segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, é o ponto de vista que cria o objeto" (Saussure)

                  
                                    
                                    
      Ferdinand de Saussure
                          O homem dos fundamentos


Convencionou-se datar o nascimento da Linguística moderna a partir da publicação do Cours de linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, em 1916. As ideias de Saussure influenciaram toda uma geração de especialistas, em diversos domínios do saber humano e delas encontramos eco, ainda hoje, nos centros acadêmicos de nosso país, nas conferências em que se divulgam estudos sobre a linguagem.
Da publicação do Cours dependeu a afirmação do estruturalismo linguístico na Europa. Mesmo a Escola Linguística de Praga, que se desenvolveu entre as duas guerras mundiais, sustentando Teses que enfatizavam o componente funcional da linguagem e que forte influência exerceram sobre a mudança de paradigma na Linguística, ocorrida a partir dos anos de 1970, bebeu da fonte saussuriana. Escusa aqui traçar um panorama histórico da influência das ideias de Saussure, empreendimento este que o leitor encontrará em manuais devotados à história do desenvolvimento do pensamento linguístico. Necessário, contudo, é assinalar que a) embora Saussure nunca tenha empregado o termo estrutura em seu Cours, sua contribuição ao desenvolvimento do pensamento linguístico fez surgir uma abordagem revolucionária da língua, a qual ficou conhecida como estruturalismo; b) dois autores se destacam por ter contribuído decisivamente para consagrar as ideias saussurrianas: nos Estados Unidos, Leonard Bloomfield (1933); na Europa, Louis Hjelmslev (1935). O estruturalismo, a partir de Saussure, viria a se tornar um método que grande influência exerceu na análise da língua, da cultura, da sociedade, etc. na segunda metade do século XX.


