo do preconceito.
Em Ecce Homo, Nietzsche escrevera: “Eu mesmo não sou ainda atual; alguns nascem póstumos”. Com essa fórmula, ele reconhecia, em seu tempo, que muitos o ignoravam ou não o compreendiam. Mas ele vaticinou o surgimento, no futuro, de institutos que se destinariam a estudar a sua obra. E hoje, em diversos meios do mundo acadêmico, sente-se fortemente a atualidade de Nietzsche.
Que alternativa resta para quem, desde o nascimento, foi cinzelado pelo sofrimento que, cirurgicamente lembrado no corpo, moldaria indelevelmente sua personalidade e caráter? Uma observação se impõe urgente aqui: o caráter, em psicologia, embora seja compreendido como sinônimo de personalidade, dela se distingue por encerrar um significado mais restrito. Destarte, o caráter recobre apenas aqueles aspectos da personalidade que constituem o ego e que, quando manifestos, distinguem uma pessoa da outra. A personalidade, por seu turno, recobre a totalidade dos impulsos, afetos, talentos, comportamento social e reações, tomados em sua organização global. Como sejam inúmeras as definições propostas para o termo personalidade, na literatura especializada, considere-se suficiente, para fins desta exposição, a definição que dela nos dá Freud: a personalidade é a integração do id, ego e superego. Em face do caráter, conceito mais restrito, a personalidade é um conceito mais lato, porquanto abriga também os fenômenos que são comuns a todas as pessoas.
Que resta a esta pessoa, familiarizada com o transtorno depressivo que lhe enraizou no espírito tristeza, desânimo e pessimismo, os quais oscilam, de tempo em tempo, em termos de intensidade e persistência e cuja dinâmica parece prender-se a conteúdos recalcados? Que lhe resta, finalmente, quando descobre, contando vinte e sete anos, que as agruras da primeira infância lhe legaram um mal insidioso? Diria até que terrível, àquela altura, não tanto por seus impactos fisiológicos danosos (reversíveis com o tratamento atual); mas por seus efeitos psíquicos perturbadores. O sangue de um desgraçado que, talvez, jaza sob a terra, possibilitando-me a sobrevida, fez-me engrossar a fileira dos “condenados”, à época; e promoveu-me, enfim, a hospedeiro de dois males: de um dos quais me curei, não pela vontade de algum deus, segundo ainda creem meus familiares – crença, aliás, que me é afrontosa e indecente- mas pelos esforços do homem, único ser capaz de combater as forças destrutivas da ordem natural.
Quando se me revelou a verdade desta que seria minha dificultosa condição, desde então, eu fora tragado por uma depressão da qual viria a emergir não sem o amor de meus pais, irmão e madrinha, em especial, que foram sobremaneira diligentes, não sem o apoio de meus familiares, não sem a competência de minha psiquiatra, não sem as doses diárias do antidepressivo, que se faziam acompanhar das doses, também diárias, dos anti-retrorivais, não sem o aturado exercício da leitura e da escrita, e não sem a continuada dedicação aos estudos, àquela altura, de doutoramento.
Felizmente, o destino me poupou de um fardo igualmente terrível: não leguei a ninguém o meu infortúnio, pois que não conhecia ainda as venturas e desventuras da experiência sexual. Os ares atuais são mais frescos; mais amenos, e minha condição clínica reconduziu-me a vida à normalidade. Ostento saúde e força ativa. É necessário, então, avançar e ultrapassar essa atmosfera depressiva, decadente, que pode parece solicitar comiseração, circunstância esta aviltante e adversa à proposta deste texto.
A leitura filosófica já estava entre as atividades que preenchiam a agenda de meu cotidiano; e o que eu chamo de libertação do flagelo da fé e do despotismo da tradição judaico-cristã, que concorreu com meu interesse pela doutrina budista, cujo caráter realista, quando confrontado com a indecente mentalidade religiosa com a qual me familiarizei desde a infância, foi logo reconhecido por mim: no budismo, o reconhecimento do vínculo inerente entre viver e sofrer não se dobra a qualquer tentativa de justificar o sofrimento.
A ruptura com a tradição religiosa do cristianismo se deu sem resistências, pois que a leitura filosófica lhe ia iluminando o caminho. As circunstâncias que, em parte, explicam a ruptura lhe conferiram uma virulenta expressão discursiva, em seus inícios. Nada mais natural quando se sente a necessidade de instaurar um lugar de oposição a uma velha concepção de mundo e afirmação de uma forma outra de sentir e ver (pensar) o mundo. Escusa dizer que, àquela altura, participavam de minhas relações sociais pessoas que supunham estava eu navegando por mares de rebeldia, em meio a tempestades tenebrosas, de resto, passageiras; para essas pessoas, tratava-se de uma fase de rebeldia típica de quem não foi suficientemente forte para continuar crendo no “amor divino” mesmo em face das aflições e do absurdo que as acompanha.
Para a mentalidade que se forma pelo insistente trabalho das forças doutrinárias religiosas, os fortes são aqueles que perseveram na fé, apesar das intempéries, dos cataclismos da existência. O que estava em jogo, em última análise, é a determinação do significado de “força” e de “ser forte”. De minha perspectiva, ia-se tornando evidente que permanecer preso aos grilhões da fé não era sinal de força, mas de fraqueza (e veremos a razão disso).
Dois filósofos, cujo pensamento já estava acostumado a frequentar, antes mesmo de dar-se a fatídica descoberta e a alegre ruptura, contribuíram decisivamente para que eu suplantasse as tentações do ressentimento e não me desviasse para o caminho dos decadentes – ressentimento e decadência deverão ser bem entendidos à luz da crítica demolidora à tradição socrático-platônica e cristã que Nietzsche levaria a efeito.

