domingo, 12 de outubro de 2014

"A morte é a maneira de ser que a realidade humana assume desde que passa a existir. Tão logo um homem começa a viver, já é suficientemente velho para morrer".(Heidegger)



A morte como minha possibilidade própria

A interpretação existencial da morte de Marin Heidegger


Os passos abaixo de Fernando Pessoa, dois dos quais colhidos de seu O Livro do Desassossego, servirão para ancorar o desenvolvimento deste breve e despretensioso estudo sobre como o problema da morte foi abordado na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976).
O primeiro enunciado de Pessoa, que se topa logo abaixo, rejeita a separação entre sensibilidade e razão, entre sensação e pensamento. Essa indissociabilidade entre pensar e sentir deve, desde já, ser conectada à noção de compreensão de que se serviu Heidegger, a qual encerra a sensibilidade. Ademais, essa indissociabilidade deve também se articular ao modo como o homem tem acesso ao próprio ser. Heidegger dirá que a existência é, primeiramente, sentida. Não é chegado ainda o momento em que faremos incursão no pensamento de Heidegger; por isso, consideremos, por ora, o segundo passo de Pessoa.


 “O que em mim sente está pensando”.
    

Neste passo a seguir, Pessoa põe o pensamento a serviço do sentir e identifica o pensar com o viver. Sentir e pensar são o mesmo que viver. É importante retermos essa indissociabilidade entre pensar, sentir e viver, em primeiro lugar, porque a própria experiência de leitura é forma de vivência que articula pensar e sentir; em segundo lugar, porque desejo que o leitor, mais do que pense com Heidegger, compreendendo aquilo de que ele deu testemunho, sinta também, a seu modo próprio, evidentemente, o modo como ele procurou dar conta da dimensão existencial da morte.


  “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”    (p.101).


Sem tencionar uma análise do excerto abaixo, limito-me a externar sobre ele algumas palavras. Seu tópico textual é a morte, conforme se vê claramente. Chamo atenção para o fato de que Pessoa reconhece o que Heidegger, conforme veremos, já havia reconhecido: mesmo em face de um morto, nós não temos uma experiência de morte. Experimentamos o pesar, o luto, mas jamais o evento existencial da morte. Trata-se, nesses casos, da morte como um fato do qual tomamos consciência imediata, de uma morte alheia. É desse modo que o homem imerso na cotidianidade percebe a morte: a morte é percebida como um acontecimento do mundo, genérico. Certamente, há muito que se por a descoberto no texto de Pessoa; no entanto, deixo ao leitor essa tarefa de escavação de sentidos. Deleite-se!



“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira” (p. 71).



1. Martin Heidegger (1889-1976)



       Heidegger é reconhecidamente um dos filósofos alemães mais importantes que atuaram no século XX. Nascido em Messkirch, foi professor na Universidade de Freiburg (1916), onde estudou com Hurssel.
Sua obra mais importante é Ser e Tempo (1927). Esse estudo, inacabado, marca seu distanciamento relativamente à fenomenologia de seu mestre Hurssel e inaugura um modo próprio de encaminhar a reflexão filosófica sobre o sentido profundo da existência humana, bem como sobre a metafísica, e o significado de sua influência no desenvolvimento do pensamento ocidental.
A tradição o situa entre os filósofos da Existência, muito embora ele próprio, Heidegger, recusasse esse rótulo. Os estudiosos de Heidegger concordam, em geral, em que ele é um filósofo cujo pensamento é extremamente difícil de entender, o que torna a tarefa de estudar sua filosofia bastante espinhosa, mormente para aqueles que, sem algum treinamento prévio, entram em contato diretamente com sua obra.
As dificuldades que estorvam a busca pela compreensão de Heidegger são de duas ordens. A primeira das quais diz respeito ao vocabulário de que se serviu o filósofo (sabe-se que Heidegger criou uma terminologia própria, a fim de dar forma às suas concepções). A segunda dificuldade repousa na incompletude de sua obra, o que torna seu discurso reticencioso.
Tais dificuldades não devem constituir razão suficiente para nos desencorajar de experienciar a originalidade de seu pensamento. Heidegger buscou recuperar a importância fundamental da questão do ser, que, na esteira do pensamento moderno, foi relegada em favor de questões atinentes ao conhecimento e à ciência. Seu objetivo consistiu em recuperar o sentido original do ser, não sem antes lançar por terra a ontologia tradicional.


