sexta-feira, 9 de agosto de 2013

"A filosofia não é um conhecimento divorciado da vida" (BAR)

                           


                             A potência filosófica de existir


Poder-se-ia apontar várias razões por que uma pessoa decide dedicar-se aos estudos filosóficos. Embora possam ser várias, algumas, talvez, se destaquem desse conjunto quantitativamente indefinível por sua relação inextricável com experiências de vida, em que o psiquismo foi profundamente abalado. Suponho que não sejam raros os filósofos que passaram a filosofar e a conviver com o legado da tradição filosófica por força de traumas que certos acontecimentos lhes provocaram na alma. A ideia de que a decisão pela incursão nos estudos de filosofia e pelo exercício contínuo de filosofar pode ser consequência de experiências traumatizantes e  a de que o exercício mesmo de filosofar é uma forma de responder ativa e racionalmente ao abalo dessas experiências tomaram corpo em meu espírito, durante a leitura do prefácio da obra A potência de existir (2012), do filósofo francês contemporâneo Michel Onfray.
Donde provém a eficácia da filosofia para nos sustentar na existência, mesmo depois de termos experienciado os sofrimentos mais atrozes? Terá a filosofia o poder de iluminar a escuridão de nossas dores, contribuindo para nos manter nesse estado de “não-suicídio” (expressão que tomo a Luiz Gonzaga de Bem)?
A fim de explorar essas questões, retomo aqui a leitura que fiz do prefácio do livro A potência de existir (2012), de Michel Onfray. Este livro constitui uma introdução à obra desse filósofo; é, na verdade, uma síntese de seu pensamento filosófico. Sua filosofia é confessadamente hedonista, antiplatônica e anticristã. Seu pensamento foi forjado na esteira de Nietzsche e dos materialistas.
O prefácio desse livro é destinado ao resgate de experiências, vividas entre os dez e quatorze anos de idade, que marcaram a vida do autor profundamente. Conta-nos Onfray que, no começo de sua adolescência, ele fora enviado pelos pais para um orfanato administrado por padres salesianos (padres que pertencem à Congregação de São Francisco de Sales, fundada em 1859, por São João Bosco, para a formação da juventude). O que lá viveu foi não só determinante de sua entrega aos estudos filosóficos, mas também da construção de sua visão de mundo hedonista, antiplatônica e anticristã.
Era 1969, quando Onfray passou a viver, em regime de internato, no orfanato Giel – um amálgama lexical que reúne as palavras “gelo” e “fel”. Embora tenha ido para lá por arbítrio dos pais, o papel de sua mãe foi mais decisivo no destino que sua vida tomaria. No orfanato Giel, Onfray passou quatro anos e conheceu o que ele mesmo, sendo ateu, não hesitou em chamar de “inferno”. Esse “inferno” era dirigido por padres cruéis, hipócritas, pedófilos, pederastas e infensos à inteligência.
Sem pretender me demorar na exposição desse episódio da vida do filósofo francês, gostaria de oferecer ao leitor algumas amostras de sua narrativa desses tempos idos que, embora tenham desencadeado seu interesse pela filosofia, não lhes legou ressentimento ou sentimento de vingança. Ao invés de permitir que uma revolta paralisante se aninhasse em sua alma, Onfray escolheu tomar o caminho que o conduzisse a ampliar sua “potência de existir” (fórmula de que tomou conhecimento pela pena de Espinosa). Onfray respondeu ao legado dessas experiências por meio da prática filosófica, o que equivale a dizer por meio de uma compreensão radical do mundo, de seu lugar no mundo e de si mesmo.
No trecho a seguir, o autor lembra quem fora sua mãe e como era sua relação com ela.