1. Sobre o sofrimento do mundo

Que o leitor, desde já, seja prevenido contra uma má e deturpada interpretação: de minha inclinação à filosofia pessimista de Schopenhauer não se segue que do meu horizonte existencial estejam definitivamente excluídas as possibilidades de experiência de alegria e satisfação momentâneas. Igualmente importante é preveni-lo, leitor incauto, contra a crença de que a adoção da perspectiva schopenhauriana da existência conduz, necessariamente, ao desespero, se por desespero entendermos um mal-estar profundo decorrente de nossa consciência de que se destruíram as fundações que mantinham sólida a existência.
Não estou interessado em me deter muito na filosofia de Schopenhauer, já que o grande salto de que se deve dar aqui um testemunho verdadeiro é o que a filosofia de Nietzsche me permitiu dar. Todavia, alguns trechos de Schopenhauer servirão aqui não só para pavimentar o terreno pelo qual transitei até fazer o referido salto, mas também para assinalar alguns pontos da doutrina schopenhaueriana que são como tijolos da edificação de uma visão de mundo que, afinando-se com a minha intuição primaveril segundo a qual o sofrimento tece as malhas da existência, dispensa as exigências para justificá-la . Começarei por referir alguns trechos de Schopenhauer, colhidos da obra Parerga e Paralipomena, que se topam no capítulo destinado à exposição de sua doutrina do sofrimento do mundo:

“O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não ocorre com nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a infelicidade em geral que é a regra, embora a infelicidade individual apareça como exceção” (p.113)



Escuso-me de fazer uma análise cuidadosa do referido trecho. Bastar-me-á notar as seguintes ideias articuladas por Schopenhauer: a) a existência tende (dirige-se, encaminha-se) para o sofrimento; b) a dor é infinita e nasce da necessidade essencial à vida, de modo que a essência da vida é dor; c) antecipando uma tese que viria a ser endossada e desenvolvida por Freud, Schopenhauer afirma que somos suscetíveis mais à dor e poucas são as possibilidades de experiência de prazer, o qual, poderíamos acrescentar, é sempre fugidio; d) a infelicidade em geral é a norma da vida. Nesse elenco de ideias, já se deixam ver, pelo menos para os já iniciados, os rastros da influência budista no pensamento schopenhaueriano. Atentemos para o trecho seguinte:

