Ferdinand de Saussure
O homem
dos fundamentos
Convencionou-se datar o nascimento da
Linguística moderna a partir da publicação do Cours de linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, em 1916.
As ideias de Saussure influenciaram toda uma geração de especialistas, em
diversos domínios do saber humano e delas encontramos eco, ainda hoje, nos
centros acadêmicos de nosso país, nas conferências em que se divulgam estudos
sobre a linguagem.
Da publicação do Cours dependeu a afirmação do
estruturalismo linguístico na Europa. Mesmo a Escola Linguística de Praga, que
se desenvolveu entre as duas guerras mundiais, sustentando Teses que
enfatizavam o componente funcional da linguagem e que forte influência
exerceram sobre a mudança de paradigma na Linguística, ocorrida a partir dos
anos de 1970, bebeu da fonte saussuriana. Escusa aqui traçar um panorama
histórico da influência das ideias de Saussure, empreendimento este que o
leitor encontrará em manuais devotados à história do desenvolvimento do
pensamento linguístico. Necessário, contudo, é assinalar que a) embora Saussure
nunca tenha empregado o termo estrutura
em seu Cours, sua contribuição ao
desenvolvimento do pensamento linguístico fez surgir uma abordagem
revolucionária da língua, a qual ficou conhecida como estruturalismo; b) dois autores se destacam por ter contribuído
decisivamente para consagrar as ideias saussurrianas: nos Estados Unidos,
Leonard Bloomfield (1933); na Europa, Louis Hjelmslev (1935). O estruturalismo, a partir de Saussure,
viria a se tornar um método que grande influência exerceu na análise da língua,
da cultura, da sociedade, etc. na segunda metade do século XX.
Saussure é considerado o
pai da linguística moderna. Coube a ele lançar os fundamentos do edifício de
uma nova ciência: a Linguística. É bem verdade que, no século XIX, com os
trabalhos dos gramáticos comparativistas, já se buscava abordar o fenômeno
linguístico com base num modelo científico calcado sobre hipóteses e orientado
por um método que visava a explicar a mudança das línguas e a estabelecer
relações genealógicas entre elas. No entanto, a visão sistêmica da língua,
segundo a qual os elementos constitutivos do sistema devem ser estudados em
suas relações de interdependência recíproca, estava ausente das preocupações
desses estudiosos. Pelo menos da perspectiva de Saussure, ainda não havia uma
ciência linguística estabelecida, porque faltava àqueles estudos um objeto, do qual toda a variação deveria estar excluída, e um método próprios e bem
delimitados.
Para Saussure, esse
objeto é a langue (língua), tomada em
si e por si mesma. A langue é um sistema. Para definir a língua como
sistema, Saussure lançou mão de uma primeira dicotomia: langue/parole (língua/fala). Para o mestre genebrino, língua opõe-se a fala, na medida em que a língua é coletiva, isto é, um produto
social; a fala, a seu turno, é individual, uma realidade particular “de que o
indivíduo é o senhor”. Ademais, a língua é sistemática
(nela só há oposições recíprocas); a fala, assistemática.
A fala é heterogênea, multifacetada; a língua, homogênea. Interessado em
estabelecer uma ciência, que ele chamou de Linguística, Saussure precisava,
como se vê, determinar a natureza desse objeto. Saussure assumiu o pressuposto
segundo o qual não há ciência sem um objeto bem definido, sem um objeto que
seja homogêneo. Pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se,
porque, apesar de utilizar configurações linguísticas específicas (as quais
caracterizam a sua fala particular), fazem uso de um mesmo sistema de signos (e
de regras gramaticais). Em última análise, a língua é uma realidade de natureza
sui generis, de modo que uma pessoa
privada da fala não deixa de dominar a língua, desde que seja capaz de
reconhecer os sinais dessa língua.
Não obstante a distinção
rigorosa, estabelecida por Saussure, entre língua e fala, ele não deixa de
reconhecer a inter-relação entre os dois domínios, já que, nas palavras de
Roland Barthes, “não há língua sem fala e não há fala fora da língua”: a fala é
a realização da língua, no sentido de que a toma como um dado real, manifesto
(devemos lembrar que a língua é virtualidade; está depositada na mente de cada
falante); e, por outro lado, a ideia de fala
pressupõe a existência de uma língua. A língua é, pois, produto e instrumento
da fala.