“Meu Deus, como ela deve ter sofrido por não ter conseguido conter o ódio que lhe impingiram e que ela devolvia ao mundo, sem discernimento, incapaz de poupar seu filho! O que pode compreender uma criança com menos de dez anos dessa mecânica cega que envolve, sem que eles queiram, esses atores descerebrados na loucura que os destrói? Uma mãe bate em seu filho como uma telha cai do telhado; o vento não é culpado. Depositando sua filha à porta de uma igreja, minha avó, de quem ignoro tudo, contribui para os movimentos de todas essas infâncias postas sob o signo da negatividade. A força cega que move os planetas conduz num mesmo movimento os seres alimentados com essas energias negativas”.
(p. XV)


Por ter compreendido ter sido sua mãe tão vítima quanto ele, o filósofo não a culpa, já que todos os envolvidos eram atores submetidos a uma mecânica cega, muito embora ele, Onfray, reconhecesse ter estado numa situação ainda mais desfavorável, visto que “desempenhava um papel num palco cujas lógicas ignorava” (ib.id.).
O pai não dissuadiu a mãe de sua decisão. A natureza plácida, sua taxia que lhe enrobustecia um espírito pacífico acomodou-lhe muito bem no papel de cúmplice.
Já no orfanato, Onfray nos oferece suas primeiras impressões daquela atmosfera marcada profundamente por violência, vigilância, disciplina castradora e abusos sexuais.

“Não se escapa de uma prisão não murada. A carne e a alma são vigiadas inclusive a distância, principalmente a distância”.
(p. XVII)


Quando os pais o deixaram, iniciava-se a história de seu fim. É sua existência que seria, desde então, profundamente transformada, lavrada com o cinzel do isolamento, da solidão, do abandono.

“A história do ser se escreve ali, com essa tinta existencial e essa carne que se furta, esse corpo que registra animalmente a solidão, o abandono, o isolamento, o fim do mundo. Arrancando dos costumes, dos rituais, das fisionomias conhecidas, dos lugares íntimos, eu me encontro sozinho no universo, experimentando o infinito pascaliano e a vertigem que se segue. Vórtice da alma e dos humores...”. (p. XIX)


“Vórtice da alma”tal é o impacto causado por esse arrancamento prematuro de seu universo familiar, para ser lançado num mundo hostil, sombrio e apavorante.
Era o fim de Michel Onfray, que teve de lidar com o fato de sua subjetividade ser reduzida a um número.

“Não serei mais que 490, um número que reduz meu ser a esses algarismos. Normal, estou num orfanato, onde abandonam as crianças, logo, elas devem se separar de seu nome próprio para se tornarem um número numa lista. (...) Fui morto ali, naquele dia, naquele momento. Pelo menos a criança em mim morreu e eu me tornei adulto repentinamente. Mais nada me assusta desde então, não temo nada mais devastador”.
(p. XX)


O espírito salesiano – já o disse – não se agrada da inteligência. O sacerdócio era oferecido aos que se deixavam moldar intelectualmente. Nessa atmosfera, os livros atraíam desconfiança e o conhecimento produzia temor. O intelectual era identificado como o verdadeiro inimigo. A culpa estava por toda parte. A punição sobrevinha injustamente pelas mãos impiedosas do capricho e do arbítrio. Nesse ambiente, até mesmo o estudo se desenvolvia sob a pressão do temor:

“A disciplina, os castigos, o lícito, o ilícito, o bem, o mal, a falta, vivíamos em permanência nessa atmosfera. O estudo também transcorre no temor: o mau resultado obtido, não por falta de esforço, mas por falta de inteligência, também é submetido à lei da nota semanal, depois punido”.
(p. XXXIV)


Um dos casos de abuso sexual de que foi testemunha o filósofo envolveu um salesiano encarregado da enfermaria. Conforme nos conta Onfray,

“Duas palavras também sobre o salesiano encarregado da enfermaria, para onde ninguém corre, e com razão: qualquer dorzinha de cabeça vale para quem o procura ter imediatamente a calça abaixada e ser bolinado. Com as calças caídas sobre os sapatos, se protesta observando que não é ali que dói, ouve em resposta que as complicações se escondem em toda parte! Depois, o apalpador de sacos declara, indiferente, que está na hora de voltar à sala de aula e paga tudo avarentamente com um comprimido de aspirina. Fiquei com minhas dores de cabeça para mim...”.
(p.XXXIX)


Os livros, a música, as artes e a filosofia – especialmente a filosofia – avivou-lhe a força necessária para que pudesse suplantar o inimigo do passado, responsável por confinar sua existência em relações íntimas com o medo e a opressão “santa”.