“A história mostra-nos que a vida dos povos, e ali encontra apenas guerras e rebeliões para nos narrar, os anos de paz nos parecem tão-somente breves pausas, entre atos, aqui e ali. Igualmente a vida do indivíduo é uma luta contínua com a necessidade e o tédio, e não apenas no sentido metafórico. Por toda parte, o homem encontra oposição, vive continuamente em luta, e morre segurando suas armas” (p. 114)


Esse trecho, somado ao anterior, já nos permite compor a afinação do tom pessimista de que se impregna a filosofia schopenhauriana. Devemos, no entanto, nos prevenir contra a conclusão de que não há espaço, na sua cosmovisão, para um mundo onde seja possível a experiência de felicidade. Schopenhauer admite sê-lo, se bem que a felicidade de que nos fala será sempre uma felicidade negativa que se expressa na tentativa de evitar a dor, no que ele acompanha de perto a tradição ética que remonta a Aristóteles passando pelo epicurismo.
O próximo passo patenteia-nos um momento de sua crítica à visão de mundo cristã.

“Suponhamos que o ato da procriação não fosse uma necessidade e nem viesse junto com prazer, mas fosse um assunto de pura reflexão racional: será que nesse caso a humanidade continuaria a existir? Ou, pelo contrário, cada um teria a compaixão suficiente para não impor, com tanta frieza, o fardo da existência a geração seguinte? Pois o mundo constitui o inferno, e os homens dividem-se em dois grupos: de um lado ficam os atormentados, e de outro os demônios. Neste ponto, só porque exprimo as coisas tais como elas são, terei de ouvir de novo que minha filosofia é desesperadora, preferindo, as pessoas, que eu dissesse que Deus fez tudo segundo o melhor. Que essas pessoas, então, se dirijam à igreja, e deixem os filósofos em paz. Ou, pelo menos, que não exijam que os filósofos disponham suas doutrinas de forma a corresponder aos seus anseios. Isso quem faz são os filosofastros e os trapaceiros, aos quais podem-se encomendar doutrinas conforme ao gosto” (p.122).



Particularmente importante é a sua objeção à pretensa teodiceia de Leibniz:

“Ainda que a demonstração feita por Leibniz de que, de todos os mundos possíveis, este é o melhor, fosse correta, ela não forneceria uma teodiceia. O criador não criou apenas o mundo, mas também a própria possibilidade: dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de maneira a permitir um mundo melhor” (p.123)


Schopenhauer ilustra bem o que, na opinião de Luc Ferry, é uma adequada definição de filosofia: “uma doutrina de salvação sem Deus”. Em Vencer os medos (2008), o autor observa que, embora a filosofia incorpore a reflexão e a argumentação como momentos de sua atividade, ela não se reduz a esses momentos, que são seus meios de realização e não seus fins. Ferry, nesse livro, proporá e desenvolverá a definição de filosofia como doutrina de salvação sem Deus – definição que diz ser extensiva a toda a filosofia. Consoante defende o autor, “[a filosofia] é a grande concorrente das religiões – aliás, é a única atividade do espírito que cumpre esse papel” (p. 125).
Antes de prosseguir, parece-me necessário esclarecer em que medida podemos deixar as páginas de Schopenhauer sem experimentar um amargo sentimento de desespero. Desde que reconheçamos que, ao fim e ao cabo, não é razoável atribuir a causa do desespero à filosofia de Schopenhauer, que segundo ele mesmo mantém, não faz senão desvelar o mundo tal como é essencialmente, devemos, pois,  encontrá-la na inconsistência entre nosso desejo e o modo como o mundo é verdadeiramente . Em outros termos, o desespero é, na verdade, consequência do fato de que a verdade a respeito do mundo contraria o modo como nos habituamos a desejar que ele fosse. O desespero resulta do peso destrutivo que a verdade desvelada sobre o mundo tem sobre nossa crença ilusória a respeito dele.

