Quem
escreve dialoga consigo mesmo. Por vezes, experienciamos um atravessamento ou
congestionamento de pensamentos. Esse parece-me ser o caso agora, porque
percebo que me desvio um pouco do que tinha em vista inicialmente. Mas esses
desvios, essas digressões, o próprio reconhecimento de que fugimos ao tópico
discursivo traçado no limiar do curso de nossas reflexões são também uma
possibilidade da escrita em blogs. São uma forma da expressão da liberdade de
que goza o blogueiro.
Deixo
ao encargo do leitor o estabelecimento de uma conexão de sentido entre a
totalidade precedente e o que a ela se seguirá. Trago, portanto, à cena
discursiva a figura de Platão e sua insilenciável contribuição à história do
pensamento filosófico. Necessário é dizer, no entanto, que a filosofia não
serve para nada (nem para nos ajudar a pregar um prego, já dizia Heidegger) e
que ninguém é mais qualificado por ser filósofo.
1. Platão (427 – 347 a.C)
O
renomado pesquisador em filosofia da ciência Alfred North Whithead observou, certa
feita – talvez, com certo exagero -, que toda a filosofia ocidental se
resumiria a uma série de notas de roda pé a Platão. Tenha ou não razão Whitead
(penso que ele exagera), seu comentário deixa entrever, no entanto, a grande
importância que o pensamento platônico tem na história da filosofia.
Tendo
sido discípulo de Sócrates e fundador da Academia – a primeira instituição de
educação superior de que temos registro, Platão é, certamente, o filósofo que
maior influência exerceu na história do desenvolvimento do pensamento
filosófico. Sua ampla e rica obra consegue recobrir a totalidade de questões
que interessam à filosofia. Não há um só tópico que escape ao seu legado.
Veremos,
neste texto, que, conquanto seja vasta e diversificada a obra de Platão, ela se
assenta sobre a concepção segundo a qual existem dois mundos: o mundo da
experiência sensível, em que habitamos; e o mundo das Essências ou Ideias. Este
texto é, portanto, dedicado ao tratamento da chamada Doutrina das
Ideias e da Doutrina da Linha Dividida, que são, como se
pode supor, interdependentes.
Por
ora, limito-me a dizer que a influência daquela concepção no desenvolvimento da
teologia cristã é notável. Encontramos eco dela na ideia segundo a qual o homem
foi feito à imagem de Deus. Mas Platão – é preciso frisar – influenciou a
construção da teologia cristã diretamente de outras várias maneiras. Não
caberá, neste texto, ocupar-me deste capítulo da história do pensamento
platônico, tarefa esta a que caberia destinar outro texto.
2. A Academia de Platão
A
Academia platônica exerceu um papel fundamental no desenvolvimento da
filosofia. O objetivo da Academia, fundada por Platão, não era apenas realizar
investigações científicas e filosóficas; era também servir de centro para a
preparação da atuação política, calcada sobre a busca da verdade e da justiça.
A
filosofia desenvolvida na Academia também não se destinava à defesa e à
transmissão de conhecimentos supostamente prontos e definidos. Ao contrário,
ela congregava o esforço conjunto de procura da verdade; ela mesma era
exercício permanente para conhecer mais e melhor. A filosofia da Academia não
era uma doutrina fixada e rígida, mas uma investigação sempre aberta, viva,
inquieta e insatisfeita.
Na
Academia, a filosofia é o exercício de pensar – incessante ginástica do
pensamento. É uma atividade de reflexão que se abre sempre para novas
possibilidades. Essa concepção tornou-se um dos mais fortes modelos de
filosofia, desenvolvido e retomado ao longo dos séculos, e se fazendo marcante
na contemporaneidade.
O
desenvolvimento do pensamento de Platão é indissociável, evidentemente, da
Academia por ele fundada. Sua filosofia é a primeira grande síntese do
pensamento antigo. Nela, confrontam-se e integram-se os pensamentos de todos os
grandes filósofos precedentes.
Há,
no entanto, duas grandes tendências filosóficas que foram reformuladas e
conciliadas por Platão. Trata-se de uma síntese fundamental operada por seu
pensamento: o imobilismo eleático de Parmênides de Eléia, e o mobilismo
universal de Heráclito de Éfeso. Platão procura conciliar a verdade de
Parmênides (o Ser é imóvel e eterno) e a verdade de Heráclito (tudo é
movimento, o devir é o próprio movimento do ser).
Platão
tomava a matemática como base do conhecimento ou pensamento filosófico. Filosofar
era, então, procurar pensar para além da matemática; era fazer metamatemática.
De
passagem, cumpre notar – ainda que nesse tema não possa me deter aqui -, que
Platão combatia ferrenhamente o relativismo dos sofistas, os quais afirmavam
que não há verdade, mas apenas opiniões circunstanciais e relativas.