1. A língua como sistema de signos

Saussure é considerado o pai da linguística moderna. Coube a ele lançar os fundamentos do edifício de uma nova ciência: a Linguística. É bem verdade que, no século XIX, com os trabalhos dos gramáticos comparativistas, já se buscava abordar o fenômeno linguístico com base num modelo científico calcado sobre hipóteses e orientado por um método que visava a explicar a mudança das línguas e a estabelecer relações genealógicas entre elas. No entanto, a visão sistêmica da língua, segundo a qual os elementos constitutivos do sistema devem ser estudados em suas relações de interdependência recíproca, estava ausente das preocupações desses estudiosos. Pelo menos da perspectiva de Saussure, ainda não havia uma ciência linguística estabelecida, porque faltava àqueles estudos um objeto, do qual toda a variação deveria estar excluída,  e um método próprios e bem delimitados.
Para Saussure, esse objeto é a langue (língua), tomada em si e por si mesma. A langue é um sistema. Para definir a língua como sistema, Saussure lançou mão de uma primeira dicotomia: langue/parole (língua/fala). Para o mestre genebrino, língua opõe-se a fala, na medida em que a língua é coletiva, isto é, um produto social; a fala, a seu turno, é individual, uma realidade particular “de que o indivíduo é o senhor”. Ademais, a língua é sistemática (nela só há oposições recíprocas); a fala, assistemática. A fala é heterogênea, multifacetada; a língua, homogênea. Interessado em estabelecer uma ciência, que ele chamou de Linguística, Saussure precisava, como se vê, determinar a natureza desse objeto. Saussure assumiu o pressuposto segundo o qual não há ciência sem um objeto bem definido, sem um objeto que seja homogêneo. Pessoas que falam a mesma língua conseguem comunicar-se, porque, apesar de utilizar configurações linguísticas específicas (as quais caracterizam a sua fala particular), fazem uso de um mesmo sistema de signos (e de regras gramaticais). Em última análise, a língua é uma realidade de natureza sui generis, de modo que uma pessoa privada da fala não deixa de dominar a língua, desde que seja capaz de reconhecer os sinais dessa língua.
Não obstante a distinção rigorosa, estabelecida por Saussure, entre língua e fala, ele não deixa de reconhecer a inter-relação entre os dois domínios, já que, nas palavras de Roland Barthes, “não há língua sem fala e não há fala fora da língua”: a fala é a realização da língua, no sentido de que a toma como um dado real, manifesto (devemos lembrar que a língua é virtualidade; está depositada na mente de cada falante); e, por outro lado, a ideia de fala pressupõe a existência de uma língua. A língua é, pois, produto e instrumento da fala.
Os fatos de fala, a seu turno, não são recorrentes e referem-se ao uso do sistema. Por exemplo, em certas regiões do país ou mesmo entre falantes de estratos sociais estigmatizados, algumas palavras com /lh/ não são palatizadas. Pronuncia-se “mulé” em vez de “mulher” (no sudeste, na modalidade oral, ocorre a apócope do /r/, do que resulta a pronúncia normal “mulhé”). Observe-se, a despeito da variação fonética, o som /lh/ não desaparece do sistema da língua portuguesa. As mudanças no sistema são oriundas da fala. Para Saussure, quando essas mudanças deixam o âmbito individual para figurar no domínio social – ou seja, quando passa da fala para a língua – elas são estudadas sincronicamente nos limites da língua.
Essa dicotomia entre língua e fala, tal como fora desenvolvida por Saussure, sofreu inúmeras críticas no desenvolvimento posterior da Linguística. Mas, afinal, o que se quer dizer com “a língua é um sistema”. Primeiramente, é preciso definir o que é um sistema. Sistema é um conjunto organizado de elementos em que um elemento se define pelo outro, isto é, a função de um se define em relação aos demais. Trata-se de conceber o sistema de um ponto de vista dualista: fala-se em singular porque existe o plural. O valor das unidades linguísticas se define pela oposição umas às outras. Por exemplo, sabemos que casa está no singular, porque existe a contraparte pluralizada casas. Só podemos falar em morfema-zero (ausência de marca) em casa, porque podemos verificar o morfema pluralizador –s na forma casas.
A langue saussuriana é um sistema de signos abstrato. É abstrato porque pensado isoladamente, em si e por si mesmo, do contexto social, em que é usado. Do domínio da langue devem-se excluir todos os fatores que lhe são externos e que dizem respeito às condições sócio-históricas e culturais do uso da língua. Falta, no entanto, explicar o signo.
O signo, no sentido estritamente linguístico, é qualquer unidade formada pela união de um significado (ideia, conceito) a uma imagem acústica (que Saussure chamará, posteriormente, no texto do Cours, de significante). Para ilustrar o signo, Saussure toma a palavra; a palavra lobo, por exemplo, é um signo, porque reúne o significado mamífero carnívoro da família canidae’ ao significante /lobo/. É preciso frisar, no entanto, que o significante não é o som em si, fenômeno material e físico, mas “a impressão psíquica do som”. Portanto, significante e significado são ambos faces do signo definidas a partir do domínio psíquico. O significante não é a sequência sonora em si, mas a impressão psíquica que ela evoca no falante.
Disse que a palavra foi tomada por Saussure como exemplo de signo; mas o signo não deve ser limitado ao estrato da palavra. Em língua, o signo é qualquer unidade constituída de significante e significado. Portanto, morfemas, mínimas unidades sonoras dotadas de significado nas quais se dividem as palavras, são também signos. Frases e textos, tomados como unidades sintático-semânticas maiores, também são signos. Uma unidade linguística só pode ser considerada signo, quando apresentar as duas faces articuladas: significante e significado. Assim, por exemplo, o –va, de cantava, é um signo. Trata-se da desinência modo-temporal correspondente ao pretérito imperfeito do indicativo. Trata-se, portanto, de um morfema. Enquanto signo, “-va” encerra um significado gramatical: faz distinção quanto ao modo e ao tempo em que está empregado o verbo “cantar”. A forma “cantava” opõem-se, por força da presença de “-va”, a formas como “cantou”, “canto”, “cantarei”, etc. Nas formas “cantou” e “canto”, a desinência modo-temporal é representada por um morfema-zero; na forma “cantarei”, pelo morfema “-re”.
Por outro lado, o /r/ de “rato” é um fonema no radical rat- e, portanto, não é um signo. Os fonemas são unidades linguísticas desprovidas de significado; falta-lhes, portanto, a contraparte significativa que caracteriza todo signo.
Não se pode esquecer-se de que “signo”, em semiologia, designa também “gestos”, “imagens”, “sons que não são linguísticos”, tais como o apito de um trem, o tilintar de uma campainha, as cores, etc. Assim, pode-se afirmar que “o signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo aspecto e de algum modo representa alguma coisa para alguém” (Pierce,1975:94 apud. Castelar, 2003: 30).
Sumariando o que se expôs, cumpre notar o seguinte:

1. A langue (língua) constitui um objeto homogêneo: um sistema abstrato de signos que se relacionam reciprocamente. A língua é forma, não substância. Ela deve ser estudada em si e por si mesma, sem qualquer relação com o contexto de uso social. Ela apresenta as seguintes características:

a) é social;
b) é homogênea;
c) é sistemática;
d) é abstrata;
e) é supra-individual;
f) é psíquica;
g) é forma;
h) é unidade;
i) é instituição;
j) é potencialidade ativa de produzir a fala;
l) é essencial.