2. O meu encontro com a filosofia de Nietzsche

Se meu encontro com o pensamento de Schopenhauer animou-me algumas de minhas convicções viscerais sobre a essência da vida, elas mesmas gestadas em minhas experiências sensível-corporais com o meu sofrimento próprio e dos outros, tão cedo acostumados a frequentar as salas de cirurgia em hospital, meu encontro com a filosofia de Nietzsche pôs-me no curso contrário ao de um ressentido e decadente – curso este a que a filosofia de Schopenhauer nos encaminha, segundo a interpretação do próprio Nietzsche.
É verdade que Nietzsche é tributário da filosofia schopenhaueriana, mas igualmente é verdade que Nietzsche viu em Schopenhauer um continuador de uma tradição niilista que remonta ao teísmo cristão. Em que sentido é o que devemo-nos esforçar por compreender.
Em primeiro lugar, Nietzsche notou que o fato de filósofos como Schopenhauer afirmarem filosoficamente seu ateísmo não significou, contudo, que eles renunciassem ao ideal dos valores superiores. Nietzsche notou também que os últimos metafísicos, entre os quais está Schopenhauer, em especial, continuaram a procurar no ideal a “realidade” verdadeira, a coisa-em-si kantiana, em face da qual o resto é reduzido à aparência.
Nietzsche, não sem razão, denuncia em Schopenhauer a preservação do dogma segundo o qual o nosso mundo das aparências, por não expressar claramente aquele ideal, não poderia ser verdadeiro. No curso de uma tradição metafísica socrático-platônica, Schopenhauer foi acusado de ter endossado a opinião de que o mundo das aparências tem como causa o mundo metafísico. Há, no entanto, - Nietzsche não deixará de perceber, o que nem por isso livra Schopenhauer da co-responsabilidade por dar continuidade àquela tradição metafísica, - uma especificidade na doutrina metafísica de Schopenhauer. Ele imaginou o fundo metafísico como uma “vontade má e cega”, antítese do ideal, que é como ele se manifesta no mundo das aparências.
Se investigada até suas últimas consequências, a doutrina de Schopenhauer acarretaria um enfraquecimento da vida, que se expressa na forma de desespero e ódio à própria vida. Contra essa tradição que congregou forças reativas que, enfraquecendo a vida, conduzem consequentemente ao desespero e ao ódio a ela, Nietzsche desenvolverá seu princípio da Vontade de Potência e, de modo geral, um pensamento obstinadamente afirmativo da vida. Em linhas gerais, a fim de atender os propósitos desta exposição, vou apresentar a crítica à qual Nietzsche submeteu o cristianismo.
Devo especialmente a essa crítica de Nietzsche o não ter sucumbido à condição de ressentido e a possibilidade de, em que pese as intempéries da sorte, animarem em mim os instintos afirmadores da existência, o que me permitiu reconciliar-me com o mundo em tudo que nele há de dor e sofrimento injustificável.
Nietzsche afirmou que “a vida acaba onde o reino de Deus começa”. Assim, o filósofo alemão expôs a negação de que é expressão a ilusão religiosa. Para ele, a religião é uma espécie de revolta contra a natureza, e o sobrenatural, não sendo um além do natural, é, pelo contrário, sua negação e a destruição dos melhores instintos.
Ser cristão é, para Nietzsche, o mesmo que ser niilista, já que, ao atribuir ao mundo imaginário o valor de verdade, o cristão retira do verdadeiro mundo que habitamos o seu valor. Na medida em que ele, cristão, se torna um amigo de Deus, torna-se, consequentemente, um inimigo do mundo. Mas só é inimigo do mundo no sentido de que, ao afirmar a Deus, nega o verdadeiro mundo em proveito de um mundo imaginário situado no horizonte da transcendência.
Nietzsche vê, portanto, como vingança a promessa cristã de uma vida de delícias no reino dos céus. O cristão estaria, desse modo, se contentando com fantasmagorias e, por conseguinte, desprezando e aviltando o mundo tal como existe de fato.
A ilusão cristã se torna, na crítica nietzschiana, patente: toma-se como verdadeiro o mundo ilusório e considera-se como aparente o único mundo que existe. A “morte de Deus” se situa, pois, nesse contexto, sendo então um momento singular da história do homem, em que aquilo que se mantinha encoberto pela máscara do niilismo religioso tornou-se abruptamente manifesto.
O homem sadio, em seus instintos mais profundos, é aquele que nega o mundo de suas venerações e deixa fluir os instintos fortes. Tal é então o modo como se aceita a vida como ela é e como ela é afirmada, a despeito de suas contrariedades, segundo se nos relevam à luz de um exame racional.
O homem sadio, reconciliado com o mundo, é aquele que não busca um sentido além do próprio ato imanente de viver. A questão que nos propõe Nietzsche é, então, o que faremos diante do vazio deixado pela demolição do significado transcendente de que se revestia a existência: ou nos acovardamos e nos satisfazemos com esperanças vãs, ou, autenticamente, escolhemos viver a vida em toda a sua plenitude, empregando, para tanto, toda a saúde do espírito e as forças ativas instintutivas.
O que há de problemático na religião, segundo a interpretação nietzschiana, é menos o fato de sua visão de mundo assentar em ficções do que o tipo de ficções que dá sustentabilidade ao seu edifício metafísico.
O discurso religioso é o único que reivindica uma origem além-mundo. A investigação genealógica desenvolvida por Nietzsche não cessará de criticar, em seu caminho, as ilusões religiosas. Na mira dessa crítica, que visava, fundamentalmente, a transvalorar todos os valores em que se fundamenta o mundo ocidental, está a estrutura ficcional em que se baseia o conhecimento humano.
Cumpre considerar, brevemente, o conceito de vontade de potência, a fim de elucidá-lo, visto que ele constitui o cerne da filosofia nietzschiana afirmadora da vida. A vontade de potência não se reduz à vontade de dominar. É ela vontade de posse total da existência e de si mesmo. É esforço por vencer a fatalidade, o aniquilamento, que se expressa, em última instância, na morte. É vontade de mais, pois que cria o possível.
Para Nietzsche, não há nada de substancial: nem eu, nem consciência psicológica e moral, nem objeto, nem verdade. O instante é inteiramente o que é: potência.
E assim se me abriu a possibilidade de escapar ao desespero, de não ceder ao peso do ressentimento, de não me deixar seduzir pelas tendências que enfraquecem a vida, tomando, ao contrário, um curso outro, que, sem me desviar da universalidade do sofrimento, que constitui a essência da vida, levou-me a aquiescer a ela e a aceitar minha co-presença com o único mundo verdadeiramente existente.
Ponho termo a este texto, com o seguinte excerto do comentador Mario Ferreira dos Santos, extraído de Vontade de Potência (2011).  A filosofia de Nietzsche reconduz o homem à terra. É uma filosofia da terra, do mundo que, através dela, se afirma como mundo heraclitiano, estruturado pela luta dos contrários. É nesse mundo que deve surgir o homem forte, regenerado, revigorado, o além-do-homem, o homem livre e senhor de sua vontade.