“Para não morrer por causa dos homens e da sua negatividade, houve para mim os livros, depois a música, enfim as artes e sobretudo a filosofia. A escrita coroou o todo”.
(pp. XXXIX – XL)


Toda produção intelectual do filósofo é consequência, conforme ele próprio nota, “de uma operação de sobrevivência efetuada desde o orfanato” (ib.id.). Com Espinosa, passou a expressar em seu pensamento filosófico a “potência de existir”. Com as seguintes palavras, com que dá testemunho de sua sobriedade e sabedoria, Onfray encerra sua visita ao passado salesiano:

“Sereno, sem ódio, ignorando o desprezo, longe de todo desejo de vingança, ileso de qualquer rancor, informado sobre a formidável potência das paixões tristes, não quero nada mais que a cultura e a expansão dessa “potência de existir”.
(p. XL)


Ainda não ataquei, propriamente, as questões anteriormente propostas; mas tão-só as toquei de leve. A experiência relatada por Onfray ilustra a medida da relação irrecusável, a quem quer que se dedique seriamente aos estudos filosóficos, da filosofia com a vida. Não obstante, precisamos avaliar quais são as características da filosofia que tornam-na um instrumento poderoso para alimentar no homem a perseverança em existir cada vez mais.
Antes de encetar nossa investigação, trago à cena as observações feitas por Sponville, em seu Uma Educação Filosófica (2001), sobre o que chama de estado de crise da filosofia. Segundo o filósofo, a crise apresenta duas faces: uma deve ser identificada com a modernidade, na qual se destaca o poder da mídia na formação da opinião das massas, a qual insistentemente preenche o lugar da filosofia; a outra, com a erudição que se manifesta mediante raciocínios vãos e divorciados da vida real. Essa verborragia vazia a que se reduz a prática filosófica, Sponville chama idealismo universitário. Não admira que a disciplina seja tão pouco atraente aos estudantes. Ao se dirigir à classe docente, confessa o filósofo francês:

“(...) muitas vezes, ao ouvi-los, tenho a impressão de escutar uma filosofia morta, que não tenha a opor ao pedagogismo reinante nada mais que um filosofismo caduco e irrisório”.
(p. 139, ênfase no original)


Por pedagogismo – preciso esclarecer -, Sponville entende um sistema de ideias, atitudes e práticas que privilegia a educação em prejuízo da instrução. Esse padagogismo carreia certo número de forças – ideológicas, profissionais, sindicais – que estão intimamente ligadas ao meio docente. Nesse sistema ideológico, reza-se que a escola seja libertadora não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Essa apregoada libertação de que a escola deve ser promotora assume a forma de uma promessa de prosperidade para a sociedade que tenha em seu horizonte o futuro e em seu projeto a recusa à transmissão e à conservação do passado – função esta que, segundo Sponville, deve ser imputada à escola. Nas palavras do autor,

“(...) cumpre lembrar que a escola não é o lugar da invenção do futuro (que somente os cidadãos podem e devem assumir), mas da conservação do passado na reprodução do presente”.
(p. 138)