Os fatos de fala, a seu
turno, não são recorrentes e referem-se ao uso do sistema. Por exemplo, em
certas regiões do país ou mesmo entre falantes de estratos sociais
estigmatizados, algumas palavras com /lh/ não são palatizadas. Pronuncia-se
“mulé” em vez de “mulher” (no sudeste, na modalidade oral, ocorre a apócope do
/r/, do que resulta a pronúncia normal “mulhé”). Observe-se, a despeito da
variação fonética, o som /lh/ não desaparece do sistema da língua portuguesa.
As mudanças no sistema são oriundas da fala. Para Saussure, quando essas
mudanças deixam o âmbito individual para figurar no domínio social – ou seja,
quando passa da fala para a língua – elas são estudadas sincronicamente nos
limites da língua.
Essa dicotomia entre
língua e fala, tal como fora desenvolvida por Saussure, sofreu inúmeras
críticas no desenvolvimento posterior da Linguística. Mas, afinal, o que se
quer dizer com “a língua é um sistema”. Primeiramente, é preciso definir o que
é um sistema. Sistema é um conjunto organizado de elementos em que um elemento
se define pelo outro, isto é, a função de um se define em relação aos demais.
Trata-se de conceber o sistema de um ponto de vista dualista: fala-se em singular porque existe o plural. O valor das unidades
linguísticas se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que casa está no singular, porque
existe a contraparte pluralizada casas.
Só podemos falar em morfema-zero
(ausência de marca) em casa, porque
podemos verificar o morfema pluralizador –s
na forma casas.
A langue saussuriana é um sistema
de signos abstrato. É abstrato
porque pensado isoladamente, em si e por si mesmo, do contexto social, em que é
usado. Do domínio da langue devem-se
excluir todos os fatores que lhe são externos e que dizem respeito às condições
sócio-históricas e culturais do uso da língua. Falta, no entanto, explicar o signo.
O signo, no sentido
estritamente linguístico, é qualquer unidade formada pela união de um
significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica (que Saussure chamará,
posteriormente, no texto do Cours, de
significante). Para ilustrar o signo,
Saussure toma a palavra; a palavra lobo,
por exemplo, é um signo, porque reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto,
que o significante não é o som em si, fenômeno material e físico, mas “a
impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado são ambos
faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante não é a
sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no falante.
Disse que a palavra foi
tomada por Saussure como exemplo de signo; mas o signo não deve ser limitado ao
estrato da palavra. Em língua, o signo é qualquer unidade constituída de
significante e significado. Portanto, morfemas, mínimas unidades sonoras
dotadas de significado nas quais se dividem as palavras, são também signos.
Frases e textos, tomados como unidades sintático-semânticas maiores, também são
signos. Uma unidade linguística só pode ser considerada signo, quando
apresentar as duas faces articuladas: significante
e significado. Assim, por exemplo, o
–va, de cantava, é um signo. Trata-se da desinência modo-temporal
correspondente ao pretérito imperfeito do indicativo. Trata-se, portanto, de um
morfema. Enquanto signo, “-va”
encerra um significado gramatical: faz distinção quanto ao modo e ao tempo em
que está empregado o verbo “cantar”. A forma “cantava” opõem-se, por força da
presença de “-va”, a formas como “cantou”, “canto”, “cantarei”, etc. Nas formas
“cantou” e “canto”, a desinência modo-temporal é representada por um
morfema-zero; na forma “cantarei”, pelo morfema “-re”.
Por outro lado, o /r/ de
“rato” é um fonema no radical rat- e,
portanto, não é um signo. Os fonemas são unidades linguísticas desprovidas de
significado; falta-lhes, portanto, a contraparte significativa que caracteriza
todo signo.