“(...) Um mundo de perfeições não conhece vitórias. Um mundo de perfeições não conhece felicidade. O homem, em vez de queixar-se, de amaldiçoar a vida, de pregar que esta terra é um vale de lágrimas, deveria, primeiramente, aprender a amá-la. Amor fati, sua fórmula para os homens. Amor do destino, seja qualquer for. Amar o mundo, a “terra dos homens”, porque os homens sempre a amaram. Nunca a terra criou “o amargo desespero de viver”. Mas as crenças religiosas ensinaram o homem a amaldiçoar a terra. A religião não deve afastar o homem do mundo. Este é a terra dos homens. A religião deve ensinar-lhes o aceno de amor. E para amar o mundo é preciso amar o destino. E por amor ao destino é preciso vencer a si mesmo. Vencer cada uma de suas batalhas e cada uma de suas derrotas, com um gesto de desdém e de maldade. Maldade e não malignidade, porque esta é atributo dos “bons”, porque quase sempre os bons são malignos. O homem deve conhecer a maldade daquele que se obstina, daquele que quer, daquele que tem de vencer. E grande é o gesto do vitorioso que poupa o vencido. Isso é nietzschiano. O homem deve vencer cada uma de suas derrotas e suplantar os empecilhos e os obstáculos. E somente nessa hora os homens poderão contemplar o mundo com um olhar gotheano cheio de amor e boa vontade para com seus semelhantes, porque nossa hora já não mais se conhecerá o domínio dos ressentimentos” (p. 72-73).





Nenhum comentário:

Postar um comentário