Fragmentos
trágicos
Escrever é, para mim, um exercício de
existência. O que se seguirá são rascunhos, rasuras, esboços, rabiscos de
fragmentos de um filosofar que me atrai, que me seduz, que me revela verdades
atemporais e que convém ter presentes no espírito. Por isso, tenciono
tão-somente referir passos de alguns livros que li, que leio e releio, de
fragmentos que destaquei, que reproduzi num caderno e que, agora, dou a
conhecer, a fim de que, através da leitura deles, possa eu mesmo reconhecer-me.
Não deixarei de comentá-los, mas só me cingirei a fazê-lo; não pretendo
submetê-los a uma análise rigorosa. O trabalho do leitor consistirá não tanto
em ler os fragmentos que cito, com vistas a compreendê-los; há que fazer um
ultrapassamento, que é próprio da filosofia. Necessário será ler o que não está
neles, o que está para além deles, num lugar outro mais denso e profundo, num
escuro iluminado que se revela. Ao cabo, espero que se perceba que é o escuro
de todos nós, porquanto todos os registros que aqui dou a conhecer dizem
respeito à condição humana. Não
espero, no entanto, que a consciência desta condição esteja tão avivada no
leitor quanto está em mim. Talvez, seja isso, leitor, que nos distancia;
decerto, devo a ela meu interesse pela filosofia, meu abandono gratuito ao
filosofar, meu convívio aturado com os livros.
Comecemos, pois,
referindo dois trechos de Gilvan Fogel, em seu O que é filosofia? – filosofia como exercício da finitude (2009).
Escreve o autor a respeito da filosofia o seguinte:
“A filosofia não é “coisa” nenhuma. Não é uma
disciplina de um curso ou de um currículo acadêmico; não é um acervo, uma
reserva de informações, sobretudo não é um domínio da “cultura” (...)”.
(p. 86)
O saber filosófico não é
um saber de que nos apropriamos na academia (o que não significa negar a
importância do diálogo com a tradição, com a apropriação do já pensado,
trabalho de que depende o desenvolvimento desse saber). Mas a filosofia não é
uma disciplina acadêmica; a filosofia é um saber-ação para exercitar a
existência. Contra o acadecismo filosófico, pondera Gilvan:
“Não. Dispor-se, pré-dispor-se para a filosofia
significa, na verdade, abrir-se para a
conquista de um modo próprio de ser do homem, da vida”.
(p. ib.id., grifo meu)
Há pressuposta, neste
trecho, a existência de um modo próprio de ser do homem e da vida que precisa
ser conquistado. Mas a conquista deste modo de ser do homem depende do
predispor-se à filosofia. Nem todos se apropriam desse modo de ser, visto que
nem todos se predispõem à filosofia. E Fichte nos lembra que “filosofar não é propriamente viver; viver
não é propriamente filosofar”. Não, leitor, não se está afirmando um
divórcio entre viver e filosofar; está-se afirmando que, para filosofar, necessário
é um distanciamento relativamente ao viver, que é viver chapado (Gilvan), um
viver preenchido de preocupações, de ocupações, um viver que nos habitua à
azáfama do cotidiano, que reúne todos os seres humanos numa massa que está
sempre a caminho, sempre em movimento ininterrupto. Distanciamento e isolamento,
que permitem-nos sentir a vida, sentir e auscultar o fundo da vida (Gilvan),
que é Dor - Dor “que é evidência de nada ser de antemão (p. 96)”, são duas
condições para o filosofar. São as vozes de Kierkegaard e de Sartre que ecoam
mais nitidamente aqui. Gilvan é mais inquietante e interessante do que deixam
sugerir esses esboços interpretativos. Não me interessa explicar a filosofia,
nem elucidar o modo como Gilvan no-la explica. Tomem-se outros passos e
prossigamos.
“Filosofar consiste em uma ação na qual o mundo do
trabalho é ultrapassado”.
(p.8)
“O mundo do trabalho é o mundo do cotidiano do
trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento de
exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da
fome e do modo de saciá-la. O mundo do trabalho é dominado pelo objetivo de
realização da “utilidade comum”.