Não se pode esquecer-se
de que “signo”, em semiologia, designa também “gestos”, “imagens”, “sons que
não são linguísticos”, tais como o apito de um trem, o tilintar de uma
campainha, as cores, etc. Assim, pode-se afirmar que “o signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo
aspecto e de algum modo representa alguma coisa para alguém” (Pierce,1975:94 apud. Castelar, 2003: 30).
Sumariando o que se
expôs, cumpre notar o seguinte:
a) é social;
b) é homogênea;
c) é sistemática;
d) é abstrata;
e) é supra-individual;
f) é psíquica;
g) é forma;
h) é unidade;
i) é instituição;
j) é potencialidade ativa de produzir a fala;
l) é essencial.
a) é individual;
b) é heterogênea;
c) assistemática;
d) concreta;
e) variável;
f) momentânea;
g) inovadora;
h) substância;
i) o indivíduo é o “senhor”;
j) práxis (ação).
l) é acidental.
3. “O signo linguístico une não uma coisa e uma
palavra, mas um conceito a uma imagem acústica”.
4. Conceito = significado. / imagem acústica =
significante. Tanto o significado quanto o significante são de natureza mental.
A imagem acústica não é o som material; não se identifica com a materialidade
sonora, mas é “a impressão psíquica do
som”.
Será forçoso protelar
para outra oportunidade a exposição sobre a noção de valor linguístico, que cumpre um papel fundamental na concepção
sistêmica saussuriana de língua. A compreensão dessa concepção é extremamente
dependente da compreensão daquela noção. Por ora, basta dizer que a noção de
valor é sempre relacional: o valor de
uma unidade linguística se define na relação que essa unidade estabelece com
outra unidade na cadeia sintagmática. Assim, o fonema /l/ só tem valor
dentro do sistema quando posto em relação com /p/, cujo valor só se apreende em oposição a
/l/, uma vez considerados o par mínimo /lata/ e /pata/.
A fim de que o leitor
perceba a influência de Saussure no desenvolvimento do pensamento de pensadores posteriores e a fim de que se
esclareça um fundamento básico em que se esteia a prática de análise
linguística, na próxima e última seção deste texto, dou a saber o princípio da Dupla Articulação da Linguagem.
O francês André Martinet,
expoente da Lingüística Funcionalista da Escola
Lingüística de Praga1, interessou-se pelos estudos da fonologia
descritiva, da fonologia diacrônica e da Lingüística Geral. Uma de suas mais
importantes contribuições é, decerto, a teoria da Dupla Articulação da Linguagem.
Baseando-se na proposição
de Saussure, segundo a qual a língua é constituída pela interdependência entre
dois planos (o dos sons e das idéias), o lingüista francês propôs que todo
enunciado articula-se em dois planos: o do conteúdo, o qual corresponde à 1ª
articulação; e o da expressão, que se refere à 2ª articulação.
O plano do conteúdo
compreende as unidades lingüísticas significativas. A menor dentre essas
unidades é o monema2. Por outro lado, o plano da expressão encerra
as unidades lingüísticas destituídas de significado. A menor unidade desse
plano é o fonema; este é definido como a mínima unidade sonora distintiva. O
fonema é destituído de significado; mas estabelece distinção significativa
entre palavras.
Destarte, se ocorresse ao
falante a idéia de ‘refeição noturna com a família’, ele poderia expressar
(plano da expressão) seu pensamento (plano do conteúdo) mediante os monemas:
“jant-“, “-a”, “-r”, de cuja concatenação resultará o lexema jantar.