Se a escola tem, consoante pensa Sponville, uma função eminentemente conservadora, não se segue daí que se deve confundir o projeto pedagógico conservador da instituição escolar com o conservadorismo político. Do mesmo modo, não se deve tomar esse projeto como um caminho para a consolidação de práticas reacionárias. Trata-se senão de um compromisso com a conservação de um passado, de uma história, de um patrimônio cultural, que é a própria história do desenvolvimento da cultura ocidental.
Quando se debruça sobre o conteúdo e a finalidade da filosofia, Sponville é enfático: “a filosofia tem (...) fora de si mesma, seu objeto (o real) e seu fim (a sabedoria)” (p. 140). Uma filosofia apartada do real, divorciada da materialidade imanente ao mundo não passa de uma verborragia enfadonha e despropositada. Como poderiam os jovens se sentir atraídos por um discurso (logos) desconectado com a própria existência que o torna possível? Esse logos se reduz, se não encarnado no real, a uma tagarelice que beira à loucura – para parafrasear Sponville (p. 140).
Estando a filosofia comprometida com o real, deverá ela responder aos anseios humanos; e qual outro é tão facilmente universalizável quanto o anseio de felicidade? Tendo em conta o fato de que a felicidade jamais estivera ausente do horizonte humano, oportuno é lembrar a definição de filosofia dada por Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Mas não devemos nos apressar em concluir que a filosofia por si mesma é suficiente para nos conduzir à felicidade. Não percamos de vista o fato de que também a felicidade e a possibilidade de sua fruição são colocadas como uma questão para a filosofia. Ademais, a definição oferecida por Epicuro deve ser entendida à luz de seu ensinamento ético, que propunha como finalidade a ataraxia (ausência de perturbações). O homem feliz, para Epicuro, é o homem que eliminou a dor, o sofrimento mental e físico; é o homem que se libertou do jugo de seus temores. Somente o estado estável de prazer leva à felicidade. Deixemos, no entanto, Epicuro, não sem reter a íntima relação entre filosofia e a vida vivida, para retomar as considerações de Sponville.
Segundo Sponville, o ensino de filosofia serve para dotar os estudantes de conhecimento e instrução. Serve, ademais, para propiciar-lhes a experiência da alegria do repouso na verdade (Espinosa).
Concentrando-se na questão do ensino da filosofia, Sponville identifica os seguintes desafios à prática do professor – que são os desafios de todo professor (não só de filosofia) preocupado com o ensino de leitura e escrita. O primeiro desafio consiste em enfrentar o estado de incultura dos alunos; o segundo, no enfrentamento do domínio deficiente da língua escrita; o terceiro, em enfrentar a desvalorização da abstração e do trabalho com conceitos; finalmente, o quarto desafio repousa no enfrentamento do culto ingênuo das vivências, do imediatismo e da espontaneidade.
A rejeição a assumir esses desafios é desistir do esforço por evitar que a filosofia se torne uma filodoxia, conforme nota o autor:

“Os debates de opiniões substituiriam então os estudos dos textos, a impaciência presunçosa dos falsos saberes triunfaria sobre a paciência do conceito e a filosofia se apagaria, enfim, diante da filodoxia”.
(p. 135)


Sempre que nos ocorre perguntar-nos “o que é filosofia?”, não é sem-razão começar por assumir o óbvio: não se filosofa senão com palavras. Se preferirmos, com discursos. Mas não com quaisquer palavras ou discursos, decerto. As palavras precisam designar ideias gerais ou conceitos. Que a filosofia se faz pelo encadeamento de raciocínios é lugar-comum, mas esses raciocínios devem nos guiar na busca da verdade necessária e universal. A filosofia demanda um trabalho intelectual, rigoroso, metódico, disciplinado. Ela é uma prática teórica, que visa a resultados gerais ou universais. Como prática teórica, não é científica, porque não pode ser logicamente demonstrada, como a matemática, nem empiricamente refutada (à semelhança das ciências experimentais).
A filosofia supõe um trabalho de transcendência realizado pelo próprio homem. O seguinte passo de Sponville, colhido de sua obra A Filosofia (2005), ilumina-nos em que consiste este trabalho de transcendência:

“Filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”.
(p. 20)


A filosofia não só torna o homem consciente de seus limites, mas também o estimula a ultrapassá-los. Ao que escreve Sponville, eu acrescentaria, fazendo eco a tantos especialistas na área, que filosofar é também submeter ao exame e convocar ao tribunal dos questionamentos, presidido pela razão, as opiniões, as crenças e saberes correntes e cristalizados, que tomam a forma de verdades “sagradas”, inabaláveis, intocáveis.
A filosofia não é a única forma possível de conhecimento, evidentemente. A fim de melhor compreender sua natureza, vamos confrontá-la com o que se costuma chamar de senso-comum. Decerto, enquanto empreendimento de uma razão crítica, a filosofia rejeita as ingenuidades e os preconceitos típicos do senso-comum. Mas o que é o senso-comum?
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que ele ocupa um lugar privilegiado na vida de qualquer um de nós, já que ele é o conhecimento imediato, espontâneo, vivido que nos guia em nossas vivências diárias. Assim, podemos definir o senso-comum como a forma de compreensão da realidade imediata pelos indivíduos em suas experiências da cotidianidade. É um saber coletivo que encerra opiniões, hábitos, crenças, superstições, formas de pensamento, valores, ideologias de que se vão apropriando os indivíduos em coletividade de modo acrítico. Essa forma de saber serve, como disse, para orientá-los em suas vivências cotidianas. É o senso-comum que guia as suas ações, as suas formas de perceber/compreender a realidade.
Quando um indivíduo assume uma atitude filosófica, ele, necessariamente, se compromete com a superação desse senso comum, responsável por conformar maneiras de pensar e entender, por determinar hábitos de pensamento. É preciso frisar: mesmo esse indivíduo imbuído de atitude filosófica e, portanto, disposto a examinar toda sorte de opiniões e representações do senso comum, que acaba por conservar uma grande maioria num estado de compreensão superficial e empobrecida da realidade, não consegue prescindir totalmente do senso-comum, dada a sua natureza utilitária, visto que serve para orientá-lo nas suas vivências ordinárias.
O pensamento filosófico surge da urgência de questionar as verdades do senso-comum, por isso não pode prescindir dele. Para o que me interessa, é preciso ficar claro que o senso-comum é uma forma de conhecimento superficial, porque não atinge os fundamentos ou as raízes da realidade; assistemático, porque desprovido de organização e coerência internas; não-metódico, já que o seu desenvolvimento não se dá por etapas predeterminadas, mas segundo as necessidades emergentes das circunstâncias. Para o senso-comum, o poder da tradição é determinante para a manutenção de certas formas de agir e saber. Vale o conhecimento que se demonstrou útil ou eficaz no passado.  Segundo a lógica do senso-comum, as ações, os comportamentos  e os conhecimentos assumidos no presente se justificam com base em sua eficácia ou valor fixados pelas gerações precedentes. Consoante observam Luckesi e Passos (2012):

“O senso comum não está preocupado com as incoerências de suas partes, e muito menos se esse entendimento é válido aqui e acolá ou se só aqui ou só acolá. Sabe que, aqui e agora, nesse momento prático, ele é útil, o depois... e o acolá... do conhecimento são dimensões que não cabem no seu horizonte”.
(p. 38)