2. A parole (fala) é a realização individual da língua. Compreende atos linguísticos individuais. É múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Ela apresenta as seguintes características:

a) é individual;
b) é heterogênea;
c) assistemática;
d) concreta;
e) variável;
f) momentânea;
g) inovadora;
h) substância;
i) o indivíduo é o “senhor”;
j) práxis (ação).
l) é acidental.


3. “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica”.

4. Conceito = significado. / imagem acústica = significante. Tanto o significado quanto o significante são de natureza mental. A imagem acústica não é o som material; não se identifica com a materialidade sonora, mas é “a impressão psíquica do som”.



Será forçoso protelar para outra oportunidade a exposição sobre a noção de valor linguístico, que cumpre um papel fundamental na concepção sistêmica saussuriana de língua. A compreensão dessa concepção é extremamente dependente da compreensão daquela noção. Por ora, basta dizer que a noção de valor é sempre relacional: o valor de uma unidade linguística se define na relação que essa unidade estabelece com outra unidade na cadeia sintagmática. Assim, o fonema /l/ só tem valor dentro do sistema quando posto em relação com  /p/, cujo valor só se apreende em oposição a /l/, uma vez considerados o par mínimo /lata/ e /pata/.
A fim de que o leitor perceba a influência de Saussure no desenvolvimento do pensamento de  pensadores posteriores e a fim de que se esclareça um fundamento básico em que se esteia a prática de análise linguística, na próxima e última seção deste texto, dou a saber o princípio da Dupla Articulação da Linguagem.


  
2. A dupla articulação da linguagem

O francês André Martinet, expoente da Lingüística Funcionalista da Escola Lingüística de Praga1, interessou-se pelos estudos da fonologia descritiva, da fonologia diacrônica e da Lingüística Geral. Uma de suas mais importantes contribuições é, decerto, a teoria da Dupla Articulação da Linguagem.
Baseando-se na proposição de Saussure, segundo a qual a língua é constituída pela interdependência entre dois planos (o dos sons e das idéias), o lingüista francês propôs que todo enunciado articula-se em dois planos: o do conteúdo, o qual corresponde à 1ª articulação; e o da expressão, que se refere à 2ª articulação.
O plano do conteúdo compreende as unidades lingüísticas significativas. A menor dentre essas unidades é o monema2. Por outro lado, o plano da expressão encerra as unidades lingüísticas destituídas de significado. A menor unidade desse plano é o fonema; este é definido como a mínima unidade sonora distintiva. O fonema é destituído de significado; mas estabelece distinção significativa entre palavras.
Destarte, se ocorresse ao falante a idéia de ‘refeição noturna com a família’, ele poderia expressar (plano da expressão) seu pensamento (plano do conteúdo) mediante os monemas: “jant-“, “-a”, “-r”, de cuja concatenação resultará o lexema jantar.
Tradicionalmente, entende-se que o plano da expressão refere-se à fonologia, já que nesse plano figuram os fonemas; e o plano do conteúdo reúne as unidades morfológicas (monemas e lexemas) e sintáticas (sintagma e oração). Destarte, o enunciado nós jantamos cedo, pode ser articulado como: nós – jantamos-cedo, caso em que se verificam três vocábulos. A forma “jantamos” pode ser dividida em: “jant-“, “-a”, “-mos”. Essas unidades (vocábulos e monemas) compõem o plano da 1ª articulação. O mesmo enunciado pode ser articulado como: /n/, /ó/, /S/, /j/, /a/, /N/, /t/, /a/, /m/, /o/, /S/, /s/, /ê/, /d/, /o/. Nesse caso, explicitam-se seus fonemas. Essa divisão corresponde à 2ª articulação. Veja-se o quadro na próxima página:

        
                       