(ib.id.)
Estes passos foram
tomados a Josef Pieper, em O que é
filosofar? (2007). Já antecipo uma provável interpretação, equivocada, e
que deve, por isso, ser rechaçada. O autor não pretende menosprezar o trabalho;
mas sustentar que o exercício do filosofar supõe o ultrapassamento desse mundo
utilitário, da produção, no qual os indivíduos são avaliados segundo sua
eficiência e produtividade. O lugar da filosofia foi, desde seu começo com os
antigos gregos, o do ócio, não o do negócio. O mundo do trabalho é o mundo da
necessidade de subsistência: trabalha-se para sobreviver. O viver chapado de
que nos fala Gilvan é, em parte, também esse viver destinado a produzir a
subsistência. Viver comum do homem comum. Lugar comum do homem comum. Mas o
lugar do filósofo é onde reside o distanciamento e o isolamento. Pois enquanto
se vive chapado ao viver dificilmente se pode filosofar. Todo ato de filosofia
supõe e exige um distanciamento relativamente ao viver, como condição para
pensar o viver e a condição humana. Viver não é o mesmo que existir. O leitor
chegaria a essa conclusão, caso se detivesse na leitura do texto de Gilvan –
conclusão que, a mim, se impõe, na verdade, como pressuposto do filosofar.
Viver e existir não se confundem. Consideremos, agora, os trechos que tomei a
Luc Ferry, em seu Aprender a viver –
filosofia para os novos tempos (2010):
“O que desejamos, de fato, acima de tudo? Não queremos
ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos ficar
separados dos próximos, em resumo, não queremos morrer, nem que eles morram.
Ora, a existência real, um dia ou outro, frustra todas essas expectativas
(...)”.
(p. 22)
Observe-se, de início,
que o locutor nos interpela sobre o que mais valorizamos, o que mais desejamos.
Trata-se, agora, de nos chamar a atenção para nossos medos básicos: o da
solidão, o do desprezo e indiferença e o da morte. Prossigamos com Ferry:
“Pois a verdade é que a morte, ao contrário do que
sugere o adágio antigo, possui faces diferentes cuja presença é,
paradoxalmente, perceptível no próprio coração da vida mais viva”.
(p. 23)
“Ora, é exatamente isso o que, num momento ou noutro,
atormenta esse infeliz ser finito que é o homem, já que apenas ele tem
consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e
que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.
“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo – pelo
menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com certeza
diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em
certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.
(p.31)
O fato sempre presente da
morte; desse já-aí da morte, como presença enraizada em nosso âmago, como
verdade de razão e de fato que recalcamos. A morte é – diz Ferry – “perceptível
no coração da vida mais viva”, isto é, se faz pulsante numa consciência que
sente em profundidade o que significa existir para o homem. É preciso
considerar que uma grande medida de nossa infelicidade reside no fato de sermos
seres finitos conscientes de nossa morte inevitável, que é esse domínio do
“nunca mais”. Outra medida dessa infelicidade encontra raízes na consciência de
que nossa existência é efêmera, de que cada dia vivido nos aproxima da morte
inevitável. Mas a morte não está à nossa espera; ela nos espreita (eu posso
morrer aqui e agora). Morre-se todos os dias, em qualquer hora. No entanto,
ainda não alcançou uma consciência avivada da morte quem não a pensa como uma
possibilidade já-aí que lhe é própria; trata-se de ouvir a Heidegger: trata-se
de encarar a morte como minha morte, minha possibilidade real (e não como um
fato que se estende aos outros). A
filosofia não nos salva da morte, é claro; porque nada, na verdade, nos salva
dela. Por isso, é necessário filosofar.