2. O ponto de partida: a morte é constitutiva da essência da existência

Porque se situa no limite da existência, a morte é, por definição, o não-experimentável. Ainda que se postule a possibilidade de uma continuidade do ser, após a morte, a experiência do fim continuaria impossibilitada enquanto evento existencial.
Heidegger tomará como ponto de partida de suas reflexões sobre a morte a concepção da morte como constitutiva da existência mesma. Em Ser e Tempo, seu esforço consistirá em mostrar que a morte é um evento singular, uma possibilidade própria de cada um, e não uma mera negação da existência.



             2.1. O sentido original do Ser

Antes de me deter a considerar como o problema da morte foi desenvolvido por Heidegger, é necessário esclarecer a busca do sentido original do ser, levada a efeito por ele (sentido negligenciado pela metafísica, que remonta a Platão e a Aristóteles).
Heidegger notará que, na metafísica tradicional, a diferença ontológica entre ser e ente se diluiu, de modo que a pergunta pelo sentido do ser se reduziu à pergunta pela essência dos entes. Mas o ser de que nos falava, por exemplo, Parmênides, não é o ente, mas a condição de possibilidade dos entes. Perguntar-se pelo sentido do ser equivale, portanto, a perguntar-se pelo horizonte em que o ser se constitui como possibilidade de compreensão (aqui se deve entender “entrar em relação com”) dos entes. O ser é da ordem da condição que torna possível a existência dos entes, que são os indivíduais. O ser é da ordem do acontecimento inaugural, presença totalizante, do qual os entes, tomando parte, são dados imediatamente acessíveis à experiência sensível. Daí a trivialidade que Heidegger redescobrirá: todo ente é no ser. É aí que reside o espanto para os gregos. O ente recolhido no ser tornou-se para os gregos o mais espantoso, nota Heidegger.



            2.2. O Dasein e o mundo

O ser humano, para Heidegger, é existência. Heidegger pensará o ser humano como ser-no-mundo. Em primeiro lugar, cumpre notar, com Heidegger, que, desde o nascimento, antes mesmo de desenvolver qualquer reflexão teorética sobre o mundo, o ser humano está envolvido com o mundo, nas diversas atividades de que participa: brincando, estudando, trabalhando, convivendo, etc. O mundo, portanto, não é externo ao homem; não preexiste a ele. Por isso, o homem surge como ser-no-mundo, isto é, envolvido com o mundo; e o mundo é copresente com o homem. O homem é um ente ocupado com o mundo; o mundo e a existência deste ente privilegiado que é o homem, porque é ele que se pergunta pelo sentido do ser – são dados de forma imediata.
Vale frisar esta ideia: não há ser humano sem mundo, nem mundo sem ser humano. Esclareça-se o termo Dasein, agora. O Dasein se costuma traduzir como ser-o-aí. Essa forma de tradução sugere que a condição humana está sempre lançada numa situação ou circunstância no mundo. Acrescente-se que o Dasein é um índice formal da condição humana, que, diferentemente do que sucede com os demais entes, existe na indeterminação de seu ser. O homem ou Dasein é ente indeterminado em seu ser. Basta dizer, por ora, que estamos longe da concepção tradicional de homem como ser racional.
Tome-se, agora, a indeterminação do Dasein, enquanto ser-no-mundo. Como ser-no-mundo, o Dasein está irremediavelmente lançado nesta condição: estar no mundo estrutura fundamentalmente o seu ser. Esse ser é sempre indeterminado, é ser de possibilidades. Somos o que somos em função do que realizamos em dadas circunstâncias; e sempre realizamos com base nas possibilidades que se abrem em contextos previamente fixados. Aqui cabe dizer que a postura teorética é sempre posterior a essa relação primeira e engajada do Dasein com o mundo.
O ser humano não só propõe a questão sobre o sentido do ser, mas já é o ente que compreende implicitamente esse sentido, ente que compreende os demais entes com que se relaciona e o ser que ele é.
Em vista do exposto, cabe reter que Heidegger mostrará que a busca pelo horizonte de compreensão do ser impõe a análise prévia do ser humano, graças à qual se revela a estrutura da compreensibilidade do ser. Compreende-se que se deve buscar o sentido do ser pela análise existencial do Dasein. Essa tarefa recebeu o nome, em Ser e Tempo, de Analítica Existencial.