O homem acostumado ao labor filosófico busca prevenir-se contra as ilusões que lhes são inculcadas por força de sua socialização. O leitor de Schopenhauer, por exemplo, tendo-o em conta, não descuidará do fato de que a faculdade de deliberação no homem está entre as coisas que mais acarretam dor à sua existência. As dores que experimentamos, muitas vezes, têm sua origem em noções abstratas, em pensamentos que a própria racionalidade fabrica. Se a lucidez no homem pode ser fonte de sofrimentos, a razão também lhe permite ponderar sobre esses sofrimentos e suas consequências. No homem, a faculdade de deliberação é indissociável da faculdade de abstração, de sorte que o próprio comportamento deliberativo no homem se determina por representações abstratas.
Gostaria, doravante, de situar minhas reflexões sobre o valor da filosofia no domínio da urgência de diversão. A filosofia se nos apresenta como um espaço dialógico de resistência à necessidade alienante de “di-vertimento”. Do latim “de-vertere”, diversão significa “desviar a atenção para outro lado”. Pascal entendia a diversão como uma atividade em que o homem se ocupa para evitar defrontar-se com o seu vazio existencial, com sua insignificância num universo infinito, cego e indiferente. Tudo de que se ocupa o homem, desde o exercício de sua profissão, passando pelas atividades políticas, negócios, até o hábito de se deixar estar por longas horas a navegar pela internet pode ser definido, segundo a perspectiva de Pascal, como “di-versão”.
Não só Pascal vem em socorro da ideia de que a filosofia, não negando ao homem os prazeres da diversão, ilumina-lhes o caminho para que se liberte de sua tirania, mas também Kierkegaard e Heidegger. Este último, que também se preocupou com a existência concreta do homem no mundo, estava consciente do fato de que o Dasein do cotidiano (o impessoal) é o homem que se diverte como todo mundo se diverte, que vê e julga como todo mundo, que considera escandaloso o que se comumente considera um escândalo. Para Heidegger, o homem imerso na impessoalidade habituou-se a reproduzir formas homogêneas de pensamento. Seus di-vertimentos também são produtos de hábitos determinados por sua sociedade. Esse homem tende a abordar os problemas de relevância social, cultural, política, histórica, universal segundo os modelos engessados de opinião estabelecida.
A respeito desse homem conformado à cotidianidade e moldado às formas de di-vertimento padronizadas em sua sociedade, mas também prisioneiro dos estímulos sensoriais provenientes da exterioridade, que o faz desarrancar-se de si, Melendo, em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade (2005), nota:

“(...) justamente entre estes últimos o domínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com mais ênfase. E isso impressiona sobremaneira, porquanto vai acompanhado da ingênua certeza de estar desafiando uma sociedade que, de fato, sem que eles o saibam, submete-os às suas leis (...) às regras de consumo, aos jogos de poder, ao status quo estabelecido”.
(p. 35)