Avivada a consciência
desta terrível condição (o leitor poderia me dizer que ele sabe disso; mas
trata-se de um saber recalcado, afastado da consciência, um saber que
preferimos não vasculhar, não remexer, é um saber-sentir que silenciamos). Por
isso, quando escrevo “avivada consciência” quero dizer um saber desperto que
sente a verdade da morte na estrutura de nosso ser, que necessariamente perderá
tudo que ama na vida. O destino do amor, em face da morte, é a perda
inevitável. Triste destino o nosso: amamos os que nos faltarão inevitavelmente.
Mas amor é desejo de possuir mais e mais; é desejo não só do que falta, mas do
que faltará necessariamente. O homem
amante é homem que vive a perda, que está no caminho incontornável da perda. É
o que a vida nos ensina. Alguns preferirão acreditar num Deus; outros não se
deixarão convencer-se da existência de tal ser, nem seduzir-se pelas promessas
das religiões. Para estes, a filosofia se apresenta como uma necessidade
urgente.
No entanto, a filosofia,
enquanto exercício de existência, não se impõe apenas quando somos confrontados
com o estar-aí da morte, mas também com o fato mesmo do existir, tão humano,
por isso tão frágil, pleno de misérias, de dor e sofrimento. O sofrimento tece as malhas da existência.
Trata-se de uma proposição irrefutável. Doravante, citarei passos tomados a
Blaise Pascal, Schopenhauer e Luiz Gonzaga de Bem, que me contentam pela
verdade trágica que revelam e pelo sentimento estético que provocam. Quem
negará que do trágico pode nascer a beleza? Os antigos gregos o provam!
“De fato, a vida devotada ao saber se esvai silenciosamente
e é muito vazia de acontecimentos. O mal
existe. Todos os seres vivos sofrem,
ora pelo corpo,ora pelo espírito. Padecemos pelas intempéries, pelas misérias,
pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas injustiças, pelas guerras,
etc. Crianças há que nascem para sofrer e morrer. Homens existem de tal modo
desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem nascido. E há os que não deixam
memória, que morrem como se jamais tivessem existido, e parece que sequer
nasceram, e o mesmo ocorre com a sua prole. O mal existe, portanto – eis uma verdade insofismável”.
(p. 127, grifos meus)
Este excerto topa-se na
obra Confissões de um filósofo
desesperado (2009), de Luiz Gonzaga de Bem. A morte, o sofrimento e o mal
existem e afirmá-lo é evidenciar a dureza de uma verdade que resiste às
tentativas de refutação. O locutor representa uma realidade onde o mal e o
sofrimento se manifestam sob várias formas. Uma dessas formas é a
insignificância desse acontecer que, como costuma dizer o vulgo, “faz parte”, a
falta de sentido da existência e do mal. Nem a existência nem o mal se
justificam. A mim me espanta o fato terrível da morte dos que já nascem
desgraçados, dos que existem num intervalo de tempo muito breve e morrem jovens
demais para deixar seus rastros de dor suportável. A vanidade dessas vidas que
já nascem seladas pela morte prematura é um acontecimento para o qual qualquer
esforço de justificação é igualmente inútil ou mesmo ofensivo aos que sofrem
pela perda de tais vidas tão desafortunadas. Por isso, insurjo-me contra os
que, intentando salvaguardar a bondade de um Deus criador, empregam todo e
qualquer estratagema e se dedicam a longas elucubrações para elaborar uma
teodiceia repugnante às sensibilidades, escandalosa ao bom senso.
“Ser pai, disse Victor
Hugo, é oferecer reféns ao destino”. Fazer nascer uma criança é transmitir-lhe
o legado de nossa miséria. Tales permaneceu solteiro e adotou o filho de sua
irmã. Negou-se a ter os seus próprios filhos, “por amor aos filhos”. Segue-se
daí, forçosamente, que trazer ao mundo uma criança é condená-la às agruras, às
dores, às angústias, às instabilidades da fortuna, à decrepitude de uma
existência que se sabe finita. Esse pensamento trágico é libertador: quer elevar o homem ao poder de resistir aos
apelos de seus genes, que o impelem a reproduzir-se para garantir a
perpetuação da espécie. A morte de um indivíduo que não deixou descendentes é a
impossibilidade de seus genes legarem a miséria da existência a outros que
prolongariam gerações de inocentes entregues à fortuna. O homem, que é ser
social também, dotado de consciência de sua real condição de existência e por
profunda comiseração para com o sofrimento das crianças, cuidará, de bom grado,
não condenar qualquer delas à amargura de uma vida a ser suportada em condições
socioeconômicas precárias.