3. A dialética platônica e o método dos geômetras
A
dialética platônica se pauta por um embate de teses. Num primeiro momento, ela
se define como dialética ascendente. A dialética, em Platão, é
uma técnica dialógica, por meio da qual se procura saber o que é. Antes de
Platão, os filósofos procuravam explicar as coisas num movimento de reflexão
que remontava às causas primeiras ou primeiros princípios do universo. Eles
buscavam a origem, tanto no sentido de começo quanto no sentido de fundamento,
para o Ser. A dialética platônica, ao contrário, visa a explicar a situação
atual do universo e dos seres; não se dirige a uma situação anterior, mas a
causas intemporais responsáveis pela natureza das coisas, ou seja, por aquilo
que as fazem ser o que são.
A
serviço de Platão, na busca por saber a natureza das coisas, está o método
dos geômetras. Esse método supõe um problema a ser resolvido, uma hipótese
com a qual se busca resolvê-lo. Se ela parecer satisfatória, passa-se a
verificar se ela se sustenta por si mesma ou se supõe outra hipótese mais geral
– e assim sucessivamente. O resultado é uma cadeia de hipóteses
interdependentes, pelas quais se busca uma sustentação última – uma
não-hipótese -, que basta por si mesma e que, ao cabo do processo, serve de
base a todas as hipóteses que lhe estão subordinadas.
Conforme
veremos, a Doutrina das Ideias é uma consequência da adoção do
método dos geômetras.
4. A crítica ao conhecimento sensível
Segundo
Platão, permanecer no nivel das sensações é tornar impossível a construção de
um conhecimento seguro e estável; é ficar fatalmente preso nas malhas do
relativismo de sofistas como Protágoras. As sensações fornecem apenas
evidências momentâneas e individuais. Um conhecimento baseado somente nas
sensações é um conhecimento daquilo que aparece a cada pessoa no momento em que
aparece como tal.
Platão
defende a tese de que o particular não é um bom objeto para o conhecimento.
Sobre o particular, temos crenças, opiniões mas não podemos, a rigor, ter
conhecimento. Só podemos ter conhecimento do universal. Desde já,
vale dizer que são as Formas, isto é, os modelos eternos das coisas
sensíveis que são objeto de conhecimento.
Seguindo
a trajetória de Parmênides, Platão mantém que o caminho para o conhecimento
supõe a pergunta sobre o que é x, ou seja, sobre a essência
mesma de uma coisa ou ente. É com naturalidade, portanto, que Platão supõe a
existência das Formas e não se preocupa em justificá-las. Para ele, só há
conhecimento do que existe em si, do que é eterno e imutável. Assim, as Formas
são únicas, autoexplicáveis e não se identificam com as coisas particulares que
delas participam. Destarte, por exemplo, ao falar da Forma da Justiça, Platão
quer-se referir à Justiça em si. Forma é o modelo perfeito,
imutável e imperecível de tudo quanto no mundo sensível é imperfeito, mutável e
perecível.
5. A doutrina das Ideias e da Linha Dividida
O
método do geômetra leva Platão a estabelecer a doutrina das Ideias. Platão
propõe que se assuma por hipótese a existência de “Formas”, “Essências”, ou
“Ideias”, que seriam os modelos eternos das coisas sensíveis.
Essas
Essências ou Formas seriam incorpóreas e imutáveis, e existiriam em si mesmas.
Embora Platão as chame também de Ideias, elas não existem na mente humana, como
conceitos ou representações mentais; mas, ao contrário, existem em si num mundo
à parte, denominado de mundo inteligível. Cada coisa sensível,
como, por exemplo, uma cadeira seria o que é, em virtude de participar da
essência que lhe serve de modelo (a Forma cadeira ou a Ideia de cadeira). A
Forma da cadeira permanece imutável, é sempre a mesma fora do tempo e do
espaço.
Não
podemos apreender com os sentidos as Formas ou as Ideias. Estas habitam o mundo
inteligível, e nossos sentidos só captam o mundo sensível e material. Mas
podemos alcançá-las com o intelecto ou pensamento, pois elas são inteligíveis.
As
Formas são apreendidas somente pelo intelecto ou pela razão. Elas são o real, o
verdadeiro. Não mudam e, por isso, é a razão que as capta. A razão obedece ao
que Parmênides asseverou: pelo intelecto, temos o que não muda, o que é.
Todas as coisas que qualificamos de belas são captadas pelos sentidos; eles nos
dão as percepções, as crenças e as opiniões. Percepções, crenças e opiniões não
são, a rigor, conhecimentos; por isso, não estariam ao abrigo da regra
parmenidiana.
Formamos
opiniões sobre tudo que há no mundo empírico (no mundo da experiência
sensível), e nossas opiniões são mutáveis tanto quanto o próprio mundo
percebido pelos nossos sentidos. Pela atividade dos nossos sentidos,
apreendemos o mundo existente, mas não o mundo real. O mundo real é o mundo
inteligível, o mundo das Formas ou das Essências. O mundo existente - o mundo
sensível – seria o campo observado por Heráclito. Com essa divisão entre dois
mundos, Platão concilia os postulados de Parmênides e de Heráclito.
O
que é, pois, a Doutrina da Linha Dividida? Trata-se do processo
pedagógico-filosófico de Platão enquanto processo epistemológico – a verdadeira
pedagogia de Platão. A Linha Dividida consiste na proposição da existência de
dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível, e dos modos
correspondentes de cognição a respeito deles.
Urge
atentar para o fato de que tanto o mundo inteligível quanto o mundo sensível
existem, mas, para Platão, o mundo das coisas sensíveis é menos real do que o
mundo das coisas inteligíveis. O conhecimento das coisas inteligíveis, ou seja,
das Formas, das Essências ou Ideias, é um conhecimento não só superior a todos
os outros, mas também é o conhecimento das coisas reais, ou seja, o
conhecimento das coisas como elas são realmente.
O
mundo empírico das imagens (mundo heraclitiano), dos simulacros, das coisas
sensíveis, que serve de base para as nossas crenças, que engendra ilusões, é o
mundo no qual impera o fluxo contínuo, mundo onde tudo é cópia imperfeita do
mundo permanente e real (do mundo inteligível). Se o mundo sensível
identifica-se ao mundo heraclitiano, o mundo inteligível é o mundo
parmenidiano. Este mundo estável: é o lugar das Formas, dos paradigmas para
cada objeto do mundo sensível.
Pode-se
dizer, portanto, que a Teoria da Linha Dividida é uma espécie
de teoria-síntese entre a verdade de Parmênides e a verdade de Heráclito. É a
maneira pela qual Platão conciliou as duas teorias pré-socráticas: uma de ordem
cosmológica (Heráclito) e a outra de ordem ontológica (Parmênides), em uma nova
filosofia – a metafísica.
Em
suma, é o domínio do mundo inteligível que Platão entende ser o mundo Real e
que, de fato, é o mundo ideal; ele chamou a esse mundo de mundo
verdadeiramente real. Eis aí por que se pode dizer que Platão é idealista
(mas há quem o veja como realista; donde falar-se em um realismo das ideias).
Assim, no plano ontológico ou do ser, o que ocorre é que o mundo sensível, ou
seja, o mundo acessível aos nossos sentidos é apenas uma cópia do mundo
inteligível.
6. A escalada do conhecimento
Nesta
última seção, tornarei patente o modo como Platão explica o caminho pelo qual
atingimos o conhecimento ou reconhecimento das Formas ou Essências.
O
conhecimento ou reconhecimento das Formas ou Essências (reconhecimento porque,
na verdade, a alma já teria contemplado as Essências antes de prender-se ao
corpo), não se dá de modo direto e imediato. Trata-se de um processo que
envolve etapas. Para alcançar esse conhecimento, é necessário percorrê-las.
Em A
República, Platão descreve essa escalada que conduz, afinal, às Ideias ou
Essências, por meio de etapas sucessivas. A cada tipo de objeto corresponde uma
forma ou etapa no processo de conhecimento. A escalada parte do mais obscuro e
instável até a máxima clareza e segurança.
Cada
etapa remete à que lhe é imediatamente superior e nela se sustenta e se
aclara. A verdade não é dada de início. Ela só pode ser
atingida no final do processo, depois que todo o caminho ascendente for
percorrido, depois de vencidas todas as etapas intermediárias. A verdade é
conquistada ou alcançada ao cabo deste longo e árduo processo de ascensão do
espírito ao conhecimento da verdadeira realidade. Esse processo inicia-se pela
ilusão produzida pelas sombras, simulacros; leva à formulação de crenças com
base nos objetos sensíveis; daquelas passa à razão discursiva e hipóteses
matemáticas e, finalmente, atinge o estado dos raciocínios puros.
A
famosa Alegoria da Caverna está intrinsecamente ligada à
Doutrina da Linha Divisória. Na Alegoria, entrevê-se a
distinção entre o mundo inteligível, que, no limite é banhado pelo Sol, que faz
o papel do Bem; e o mundo sensível e ilusório, que é o mundo representado pelas
sombras. Nós todos habitamos o mundo sensível. Andamos, comemos, bebemos e
dormimos no mundo sensível, no mundo do fluxo perpétuo heraclitiano, mas nós
mesmos, “sem tirarmos os pés do chão”, sem precisarmos partir para outra vida,
podemos ter acesso, pelo conhecimento filosófico, ao mundo inteligível para
contemplar as Formas e a Forma do Bem.
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