3. A analítica existencial

Cumpre, nesta etapa, compreender qual é o objetivo a que se destina a analítica existencial. Notemos, desde já, que esse objetivo é revelar o horizonte humano de compreensão do ser. Mas não se trata de procurar uma nova definição do ser humano. O Dasein não pode ser explicado por meio de categorias precisas; ele é pura indeterminação. Urge salientar que, agora, não há mais um fundamento metafísico em que se deve apoiar a existência humana. O ser humano é um projeto; como tal, ele se realiza na existência. Como projeto, o Dasein se faz a si mesmo a partir das possibilidades abertas nos contextos em que se encontra.
Conquanto seja o ser humano um ente que existe no modo de possibilidades, sempre a fazer-se, não se segue daí que as possibilidades de existir no mundo sejam ilimitadas. Somos seres de possibilidades, mas essas possibilidades são limitadas por contextos geográfico, político, econômico, social e cultural. A isso Heidegger chamou de facticidade. A facticidade é o fato de o Dasein estar sempre lançado em possibilidades limitadas pela estrutura do mundo.
A morte terá um lugar de destaque no quadro da analítica existencial, porquanto a morte, em sua imprevisibilidade, indica a indeterminação da essência humana. A importância de pensar a morte nesse quadro de análise repousa no fato de que ela, a morte, introduz o elemento da finitude e torna possível pensar a temporalidade da existência. Pela morte, torna-se possível pensar o Dasein em sua condição existencial.
Portanto, Heidegger não está interessado em examinar a morte como fenômeno biológico ou como um fenômeno genérico de extinção. Devemos antecipar um ponto que trataremos de desenvolver mais adiante. Heidegger não se ocupa de pensar a morte como um fato que atinge a todos os seres humanos, mas como uma possibilidade própria de cada um. Evidentemente, ele reconhecerá que a forma de conceber a morte como fato do mundo é comum ao homem imerso na cotidianidade. Mas veremos, em tempo, que a morte, considerada no quadro da analítica existencial, é uma dentre as possibilidades – a possibilidade suprema, decerto – abertas ao Dasein.



            3.1. A existência decadente

Segundo Heidegger, a experiência comum e cotidiana da morte mascara seu sentido originário. É justamente por sua condição de ser-no-mundo que o homem facilmente acaba por existir na não-verdade, compreendendo a si mesmo e o mundo a partir das representações coletivas, das crenças recorrentes em sua sociedade. Esse modo de existir na não-verdade Heidegger chamará de decadência.
O mundo das ocupações cotidianas é também um mundo compartilhado. Os outros estão dados de modo tão imediato quanto o mundo e a própria existência. Sucede, contudo, que, no cotidiano, o convívio assume a forma de uma absorção no modo de ser dos outros. Pensemos, por ora, na função dos padrões culturais. Os indivíduos que vivem num dado contexto cultural assumem modos de ser, sentir, agir e pensar determinados pelos padrões estabelecidos por sua cultura. Cada um é como o outro é em seu modo de ser. A própria necessidade de identificação com o grupo depende da incorporação de certos hábitos de pensar, agir e sentir fixados pela cultura a que pertence os indivíduos.
É fácil ver como, no cotidiano, o homem é absorvido no impessoal. O impessoal não é ninguém determinado; mas é o modo padronizado de conduzir a existência, que cada um assume, sem disso ter consciência. Heidegger dirá que, no mundo cotidiano, “cada um é igual ao outro e nenhum é ele mesmo”.
Há, portanto, um modo de ser fundamental da cotidianidade, qual seja, o da decadência. O que é esse modo de ser? É o que o ser humano é na cotidianidade: um ente de tal modo ocupado com o mundo, que se deixa absorver por esse mundo, sem disso aperceber-se. Trata-se de uma condição tranqüilizadora, embora inautêntica. Mas a própria inautenticidade é uma possibilidade dentre as possibilidades de ser. Na impessoalidade, o Dasein não se reconhece como ser de possibilidades, tampouco assume sua condição de agente responsável pelo próprio ser. Ele tão-só deixa-se conduzir pelo modismo, pelas opiniões correntes, repisadas, pelos modos de se comportar gerais, os quais são assumidos como “o jeito certo de ser”.
No tangente à morte, na inautenticidade, o Dasein a assume como evento alheio, como um fato do mundo, como ocorrência que arrebanha a todos os outros. Morre-se todos os dias; a morte é um acontecimento conhecido, já dado no mundo. Na cotidianidade, o homem foge da morte na medida em que a trata como um acontecimento que lhe é comum (não só eu morrerei como os outros também), estranho (trata-se da percepção da morte como a morte dos outros), e por vir (situada fora do domínio de sua existência, enquanto ser ocupado com o mundo).



