sábado, 20 de setembro de 2014

Bem-aventurados os que amam sem medo

                                     
                                       

                                                   Da experiência de sofrer

Há algo no Cristianismo e em alguns cristãos que eu admiro: o reconhecimento de que a experiência do sofrimento e da dor é intrínseca à existência. E meu respeito e admiração são ainda maiores aos que vivem em consonância com esse reconhecimento, sem fugas e com uma força afirmativa da vida, que, com muita frequência, nos expõe à sua fragilidade inerente. Apenas me incomodo quando eles se valem de suas teodiceias para justificar a imensa quantidade de sofrimento gratuito que há no mundo. Mas isso é outra história e ela não vem a propósito neste comentário.
O que me motivou a escrever este pequeno texto foi uma experiência familiar. Há pouco, em vista de uma moléstia – felizmente tratável e sem gravidade – que acomete meu cachorrinho, meu pai disse não querer mais ter cachorro por receio de sofrer. Pode parecer estranho – ou mesmo contraproducente – vindo de uma pessoa que acredita na existência do Deus cristão, que crê na divindade de Jesus Cristo – ainda que isso dispense interesse por elucubrações teológicas -, e de quem se espera  saiba algo sobre a história que nos contam os evangelhos. Mas casos como esse são, não obstante, comuns. Preferir privar-se da experiência do amor por receio do sofrimento é a própria antípoda da experiência cristã. Os cristãos habituados a frequentar as letras da doutrina não me deixam mentir e, provavelmente, me darão razão.
Disse a meu pai que já ouvi dele, outras tantas vezes, a mesma coisa e acrescentei que viver é sofrer (Schopenhauer já o reconhecia, e Buda, que grande influência exerceu sobre seu pensamento, o ensinara), que o sofrimento é uma experiência intrínseca à vida, e que não escapamos a ela, quer nas ocasiões em que adoecem nossos animais de estimação, quer nas circunstâncias em que adoecem nossos entes queridos. Mas ele, relutante, insistiu que o peso do sofrimento é maior do que a recompensa da alegria do amor, da companhia dessas criaturas por cuja vida e bem-estar assumimos responsabilidade. Não quis estender-me numa discussão filosófica (embora ache que a filosofia faz muita falta, em casos como este). Então, preferi me calar.
Meu cachorrinho acaba de ganhar um osso e está feliz... Estou a pensar agora que, se acolhêssemos essa postura covarde em face da vida, então deveríamos não mais ter nossos filhos, pois que dar à luz uma criança é lançá-la às vicissitudes da sorte, é lançá-la num mundo onde ela conhecerá, cedo ou tarde, sofrimento, dor e, necessariamente, a morte. É preciso que se reconheça que fazer nascer  uma criança é condená-la à morte. Os pais, que se alegram com seus filhos, que tanto se orgulham deles, devem estar cientes disso. No momento do nascimento, eles, pais, os condenaram à morte, não sem a possibilidade da experiência de sofrimentos, cuja medida de gravidade está distribuída indiscriminadamente entre os seres humanos (e outras espécies de animais de consciência superior). Mas é preciso ver também o sofrimento como uma dimensão inerente à sua condição de seres biológicos, o que o torna, muitas vezes, inevitável, embora jamais negligenciável.
Respeito nos cristãos a compreensão de que as experiências do amor e do sofrimento são indissociáveis, andam juntas. Vivendo no século I d.C., o filósofo estoico Sêneca, em várias de suas cartas, escritas entre 63 e 65 d.C., se ocupou, com notável e sumária sabedoria, de temas como o da brevidade da vida, o da morte e o da experiência do amor. Em uma de suas cartas, que trata do pesar pelos amigos falecidos, ele nos aconselha, dirigindo-se ao amigo Lucílio, o seguinte:

“Quem amavas morreu, procura outro para amar. É melhor recuperar um amigo do que chorar. Sei que isso que vou acrescentar é dito e repetido, mas não vou omitir porque já foi comentado por todos: o fim à dor – se a vontade não o por -, o tempo porá. Mas é muito torpe para um homem prudente que o remédio da dor seja o cansaço da dor. É melhor que tu abandones a dor do que ela te abandone; desiste disso, porque mesmo que queiras, não poderás fazê-lo por muito tempo”.


É de Sêneca também (se não me engano) outra passagem em que – malgrado meu esforço por encontrá-la, não a encontrei – nos lembra que a mãe que abraça a seu filho com o apego próprio de quem ama profundamente deve saber e aceitar que a quem está abraçando deve, necessariamente, morrer. O que Sêneca nos ensina, a par da necessidade de moderação do amor (o que, para nós que somos tão profundamente marcados pela tradição cristã e romântica, é uma lição difícil de acolher), é que amamos entes perecíveis, amamos entes que devem morrer e nada há que possamos fazer para evitá-lo. O amor não nos salva da morte e nem salva a quem amamos.
É claro que o cristão instruído poderá objetar-me. Se a experiência do amor é indissociável da experiência do sofrimento (quem ama está vulnerável a sofrer, ou melhor, prefere a vulnerabilidade ao sofrimento à privação de amar) e da morte (amamos apesar de saber que a quem amamos deverá morrer), para o cristão sinceramente devoto, aqueles a quem amamos nunca morrerão verdadeiramente. A perda dos entes queridos é temporária. A mensagem dos evangelhos, atribuída a Jesus, pode ser resumida no enunciado: o amor vence a morte. Ao contrário do que ensinava Sêneca (e toda uma tradição com ele), o cristianismo ensinará que podemos nos apegar e amar demasiadamente aos que sabemos que morrerão, na confiança em que os reencontraremos em outro mundo. Cabe, nesse caso, a cada um escolher e adotar uma ou outra visão de mundo. Mas é necessário assumi-la nas vivências ordinárias com fidelidade, o que significa não iludir-se quanto à possibilidade de esquivar-se de sofrer. Não estou a sugerir, portanto, que cristãos não deveriam chorar a morte dos seus (ao contrário, devem chorar porque amam com paixão (digo com sofrimento que há em toda experiência de amor verdadeiro – é isto o que significa a Paixão de Cristo).
Creio em que não alcançou a maturidade do amor quem ainda não compreendeu que temer o sofrimento é privar-se da fruição do amor. O amor é gratuidade; o sofrimento, um custo necessariamente implicado na experiência de existir.


Bem-aventurados os que amam sem medo e se permitem ser amados, alegremente conciliados com a fragilidade e transitoriedade do viver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário