Um intróito de filosofia vespertina
É na leitura que se fazem sentir estes pensamentos, aos quais,
aqui, dou materialidade verbal. Sem delongas, cito, pois, Sponville antes de mais nada (e que não me apareça
por aqui algum sabedor integrante da patrulha linguístico-normativista para
condenar-me o uso dessa expressão que destaco, propositalmente, em itálico) : “filosofar é pensar mais longe do que aquilo
que se sabe e do que aquilo que se pode saber”1.
Esse enunciado de
Sponville diz-nos duas coisas: 1) que filosofar é ir além do que já conhecemos,
ir além do conhecimento comum e estabelecido; 2) que filosofar, enquanto
atividade de reflexão radical, é ir além de toda forma de conhecimento
possível; nesse sentido, é fazer metafísica; é também, portanto, pensar o que
está além da extensão de nossas capacidades cognitivas (ou se preferir, para
dizer à moda kantiana, dos limites da
razão). Um bom exemplo de domínio sobre o qual o pensamento filosófico se
debruça é a Existência (com maiúscula para significar o fato mesmo da presença
irrecusável do SER). Para ser mais claro, Existência, com maiúscula, deve sugerir que se trata de uma dimensão temporal situada entre dois nadas e relativa à qual supomos haver um fundo imperscrutável onde, para alguns dentre nós, residiria o sentido último, absoluto e transcendente, ou onde, para outros dentre nós, residiria a ausência de sentido, o Nada, cujas feições se manifestam no interior da própria existência na forma da categoria do absurdo. Kierkegaard negava que a existência pudesse ser objeto
para o pensamento; e, embora eu não esteja interessado em me alongar sobre o como
Kierkegaard pensava a existência, preciso notar que ela é, para ele, a origem a
partir da qual cada um de nós pensa e age. Para o homem, existir não é ser ou
ter uma existência empírica e imediata. Para o homem, existir é uma tarefa, uma
exigência, qual seja, a do devir, a do edificar-se. Você poderá encontrar o
desenvolvimento destas ideias em outro texto que se encontra neste blog e no
qual discorri sobre o conceito de angústia em Kierkegaard e Sartre. Por isso,
escusa retomá-las aqui. Vale dizer, por ora, que a Existência excede, portanto,
as possibilidades do próprio pensamento, enquanto atividade do espírito, o que
não nos desobriga, por isso, de pensá-la.
Não quero correr o risco
de dirigir meus pensamentos para muito longe dos caminhos previstos para eles.
Por conseguinte, retorno à definição de Sponville. Tenhamo-la em conta. Pensei,
então, que seria oportuno ilustrar a definição de filosofia aduzida por
Sponville, tomando-se, para tanto, o significado da expressão sintagmática a existência de Deus.
Quiçá, essa breve ensaio seja interessante também aos que apreciam dar seus
testemunhos de fé (crença) em (na existência de) Deus; em todo caso,
certamente, interessará a você e a todos que, como nós, apreciam o exercício do
pensar livre, o ocupar-se da ginástica do pensamento, sem, todavia, recear a possibilidade
do equívoco ou o próprio equívoco como possibilidade que nos incita a ir
adiante, a repensar o nauseantemente dito, a reelaborar o já elaborado e
cristalizado. Por isso também a filosofia é uma atividade discursiva sempre em
abertura: não só porque supõe o incessante movimento de retomada das questões,
do repropor do pensar que não cessa de elaborá-las, de reelaborá-las, de
dar-lhes múltiplos caminhos, diversas dimensões, outros sentidos (é já
lugar-comum para os iniciados na seara filosófica que as questões importam mais
que as respostas, que a forma como elaboramos as questões é decisiva na busca
pelas respostas (quando há) que elas reclamam), mas também porque tem em seu
horizonte a possibilidade mesma do equívoco que, antes de refrear aquele movimento,
dá-lhe mais força e ambição.
É Kierkegaard, de cujo
pensamento andei ocupado recentemente, que nos põe em face do movimento dos
sentidos, da própria realidade pluridirecional que lhes é constitutiva, quando
usa a expressão existência de Deus.
Quando nos perguntamos sobre que sentido tem essa expressão na filosofia de
Kierkegaard, somos levados também a nos perguntar se faz algum sentido, tendo
em conta o senso-comum, falar em existência
de Deus. O que queremos dizer com o sintagma existência de Deus; por exemplo, quando o encontramos num enunciado
como “Meu amigo crer na existência de Deus”? Reportemo-nos a Kierkegaard.
Alguns intérpretes seus pensam que, ao usar a palavra existência em a existência de Deus, Kierkegaard se referiu à
realidade eterna de Deus. É este o
sentido pretendido por Kierkegaard: assumir a existência de Deus é o mesmo que
admitir que Deus é dotado de uma realidade eterna. Para Kierkegaard, seria,
então, uma blasfêmia tanto pretender provar a existência de Deus quanto
negá-la.
Em contrapartida,
intérpretes há que lançam um outro olhar sobre aquela expressão em Kierkegaard.