O homem que vive anonimamente no fluxo das massas tende a entreter-se com palavreados, com notícias e debates oferecidos superficialmente pelos meios de comunicação de massa. As palavras de que se serve comunicam conteúdos em torno dos quais se estabeleceu um domesticado consenso. Esses conteúdos são agastadamente reproduzidos. Para ele, a realidade está toda ela revelada e apreendida nesses conteúdos. Os temas de que se ocupa são esvaziados de sua importância e tendem a ser enfocados de uma perspectiva predominantemente subjetiva, valorativa e estreita.
Em suma, o bombardeamento de informações desconectadas de seus contextos reais de existência, o excesso de estímulos sensoriais a que esse homem está suscetível desencorajam-no de imergir no sentido profundo dos acontecimentos e das ocorrências do real.
Antes de me deter a considerar a lição de Kierkegaard sobre a existência concreta do homem – lição que nos ajudará também a compreender o valor da filosofia, quando a consideramos como uma prática discursiva que responde às necessidades vitais do ser humano, quero me demorar um pouco na exposição do aspecto impessoal da natureza do Dasein, segundo Heidegger.
Das Man (o impessoal) é o conceito cunhado por Heidegger para designar os aspectos de nossas vidas que são comuns e que se situam na esfera do anonimato. Esse conceito recobre as vivências dos indivíduos em nossas sociedades de massas, nas quais eles não se distinguem uns dos outros. Mas Heidegger argumenta que o “eu” é sempre impessoal e que não pode ser concebido como substância. Isso não o impede de distinguir um “eu” autêntico do “si-mesmo-impessoal”. Esse eu será cada vez mais autêntico quanto mais capaz de se distanciar das multidões.
Heidegger, no entanto, nega que seja possível ao “eu” ser univocamente autêntico. O eu do Dasein cotidiano é o “si-mesmo-impessoal”. Para esse “si-mesmo-impessoal” a existência não se apresenta como um problema sobre o qual ele deve se debruçar.
De minha parte, considerando-se a filosofia em sua relação dialética com o “si-mesmo-impessoal”, ela se lhe apresenta como um caminho íngreme através do qual pode superar o conformismo, a apatia, o imediatismo das vivências ordinárias.
Kierkegaard também se ocupou da reflexão sobre o homem individual no mundo. Nesse sentido, ele se opõe às filosofias que tenderam a negligenciar a dimensão individual da existência humana, como, por exemplo, as de Spinoza, Hegel e Marx. Para os meus propósitos, considerarei os dois tipos de homem identificados e definidos por Kierkegaard, quais sejam, o homem normal e o homem autêntico.
O homem normal, também chamado por Kierkegaard de filisteu, é o homem que exibe uma “neurose normal”. É o homem que não se diferencia da multidão de que toma parte sua existência cotidiana, cirurgicamente moldada pelos padrões de sua sociedade e cultura. Esse tipo de homem receia arriscar-se; evita defender seus significados, preferindo a imitação de modelos, preferindo perder-se na insignificância da multidão.
Esse homem sente-se bem acomodado ao mundo. O mundo é para ele como um lar onde suas práticas e pensamentos se deixam domesticar. Ele vive no circuito rotineiro de suas obrigações e se confunde com os deveres sociais.
O filisteu, em Kierkegaard, é este homem acomodado numa existência que, raramente, reclama-lhe indagações. Ele conserva-se na crença de que o equilíbrio de sua existência deve ser mantido com vivências que se seguem às vivências “normais” da coletividade. Ele se tranqüiliza com o trivial. Receia enfrentar sua precária condição humana.
O homem autêntico, por outro lado, desafia sua própria fraqueza. É criador de si mesmo. Não teme defender seus significados, suas visões de mundo, mesmo que isso lhe custe dissensões na sociabilidade e um relativo isolamento. Não se posiciona em face do social como um sofredor estéril ou um sonhador que prefere esconder-se. Ele imerge visceralmente na existência, sem receio de enfrentar, em algum momento, seu absurdo.
Esse é o homem deslocado socialmente, que resiste às formas de adaptação das massas à engrenagem social. Autônomo, porque rejeita a heteronomia. Porque não delega a outros atores sociais o trabalho de pensar e decidir em seu lugar. Esse homem é atravessado, penetrado pela inquietude intelectual.
O homem que abdica de viver sob a luz de seu espírito crítico busca, por esse estratagema, escapar à angústia legada por sua própria condição humana. Ele vive num estado de embaçamento, no tocante à compreensão de sua condição. Vive confinado a hábitos de existência que lhes estorvam as percepções da realidade.
A angústia a que me refiro envolve a percepção do homem de sua condição de criatura. A angústia resulta da consciência de que, embora seja uma espécie de animal, o ser humano é cônscio de sua finitude. A angústia envolve um terror, tão bem caracterizado por Becker, em A negação da morte: uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012):

“(...) ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(p. 116)