Tradicionalmente,
entende-se que o plano da expressão refere-se à fonologia, já que nesse plano
figuram os fonemas; e o plano do conteúdo reúne as unidades morfológicas
(monemas e lexemas) e sintáticas (sintagma e oração). Destarte, o enunciado nós jantamos cedo, pode ser articulado
como: nós – jantamos-cedo, caso em
que se verificam três vocábulos. A forma “jantamos” pode ser dividida em:
“jant-“, “-a”, “-mos”. Essas unidades (vocábulos e monemas) compõem o plano da
1ª articulação. O mesmo enunciado pode ser articulado como: /n/, /ó/, /S/, /j/,
/a/, /N/, /t/, /a/, /m/, /o/, /S/, /s/, /ê/, /d/, /o/. Nesse caso,
explicitam-se seus fonemas. Essa divisão corresponde à 2ª articulação. Veja-se
o quadro na próxima página:
Martinet ensinou que o
recorte analítico pode explicitar as unidades lingüísticas significativas,
dentre as quais a menor é o monema (unidade mínima significativa de análise); e
as unidades lingüísticas destituídas de significado (os fonemas). O componente
semântico é depreendido das unidades pertencentes à 1ª articulação. Assim como
Martinet, que se baseou na dicotomia ‘significado/ significante’, de Ferdinand
de Saussure, para desenvolver sua teoria da Dupla Articulação da Linguagem,
Hjelmslev, estruturalista dinamarquês que radicalizou as idéias de Saussure, em
seu livro Prolegômenos a uma teoria da
linguagem (1943), propôs uma subdivisão entre os planos do conteúdo e da
expressão, em cada um dos quais inclui as noções de ‘forma’ e ‘substância’
(conceitos saussurianos). Destarte, no plano do conteúdo, há uma forma, que consiste numa relação sêmica
e refere-se à própria estruturação das idéias. Em coelha, há a relação entre o significado ‘coelho’ e o ‘gênero
feminino (“ela”)’. Outrossim, nesse plano, há uma substância, que se refere ao
pensamento amorfo, desestruturado. Corresponde, pois, à idéia que os falantes
tem desse animal: “coelha” é a fêmea da espécie “coelho”.
Também, no plano da
expressão, verificam-se a forma e a substância. Esta corresponde aos sons
desestruturados: representa a massa fônica sem valor funcional. Isso nos lembra
a Fonética, estudo que se ocupa dos “fones” (ou seja, de todas as realizações
sonoras da fala). Assim, em gato,
distinguem-se os fones: [g], [a], [t], [u]. A forma refere-se à estruturação
dos sons na cadeia da fala. Os sons são considerados sob o ponto de vista
funcional (fonemas). Do binômio forma/
substância, pode-se depreender, portanto, a distinção entre fonologia
(estudo da forma dos sons) e fonética (estudo da substância dos sons).
Finalmente, cabe observar
que, consoante a proposição de Hjelmslev, a língua é responsável por relacionar
os dois níveis. No entanto, como se verá no esquema a seguir, a língua
restringe-se à forma, já que, em consonância com Saussure, Hjelmslev também
relaciona “substância” a “fala”; afinal, na proposição de Saussure, a fala é
uma realidade não-sistemática.
Note-se ainda como o
substantivo coelha pode ser
segmentado, consoante o ponto de vista de Hjelmslev:
Está claro o refinamento
com que o princípio da dupla articulação da linguagem aparece em Hjelmslev. Ao
invés de propor um recorte dicotômico apenas, de acordo com o qual o plano das
idéias se articularia ao plano material, sem qualquer subdivisão interna, o
lingüista entende que, no âmbito das unidades significativas, deve-se
distinguir entre o significado “bruto” (substância) e o significado estruturado
(forma); e, no âmbito das unidades da expressão, deve-se distinguir entre a
natureza físico-articulatória (substância) e a natureza sistêmico-funcional dos
sons, atribuindo à língua a função de relacionar a forma do conteúdo à forma da
expressão. Segundo a proposição de Hjelmslev, há, pois, um princípio estrutural
(formal) quer no plano das idéias, quer no plano da expressão. Hjelmslev,
assumindo a articulação da “forma do conteúdo” com a “forma da substância”,
reafirma radicalmente a idéia saussurriana de que a língua é forma, e não
substância.
Por fim, cumpre mencionar
que a dupla articulação da linguagem consiste num princípio assaz relevante aos
estudos lingüísticos3.
2. O termo monema recobre a noção de morfema do
estruturalismo. Martinet denomina de monemas as unidades da primeira
articulação, mas distingue, entre estas, os lexemas, monemas que se situam no
léxico, dos morfemas, monemas que se situam na gramática.
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