Acompanhemos outro trecho
de Gonzaga de Bem:
“O homem, o mais valente dos animais e mais habituado
ao sofrimento, não repudia o sofrimento em si; o homem o deseja, chega a
buscá-lo, desde que reconheça no sofrimento um sentido, um propósito. A falta
de sentido para o sofrimento, não o sofrimento em si, era o malefício que
afligia a humanidade”.
(p. 136)
Um pensamento trágico
afirma a falta de sentido no sofrimento, por isso é incompatível com um
pensamento religioso, que tenta atribuir um sentido ao que se nega a ter um. O
sofrimento de uma criança é o abismo do sem-sentido. Insanidade humana: procurar sofrer desde que suponha ter esse
sofrimento algum significado! Isso não deixa de ser tragicômico, consoante
nos lembra Schopenhauer.
“Efetivamente, em toda parte a vida humana é um estado
em que há muito a sofrer e pouco a desfrutar. A vida humana não passa de um
sonho. A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e
sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em
nossa excelência sobre o resto da matéria. Nossa vida é curta e entediante, é
uma sombra que passa, e depois do nosso fim não há retorno, pois está selado:
homem algum haverá de retornar; para a morte não há remédio. A vida é a piedade da duração, o
sentimento de uma eternidade dançarina, o tempo que se supera e rivaliza com o
sol. Nada prova que sejamos mais que nada. Ontem,
hoje, amanhã: categorias para uso de criados”.
(p. 126, grifo meu)
Nasce-se condenado e sem
direito à apelação. Os que, após mensurar benefícios e custos, cuidam que os
custos pesam mais, embora estejam assaz entediados para tirar a própria vida,
vivem a piedade da duração. Que a existência não exceda os limites das forças
que são dispensadas para suportá-la é o que esperam da piedade da duração!
“O que as pessoas não inventam por tédio! Elas estudam
por tédio, jogam por tédio e finalmente morrem de tédio!” (George Büchner)
Leiamos estes passos de Blaise Pascal:
“Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria,
a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso”.
“Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não
seria necessário desviarmos dela nossos pensamentos”
“É necessário conhecer-se a si mesmo. Ainda quando
isso não servisse para encontrar a verdade, pelo menos serve para regrar a
própria vida, e nada há de mais justo”.
“Condição humana: Inconstância, tédio, inquietação”.
“Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não
se entende nada”.
Não leia nem depressa,
nem devagar, nem com demasiado escrutínio crítico, leitor; leia com o coração
este rascunhado texto de quem se deleita com o desespero do filosofar: porque é
não esperar nada além do que a alegria do pensar.
“A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se
miserável; uma árvore não se reconhece miserável. É então ser miserável se
conhecer(-se) miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável”.
Neste trecho, Pascal
argumenta que a grandeza do homem reside na sua capacidade de conhecimento.
Somente o homem é capaz de conhecer a sua miséria, ou seja, ter consciência
dela. Mas também nesse (re)conhecimento de nossa condição miserável repousa
nossa fraqueza. A inconsciência da fraqueza talvez seja preferível? Saber-se
miserável é também fonte de dor, de um excruciante terror! Grandeza do homem e
fraqueza reconhecida do homem: eis nossa inquietante condição!
O homem é um desconhecido
de si mesmo. Freud desferiu um duro golpe sobre nossa auto-estima calcada sobre
a crença no livre-arbítrio, na liberdade do eu racional. Ele sugeriu que há uma
dimensão nos homens que põe em movimento forças à revelia deles próprios, há
algo neles que age sem que eles saibam sobre o que fazem. Freud descobriu o
inconsciente e asseverou “o eu não é o senhor nem mesmo em sua própria casa”. O
homem foi descentrado de si. Antes dele, Copérnico retirou a Terra do centro do
universo e Darwin lançou por terra a máscara e as vestes de nossa suposta
superioridade no universo natural, revelando-nos nossa nudez animal. Desde
então, o homem não era mais um ser especial no reino da natureza.