Filosofar é aprender a viver


Encaminhando estas reflexões a um desfecho que, não encerrando a problemática em torno do valor da filosofia e das razões por que o homem a ela se entrega, possa satisfazer os objetivos aqui perseguidos, volvo olhares sobre a filosofia como uma forma de conhecimento indissociável da vida prática.
Proponho que tomemos a seguinte questão: por que conhecemos? Em outros termos, por que o homem produz conhecimento? A resposta salta evidente: para sobreviver. Para que o homem possa orientar sua vida no mundo, ele precisa conhecer esse mundo. O conhecimento ilumina sua práxis. Não nego que o conhecimento possa servir a outros propósitos, certamente pouco apreciáveis ou mesmo execráveis. Mas, sem conhecer o mundo em que vive, o homem viveria em um eterno estado de escuridão, que o impediria de nele atuar de modo significativo e satisfatório.
A filosofia, enquanto forma de conhecimento (cujas especificidades já apontei em outras ocasiões e que retomo aqui em linhas gerais), deve estar a serviço da vida. Por ser crítica, a filosofia se propõe compreender radicalmente o mundo. Mas também constitui um sistema que fornece ao homem princípios na base dos quais ele orienta suas ações, seus comportamentos, suas práticas. O conhecimento filosófico, portanto, não se fecha em si mesmo, mas se apresenta ao homem como conhecimento-ação que lhe permite atuar critica e lucidamente sobre o mundo, com vistas a atender às suas necessidades que emergem da vida prática.
A filosofia instrumentaliza o homem para que ele transcenda o viver imediato, liberte-se do imediatismo da realidade empírica do cotidiano, enfrente a precariedade de sua condição como ser destinado, desde que chega ao mundo, a morrer (não sem ter de sofrer, muitas vezes, com enfermidades no auge de sua juventude, com a decrepitude, ou mesmo pela morte dos seus) e torne mais eficiente e significativa a sua práxis.
Não há filosofia que não expresse a vida humana, que não se ocupe de questões que tocam à existência humana. São os homens que fazem filosofia e é a eles que ela se dirige, é aos seus problemas, aos seus temores, às suas angústias, às suas tragédias, à sua insensatez, à sua natureza, etc. A filosofia – convém insistir – não é um conhecimento divorciado da vida.
Finalmente, é forçoso reconhecer que a ação sem o conhecimento é cega. O homem, a fim de agir no mundo, precisa saber, precisa conhecer sua estrutura e funcionamento. Quando consideramos as ações na dimensão da existência humana, devemos reconhecer também que essas ações são dotadas de sentido. A razão é também a faculdade que torna possível ao homem atribuir sentido ao mundo e às suas ações no mundo.
A filosofia, portanto, serve ao homem como uma atividade racional, investigativa e metódica que lhe permite por em questão o próprio sentido do mundo e da existência. Nas palavras de Luckesi & Passos (2012):



“(...) o ideal da filosofia não será, de modo algum, manifestar-se como uma forma inconsciente de compreender e orientar a ação; o seu objetivo, pelo contrário, é ser um modo consciente e crítico de pensar e direcionar a vida”.
(p. 79)



É a este propósito, qual seja, “o de pensar e direcionar a vida de modo consciente e crítico” que a filosofia serviu para Onfray, muito tempo depois de ter vivido os anos de terror no orfanato Giel. A filosofia é um antídoto contra os ressentidos e o ressentimento. É, como ensina Luc Ferry, uma forma de o homem “salvar sua própria pele”, com os recursos de que dispõe, pela força motriz de sua razão. Não se filosofa para lamentar, tampouco para fugir às frustrações, aos medos, às angústias. É justamente o contrário. Filosofa-se para, compreendendo as disposições contrárias do universo aos nossos anseios de felicidade, compreendendo a nossa impotência, as nossas limitações, enquanto seres mortais e finitos, compreendendo as nossas habilidades, possamos claramente determinar nosso raio de liberdade de ação e enfrentar, sem recorrer a subterfúgios consoladores, as dores e os sofrimentos que, ainda que muitos de nós prefiramos retocar com a maquiagem de nossas vãs esperanças, insistem em irromper das malhas finas da existência. Preferir a lucidez ao conforto, mesmo que aquela nos revele a miserabilidade, o terror, a tragédia, a ausência de sentido da existência, a verdade crua do sofrimento, a fluidez da felicidade, a fragilidade da vida, as incertezas do futuro, a conspiração inocente e aterrorizante da natureza, é, em suma, o caminho que escolhemos quando nos inclinamos à filosofia. 





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