             4. O ser-para-a-morte


A compreensão existencial da morte supõe a admissão de que o Dasein é também um ser-para-a-morte. Mas ainda não atingiu a autenticidade quem não singularizou o ser-para-a-morte.
Inicialmente, deve-se entender que a expressão ser-para-a-morte caracteriza a condição de estar destinado à morte. Mesmo no modo impessoal de existir, as pessoas costumam aceitar que caminham para a morte; elas têm certeza de que morrerão, mas esse caminhar para a morte é ainda generalizado; afinal, todos caminhamos para a morte inevitável.
Heidegger, no entanto, argumentará que, no cotidiano, o homem não consegue perceber a morte em seu sentido pleno, a saber, enquanto fenômeno existencial irrecusavelmente próprio e irremediavelmente indeterminado. Esse ente absorvido no modo do impessoal se acostumou a esquivar-se de considerar a iminente possibilidade da própria morte. Na medida em que o Dasein é um projeto (seu ser é indeterminado), sempre aberto a possibilidades, deve ele assumir a possibilidade da própria morte, sob pena de incorrer numa “inconsistência existencial”. Destarte, ele continua impossibilitado de alcançar uma compreensão autêntica de seu ser.
Percebendo a morte como sempre possível, um sempre aí inscrito na estrutura de sua existência, o ser humano reconhece-se como sempre inacabado, em construção, como projeto a realizar-se em suas possibilidades de existência; por outro lado, a perspectiva da certeza da própria morte e da indeterminação de seu acontecimento, revela aquilo que talvez não se realize.
A interpretação existencial da morte pretende, portanto, revelar a estrutura ontológica da morte como ser-para-o-fim, articulando-a à compreensão fenomenológica do ser humano como projeto lançado no mundo. Como ente lançado no mundo, o homem está constantemente construindo a si mesmo a partir de possibilidades não determinadas. Uma vez sendo no mundo, o Dasein tem em face de si inúmeras possibilidades de ser, donde resulta a constatação ôntica segundo a qual jamais se pode predizer, no momento do nascimento, o que será e como viverá uma pessoa.
Por outro lado, sendo projeto, o ser humano está desde sempre sujeito à possibilidade suprema – que é a morte: “a morte está sempre flertando com as possibilidades do ser humano” (Doro, 2011, p. 138). Evidentemente, ela é da ordem da impossibilidade, do nunca mais das realizações humanas. A morte é a possibilidade da impossibilidade das possibilidades humanas. Até aqui, creio estar claro que a morte é, para o ser humano, como um abismo para o qual se orienta a caminhada. Por isso, “para morrer basta estar vivo”. A morte é interrupção sem deixar nada pendente, uma vez que o ser humano é caminho aberto, nunca completado.
Da libertação da concepção cotidiana da morte depende a compreensão que o homem tem de si como ser-para-o-fim. Ele só pode alcançar essa compreensão quando remover as formas de encobrimentos do mundo público do impessoal. Mas aquela compreensão não se alcança por meio da reflexão; o acesso ao próprio ser só se dá pelos sentimentos. A existência, dirá Heidegger, é primeiramente sentida. Desses estados de humor pelos quais o homem compreende-se verdadeiramente como ser-para-a-morte, destaca-se o papel da angústia.
A angústia, não tendo um objeto próprio, é gerada por nada, ou pelo próprio existir no mundo (condição esta indeterminada). Ao contrário do medo, que tem uma causa que o desencadeia (medo de altura, de barata, etc.), a angústia é desprovida de causa ou objeto. Ela se acompanha do tédio, o qual revela a gratuidade insignificante do mundo das ocupações: as coisas e as tarefas se esvaziam de sentido e a existência se experiencia em sua facticidade. Ou seja, a angústia esfacela a tranquila familiaridade do mundo cotidiano, do que resulta seja a condição de ser lançado sentida profundamente.
Uma vez rompida a tranquilidade do mundo das ocupações, uma vez liberto do modo de ser impessoal, pela angústia, o homem se dá conta do modo como, de fato, está no mundo: entregue à própria responsabilidade. Agora, o homem experiencia-se como o autor da própria vida; por isso, sua responsabilidade sobrecai-lhe como um peso: ele é responsável pelas possibilidades de ser. É nesse instante mesmo em que se percebe responsável pelas possibilidades próprias de ser que a possibilidade mais própria, qual seja, a de ser-para-a-morte, se revela intransigente e insuperável.
O tédio, que acompanha o estar angustiado, é o sentimento de urgência para passar o tempo. Por isso, o homem tende a não hesitar em recorrer aos passa-tempos, como meio de escapar à angústia. Ora, ocupando o tempo, o passa-tempo não permite que o tempo convoque o homem a assumir suas possibilidades existenciais.
O homem só existe para a morte: é um ser-para-o-fim. É essencial e constitutivamente um ser-para-a-morte, o que significa viver angustiado. Advirto o leitor de que não deve interpretar o “para”, em “existe para a morte”, como índice de finalidade; mas de ‘direção’. Essa condição a que o homem está lançado irremediavelmente quando do seu nascimento não deve paralisá-lo. O ser-para-a-morte é ser angustiado, é verdade; mas essa condição é também libertadora. Estar angustiado não se confunde com melancolia ou desânimo. Estar angustiado é o estado existencial de quem assume total responsabilidade pelo próprio existir. Por isso, a angústia, em vez de paralisar o homem, o liberta da alienação – isto é, da inautenticidade determinada pelo impessoal, de tal modo que ele se torna livre para escolher suas próprias possibilidades de ser. “Eu sou minhas possibilidades”, escreve Heidegger..




5. De que modo a compreensão da possibilidade da morte é decisiva para a condução da existência?


Com a questão que dá título a esta seção, levo a cabo este texto. Heidegger sustentará que é tão somente pela consciência da finitude e da gratuidade da vida que o ser humano pode determinar o curso de sua existência, sem o peso das influências do meio social – influências estas que a controlam.
Eis, portanto, o núcleo do conceito existencial da morte, segundo Heidegger: encarada como possibilidade própria e intransferível, a morte torna possível a condução autêntica da existência.
Compreender-se como o ser-para-a-morte significa tomar o indivíduo humano enquanto ente que antecipa a possibilidade da morte. Não se trata, evidentemente, de por-se sob o risco de morrer, tampouco de compreender a morte como um fato. Ser-para-a-morte é perceber, num nível fundamental da existência, a dimensão afetiva da angústia como modo de o homem sentir-se como ser-no-mundo, ser entregue à sua responsabilidade. Não é a reflexão – insisto nisto – que dá ao ser humano o acesso ao seu ser; mas a angústia que o faz de modo originário. Tampouco o medo diante da morte o faz.
Um exame detido da estrutura do Dasein deveria levar em conta, entre outras, a dimensão que, necessariamente ligada à morte, foi, no entanto, desconsiderada: a da temporalidade. O Dasein está entretecido no tempo; seu ser é fundamentalmente futuro. Contente-se o leitor com o fato de que eu não poderia jamais estender-me para além dos limites fixados pelo estágio de minha compreensão da filosofia de Heidegger. Minha contribuição foi bastante modesta: mais do que provocar no leitor um entendimento de Heidegger, gostaria de que  incorporasse o sentido existencial da morte num nível pré-reflexivo; enfim, que ele sentisse o que significa o “tão logo nasce, o homem já é suficientemente velho para morrer” (Heidegger).











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