Ouçamos Schopenhauer, em Do mundo como vontade e representação:
“A vida de qualquer indivíduo, considerada no seu
conjunto e na sua generalidade unicamente nos fatos mais silentes, é, em
realidade, sempre uma tragédia, mas
examinada nos pormenores, tem caráter duma comédia.
Porquanto o andamento e os tormentos de cada dia, as incessantes amolações do
momento, os desejos e os temores da semana, os aborrecimentos de toda hora que
nos foram mandados pela sorte sem pausa ocupada em escarnecer-nos, tudo isto
são deveras cenas de comédia. Mas as ambições sempre desiludidas, os esforços
sempre inúteis, as esperanças esmagadas sem piedade pela fortuna, os erros
fatais de toda vida, com a dor que vai aumentando e com a morte por conclusão,
eis em verdade a tragédia. Deste modo, e como se à desolação da existência, a sorte tivesse
querido juntar ainda a ironia, a nossa vida deve compreender todas as dores da
tragédia, sem que ao mesmo tempo nos seja possível conservar ao menos a
dignidade das personagens trágicas; devemos, ao contrário, nas largas
particularidades da vida, ser, forçosamente, vulgares caracteres cômicos”.
(p.93)
Estranha essa vizinhança
entre tragédia e comédia tomados como domínios da existência humana; não
obstante, o trágico é da ordem estrutural e geral; e a comédia se imiscui no
domínio das vivências particulares. As limitações de espaço e o arrefecimento
do espírito desencorajam-me a levar adiante um gesto de interpretação desse
passo. Considere-se o passo seguinte também de Schopenhauer.
“(...) a base
de cada querer é uma falta, é uma
indigência, é a dor; pela sua
origem, pela sua essência, o querer está, portanto, destinado a sofrer. Ainda
que tivesse objetos a desejar, uma satisfação demasiado fácil de súbito lhos
tolheria, e o homem sentir-se-ia invadido por um vácuo espantoso e pelo fastio,
em outros termos, seu ser e sua existência se lhe tornariam um peso
insuportável. A vida, portanto, oscila
como um pêndulo entre a dor e o fastio que são, de feito, os elementos que
a constituem. Fato estranho que deveis exprimir de maneira assaz estranha:
depois de ter colocado no inferno todas as dores e todos os suplícios, o homem
nada encontrou para colocar no paraíso, além do tédio”.
(p.79, grifos meus)
Não espanta que os que se
deixam guiar irrefletidamente pelos padrões da cultura do otimismo, que nos
inculca continuamente ilusões de prosperidade e que, tendo em sua base também o
legado cristão, promessas de redenção (porque, numa cultura do otimismo
cristão, é necessário supor que sejamos sempre culpados), sintam-se
desconfortáveis ao ler Schopenhauer. Não raro, Schopenhauer conduz seu leitor a
um beco sem saída, pouco apropriado ao trânsito dos pensamentos que se alimentam
da esperança e da salvação. Pois não há salvação e esperança alguma em
Schopenhauer. Cada vontade individual se funda numa carência, numa penúria,
numa dor. Essa carência, essa penúria, essa dor em que repousa o querer são
insuperáveis. O homem está destinado a sofrer. Ele jamais consegue conservar um
estado de felicidade e de prazer, porque “a vida oscila entre a dor e o tédio
(ou fastio)”. Schopenhauer exerceu sobre Freud marcante influência. Em seu mal-estar da civilização (2010), Freud mostrará que o homem, por força
da estrutura de sua psique, jamais pode permanecer indefinidamente no estado de
prazer, posto que o desejo seja essa permanência. Nessa obra, Freud nota que o
homem está cercado de sofrimento por todos os lados; ele identifica três origens
donde lhe advém o sofrimento: da fragilidade de seus corpos, que nos destina à
ruína; das forças implacáveis da natureza e do convívio com os seus
semelhantes. No tangente ao sofrimento oriundo desta última fonte, observa
Freud: “(...) talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro” (p.