Para estes, Kierkegaard entende por existência
a maneira de ser do próprio homem; portanto, finita e temporal, submetida
essencialmente ao devir. Ora, Deus, à luz da teologia cristã, não é finito,
tampouco está sujeito ao devir, porque é imutável e intemporal (tempo e mudança
se implicam: o tempo supõe mudança e a mudança só existe no tempo). Para esses
intérpretes, Kierkegaard não estaria senão expressando o mais absoluto fideísmo (sistema de pensamento que dá
proeminência à fé em detrimento da razão). Esse fideísmo é suposto no próprio
sentido da palavra existência em a existência de Deus construído pela
interpretação à luz da qual Kierkegaard teria pretendido referir-se à realidade eterna de Deus. Não é difícil
inferir o fideísmo kierkegaardiano: uma vez que Kierkegaard pense a existência
de Deus na acepção de realidade eterna de Deus, segue-se daí que essa realidade
eterna não pode ser acessível à razão humana, visto que ela só existe no tempo
e visto que Deus, como tal, não se presta a ser um objeto para ela. A razão não
pode pensá-lo porque ela é de natureza temporal e limitada. Somente pela fé se
pode relacionar-se com Deus.
Se, como interpretam
alguns estudiosos, Kierkegaard entende a existência como o modo de ser do homem (chamado o existente), um modo marcado pela
temporalidade e finitude, segue-se daí que a existência é uma categoria que não
se aplica a Deus, porque ela envolve o tempo, a finitude e o devir. A conclusão
que se nos impõe, logicamente, é a de que Deus não existe, se o consideramos em
seu modo eterno de ser. Para os intérpretes que conscientemente ou não
autorizam essa conclusão, Kierkegaard estava referindo-se ao fato paradoxal da
Encarnação, ou seja, do mistério de Deus que se fez homem na pessoa de Cristo,
o que equivale a dizer que, passando a viver entre os homens, se deixou
submeter-se ao devir. Assim, a expressão a existência de Deus
significaria, para Kierkegaard, o acontecimento – escândalo para os judeus! – e
não menos, ao que parece, tormentoso para o próprio Kierkegaard – da encarnação
de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
A que nos conduzem essas
despretensiosas meditações incipientes? Que sentido se pode atribuir à
expressão existência de Deus? Ou
melhor: faz algum sentido, de um ponto de vista estritamente lógico-semântico,
falar em existência de Deus? Perceba
que não está em questão a possibilidade de Deus existir ou não. Novamente, estamos nos
situando no domínio lógico-semântico, o que nos conduz a levar em conta o
significado da palavra existência, tal como procurei enfocá-lo nesse texto, à
luz da contribuição de Kierkegaard e de seus intérpretes.
Acredito que, se
acompanharmos rigorosamente Kierkegaard, dois caminhos de compreensão se nos
abrem: 1) ou Deus existe enquanto realidade
eterna inacessível à razão – e, nesse caso, a existência de Deus é de ordem
diferente da existência humana (Deus é o ser cuja essência (inacessível a nós,
seres racionalmente limitados e finitos) encerra a existência, e essa
existência não é de ordem temporal (o que seria então?)); 2) ou Deus não
existe, embora tenha existido quando se fez carne em Cristo e se submeteu ao
devir. 1) nos leva a concluir, com
Kierkegaard, que não devemos tentar provar a existência de Deus (se o fizermos,
seremos blasfemadores); mas também que não podemos tentar fazê-lo porque Deus
não se dá a conhecer pela razão. Todo esforço de uma “teologia racionalista” é
inútil e incorre em blasfêmia. 2), por outro lado, nos conduz à conclusão de
que Deus não existe, tal como dizemos de nós que existimos. Ele não existe
porque não é finito, porque não está no tempo, porque é imutável.
Fica, pois, evidente a
problemática em que nos envolvemos quando nos debruçamos sobre o significado da
expressão a existência de Deus; ou
melhor, quando levamos em conta seriamente o que se quer dizer com o enunciado
“Deus existe”. Novamente, lembro que não está em pauta aqui qualquer tentativa
de provar a existência de Deus ou de rejeitá-la como projeção da
fantasia humana. Trata-se, na verdade, de saber se essa expressão tem algum
sentido.
Concluo com o que lhe
disse, certa feita, sobre o fato de ser parte importante do trabalho da
filosofia o cuidado com a definição dos conceitos, dos significados das palavras
– cuidado, em última análise, com a forma como as empregamos, com os sentidos
que lhes atribuímos. Em grande medida – penso eu -, a filosofia é um exercício
de exploração semântica das possibilidades de verbalização (não de uma
verbalização vazia, despropositada; mas de uma verbalização que supõe o mundo,
o homem, a existência mesma como questão). Nesse exercício, a preocupação com a
exatidão na constituição da estruturação semântica do discurso, a preocupação
com a extensão (classe de entidades a que uma palavra se aplica) e a intensão
(conjunto de propriedades que determinam a aplicabilidade de um termo), tomadas
como propriedades semânticas das palavras, é uma instância fundamental do
próprio trabalho de filosofar, cujo objetivo é tornar possível o conhecimento
da verdade (todavia, temporal ou temporária, como nós).
(BAR)
1. COMTE-SPONVILLE, André.
A filosofia. Ed.: Martins Fontes, São
Paulo, 2005, p. 20.
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