Martinet ensinou que o recorte analítico pode explicitar as unidades lingüísticas significativas, dentre as quais a menor é o monema (unidade mínima significativa de análise); e as unidades lingüísticas destituídas de significado (os fonemas). O componente semântico é depreendido das unidades pertencentes à 1ª articulação. Assim como Martinet, que se baseou na dicotomia ‘significado/ significante’, de Ferdinand de Saussure, para desenvolver sua teoria da Dupla Articulação da Linguagem, Hjelmslev, estruturalista dinamarquês que radicalizou as idéias de Saussure, em seu livro Prolegômenos a uma teoria da linguagem (1943), propôs uma subdivisão entre os planos do conteúdo e da expressão, em cada um dos quais inclui as noções de ‘forma’ e ‘substância’ (conceitos saussurianos). Destarte, no plano do conteúdo, há uma forma, que consiste numa relação sêmica e refere-se à própria estruturação das idéias. Em coelha, há a relação entre o significado ‘coelho’ e o ‘gênero feminino (“ela”)’. Outrossim, nesse plano, há uma substância, que se refere ao pensamento amorfo, desestruturado. Corresponde, pois, à idéia que os falantes tem desse animal: “coelha” é a fêmea da espécie “coelho”.
Também, no plano da expressão, verificam-se a forma e a substância. Esta corresponde aos sons desestruturados: representa a massa fônica sem valor funcional. Isso nos lembra a Fonética, estudo que se ocupa dos “fones” (ou seja, de todas as realizações sonoras da fala). Assim, em gato, distinguem-se os fones: [g], [a], [t], [u]. A forma refere-se à estruturação dos sons na cadeia da fala. Os sons são considerados sob o ponto de vista funcional (fonemas). Do binômio forma/ substância, pode-se depreender, portanto, a distinção entre fonologia (estudo da forma dos sons) e fonética (estudo da substância dos sons).
Finalmente, cabe observar que, consoante a proposição de Hjelmslev, a língua é responsável por relacionar os dois níveis. No entanto, como se verá no esquema a seguir, a língua restringe-se à forma, já que, em consonância com Saussure, Hjelmslev também relaciona “substância” a “fala”; afinal, na proposição de Saussure, a fala é uma realidade não-sistemática.

Note-se ainda como o substantivo coelha pode ser segmentado, consoante o ponto de vista de Hjelmslev:





Está claro o refinamento com que o princípio da dupla articulação da linguagem aparece em Hjelmslev. Ao invés de propor um recorte dicotômico apenas, de acordo com o qual o plano das idéias se articularia ao plano material, sem qualquer subdivisão interna, o lingüista entende que, no âmbito das unidades significativas, deve-se distinguir entre o significado “bruto” (substância) e o significado estruturado (forma); e, no âmbito das unidades da expressão, deve-se distinguir entre a natureza físico-articulatória (substância) e a natureza sistêmico-funcional dos sons, atribuindo à língua a função de relacionar a forma do conteúdo à forma da expressão. Segundo a proposição de Hjelmslev, há, pois, um princípio estrutural (formal) quer no plano das idéias, quer no plano da expressão. Hjelmslev, assumindo a articulação da “forma do conteúdo” com a “forma da substância”, reafirma radicalmente a idéia saussurriana de que a língua é forma, e não substância.
Por fim, cumpre mencionar que a dupla articulação da linguagem consiste num princípio assaz relevante aos estudos lingüísticos3.


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NOTAS

          1.  A designação Escola Lingüística de Praga aplica-se a um grupo de estudiosos que participaram do Círculo Lingüístico de Praga (1929). Nessa abordagem, a língua é considerada um sistema funcional, em que o componente estrutural coexiste com o componente funcional. “Funcional”, na perspectiva desses estudiosos, diz respeito à propriedade de a língua servir fundamentalmente à comunicação; a língua é, pois, um sistema de comunicação.

2. O termo monema recobre a noção de morfema do estruturalismo. Martinet denomina de monemas as unidades da primeira articulação, mas distingue, entre estas, os lexemas, monemas que se situam no léxico, dos morfemas, monemas que se situam na gramática.

3. A teoria de André Martinet apresenta uma conclusão fundamental acerca da natureza da linguagem humana: o princípio da economia lingüística. Esse princípio pode ser definido como o fato de que o sistema lingüístico permite ao falante a produção de um número infinito de enunciados mediante um número limitado de unidades. Veja-se que o português, com apenas 28 fonemas (19 consoantes, 7 vogais e 2 semivogais), permite-nos produzir um número, teoricamente, ilimitado de enunciados. Por exemplo, produzimos novas palavras na língua, basicamente, mediante processos derivacionais, os quais consistem na junção de elementos mínimos recorrentes a bases morfológicas; logo, não memorizamos todas as palavras de nossa língua. O princípio de economia lingüística evita, portanto, que nossa memória fique sobrecarregada e assegura a dinamicidade e eficiência do sistema. Note-se, destarte, que, para adquirir uma nova palavra, utilizamos o material já existente no léxico: dispondo de “computar”, formamos “computação”, mediante a junção de “-ção” à base “computa(r)” (já disponível).





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