64).
Volvemos nossos olhares
para este outro trecho de Schopenhauer:
“Os esforços contínuos para alhear a dor não tem outro
resultado senão o de transformá-la.
Ela originariamente se manifesta como privação, necessidade, inquietação pela
manutenção da vida. E quando se tem conseguido, o que aliás é bem difícil, afastar a dor sob tal
forma, eis que se apresenta sob mil outras formas variantes com a idade e as
circunstâncias: instinto sexual, amor
apaixonado, ciúme, inveja, angústia, ambição, avareza, doença, etc., etc. E
se por fim não encontrar outras maneiras para introduzir-se, virá sob a triste
e sombria capa da saciedade e do tédio, contra os quais há de provar-se, então,
todos os meios. Mas se lograrmos, finalmente, derrotá-la também sob tais
formas,mui dificilmente se terá feito tal coisa sem lhe abrir acesso sob alguma
das formas precedentes e então a dança
recomeça: porquanto a vida de todo
homem oscila entre a dor e o fastio”.
(pp. 83-84, grifos meus)
Vamo-nos debruçar sobre
este trecho de Schopenhauer com vistas a lhe atribuir um sentido. Seu tópico
discursivo é a dor e as formas como a dor invade a existência. Schopenhauer
aponta-nos várias formas pelas quais a dor se manifesta. O enunciador aprisiona
seu leitor num labirinto lógico: mesmo
que nos esforcemos por afastar a dor, por nos curar dela, o que fazemos não é
senão dar-lhe outras formas. Não há meios de escapar à dor. Todos os nossos
esforços nesse sentido são vãos, risíveis. A dor resiste a todos os nossos
esforços para impedir que ela penetre as entranhas de nossa existência. Até
mesmo na saciedade, o homem há de experienciar uma forma de insatisfação,
porquanto, como vimos antes, a base do querer é a falta. O homem é impulsionado
pelo desejo que o condena à insatisfação permanente, que o condena à busca
contínua de outras formas de satisfação, todas destinadas ao fracasso da
saciedade do desejo. O desejo nos move, mas nos move para o abismo do “jamais
satisfeito”. Eis o trágico escuro de nossa condição! A verdade do desejo é sua
permanente insatisfação, é seu vácuo impreenchível. A dança existencial é
dolorosa, pois, malgrado os esforços para cessá-la, uma vez preservando-se em
seu ser, o homem é impotente para interromper-lhe seu contínuo oscilar.
Schopenhauer nos oferece alguma alternativa? Há alguma forma de exercer domínio
sobre a realidade positiva da dor? Em seu A
arte de ser feliz, a influência que sobre o pensamento schopenhaueriano
exerceu o budismo se deixa entrever. No passo seguinte, o enunciador
schopenhaueriano ilumina-nos algum caminho:
“(...) o edifício da nossa felicidade comporta-se de
modo inverso ao que se verifica em relação a quaisquer outros edifícios, que
são tão mais estáveis quanto maior é a amplitude de seus alicerces. O modo mais
seguro de evitar uma grande desventura é reduzir ao máximo as próprias
pretensões em relação aos meios de todo tipo de que dispomos. Pois toda felicidade positiva é quimérica,
enquanto a dor é real.” (pp.83-84, grifo meu)
Considere-se com atenção
este trecho. Em primeiro lugar, diz-nos Schopenhauer que quanto mais amplas são
as pretensões de felicidade mais profundas e permanentes podem ser nossas
desventuras. O excesso em nossas pretensões à felicidade é proporcional à
desventura de um viver que se sabe decepcionante. Ora, se viver é sofrer, se a
felicidade é uma quimera e apenas a dor é real, convém não instilar excesso em nossas aspirações à felicidade, pois que também excessivo pode ser o
peso da dor que daí sobrevém. Schopenhauer considera a felicidade na modalidade
do negativo, ou seja, a felicidade é um estado de ausência de perturbação, de
inquietude. Ela é desprovida de realidade positiva. Nesse sentido, Schopenhauer
foi influenciado pelo estoicismo. Devemos renunciar a uma felicidade positiva,
porque ela é ilusória; nunca a alcançaremos, porque ela não tem realidade
objetiva. Só nos resta uma pálida sensação de felicidade, que é o sentir-se
impertubável, que é o encontrar-se num estado de ausência de perturbação, de
dor, de inquietude. Retomemos a famosa imagem schopenhaueriana: “a vida é um pêndulo que oscila entre a dor
e o fastio”. Dor e fastio são
extremos de descontentamento para o homem, são os domínios da desventura. Esse
movimento entre um extremo e outro não cessa. Pois existir é estar em
movimento. O pêndulo nunca cessa de oscilar, de ir-e-vir; o seu vaivém nos
arremessa continuamente de um extremo ao outro; esse movimento incessante é a
própria dança dolorosa que recomeça. Há momentos em que nos encontramos nem num
extremo nem no outro, embora nunca estejamos em repouso, de resto, nunca
atingimos o estado permanente de satisfação ou felicidade. Entre a dor e o
tédio, há átimos de sensações de impertubabilidade, há instantes em que a vida
nos é amena, suportável; talvez até nos sorria com algumas alegrias fugazes,
com algum contentamento circunscrito a um momento de graça. Mas nada além disso
nos é possível experienciar, segundo parece nos querer dizer Schopenhauer.
Outros trechos poderiam
ser acrescidos aos que referi, de modo a compor um cenário trágico mais
abrangente. Limitar-me-ei ao seguinte excerto, colhido de Dezoito brumário de Napoleão Bonaparte, de Karl Marx. Neste trecho,
Marx patenteia-nos que os homens são, ao mesmo tempo, produtores e produtos da
História. Os homens produzem as condições históricas que os dominam, que se
tornam forças que se impõem independentemente de sua vontade e ação. Os homens
ao fazer a história não se reconhecem mais como os agentes produtores das
condições históricas. Experienciam no interior de si uma alienação, uma cisão
entre a consciência e a prática.
“Os homens fazem sua história, mas não a fazem como
querem, não a fazem sob circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas sob
circunstâncias com que se depararam diretamente, ligadas e transmitidas pelo
passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o
cérebro dos vivos”.
Certa feita, entrei em
desacordo com um amigo no tocante à importância da filosofia. Nossa motivação
para a filosofia é bastante diversa. As necessidades que esperamos ela
satisfaça de algum modo não são as mesmas entre os indivíduos. No entanto, de
minha parte, é preciso ver que toda sorte de questões que ocupara os grandes
filósofos ao longo dos séculos se atrela a uma questão fundamental e
precedente a todas elas: a questão do bem
viver. Mesmo um Kant, que se preocupou especialmente com as condições do
conhecimento, que se debruçou sobre uma questão que, aparentemente, parece não
dar espaço para algum pronunciamento sobre como devemos viver (sabemos, no
entanto, que o Kant da Crítica da Razão
Pura escreveu outras duas Críticas), não deixou de ter em conta o problema
da condição humana e não deixou de oferecer sua perspectiva sobre como os
homens devem viver. Toda a filosofia parte do homem, da condição humana e se
debruça sobre ela. As perspectivas pelas quais ela é abordada variam, é claro. Mas
pretender afastar da reflexão sobre o homem ou sobre a condição humana
problemas como o do sofrimento, do sentimento do trágico, da morte, da dor,
supondo haver questões mais urgentes, é sinal de uma grave miopia filosófica;
em última instância, é não se ter ainda apropriado daquele modo de ser próprio
do homem (de que nos fala Gilvan), que é condição para o exercício da
filosofia, o qual não se confunde com erudição filosófica, embora passe por
ela.
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