A potência
filosófica de existir
Poder-se-ia apontar várias razões por
que uma pessoa decide dedicar-se aos estudos filosóficos. Embora possam ser
várias, algumas, talvez, se destaquem desse conjunto quantitativamente indefinível
por sua relação inextricável com experiências de vida, em que o psiquismo foi
profundamente abalado. Suponho que não sejam raros os filósofos que passaram a
filosofar e a conviver com o legado da tradição filosófica por força de traumas
que certos acontecimentos lhes provocaram na alma. A ideia de que a decisão
pela incursão nos estudos de filosofia e pelo exercício contínuo de filosofar
pode ser consequência de experiências traumatizantes e a de que o exercício mesmo
de filosofar é uma forma de responder ativa e racionalmente ao abalo dessas
experiências tomaram corpo em meu espírito, durante a leitura do prefácio da
obra A potência de existir (2012),
do filósofo francês contemporâneo Michel Onfray.
Donde
provém a eficácia da filosofia para nos sustentar na existência, mesmo depois
de termos experienciado os sofrimentos mais atrozes? Terá a filosofia o poder
de iluminar a escuridão de nossas dores, contribuindo para nos manter nesse
estado de “não-suicídio” (expressão que tomo a Luiz Gonzaga de Bem)?
A
fim de explorar essas questões, retomo aqui a leitura que fiz do prefácio do
livro A potência de existir (2012),
de Michel Onfray. Este livro constitui uma introdução à obra desse filósofo; é,
na verdade, uma síntese de seu pensamento filosófico. Sua filosofia é
confessadamente hedonista, antiplatônica e anticristã. Seu pensamento foi
forjado na esteira de Nietzsche e dos materialistas.
O
prefácio desse livro é destinado ao resgate de experiências, vividas entre os
dez e quatorze anos de idade, que marcaram a vida do autor profundamente.
Conta-nos Onfray que, no começo de sua adolescência, ele fora enviado pelos
pais para um orfanato administrado por padres salesianos (padres que pertencem
à Congregação de São Francisco de Sales, fundada em 1859, por São João Bosco,
para a formação da juventude). O que lá viveu foi não só determinante de sua entrega
aos estudos filosóficos, mas também da construção de sua visão de mundo
hedonista, antiplatônica e anticristã.
Era
1969, quando Onfray passou a viver, em regime de internato, no orfanato Giel –
um amálgama lexical que reúne as palavras “gelo” e “fel”. Embora tenha ido para
lá por arbítrio dos pais, o papel de sua mãe foi mais decisivo no destino que
sua vida tomaria. No orfanato Giel, Onfray passou quatro anos e conheceu o que
ele mesmo, sendo ateu, não hesitou em chamar de “inferno”. Esse “inferno” era
dirigido por padres cruéis, hipócritas, pedófilos, pederastas e infensos à
inteligência.
Sem
pretender me demorar na exposição desse episódio da vida do filósofo francês,
gostaria de oferecer ao leitor algumas amostras de sua narrativa desses tempos
idos que, embora tenham desencadeado seu interesse pela filosofia, não lhes
legou ressentimento ou sentimento de vingança. Ao invés de permitir que uma
revolta paralisante se aninhasse em sua alma, Onfray escolheu tomar o caminho
que o conduzisse a ampliar sua “potência de existir” (fórmula de que tomou
conhecimento pela pena de Espinosa). Onfray respondeu ao legado dessas
experiências por meio da prática filosófica, o que equivale a dizer por meio de
uma compreensão radical do mundo, de seu lugar no mundo e de si mesmo.
No
trecho a seguir, o autor lembra quem fora sua mãe e como era sua relação com
ela.
“Meu Deus, como ela deve ter
sofrido por não ter conseguido conter o ódio que lhe impingiram e que ela
devolvia ao mundo, sem discernimento, incapaz de poupar seu filho! O que pode
compreender uma criança com menos de dez anos dessa mecânica cega que envolve,
sem que eles queiram, esses atores descerebrados na loucura que os destrói? Uma
mãe bate em seu filho como uma telha cai do telhado; o vento não é culpado.
Depositando sua filha à porta de uma igreja, minha avó, de quem ignoro tudo,
contribui para os movimentos de todas essas infâncias postas sob o signo da
negatividade. A força cega que move os planetas conduz num mesmo movimento os
seres alimentados com essas energias negativas”.
(p. XV)
Por
ter compreendido ter sido sua mãe tão vítima quanto ele, o filósofo não a
culpa, já que todos os envolvidos eram atores submetidos a uma mecânica cega,
muito embora ele, Onfray, reconhecesse ter estado numa situação ainda mais
desfavorável, visto que “desempenhava um papel num palco cujas lógicas
ignorava” (ib.id.).
O
pai não dissuadiu a mãe de sua decisão. A natureza plácida, sua taxia que lhe
enrobustecia um espírito pacífico acomodou-lhe muito bem no papel de cúmplice.
Já
no orfanato, Onfray nos oferece suas primeiras impressões daquela atmosfera
marcada profundamente por violência, vigilância, disciplina castradora e abusos
sexuais.
“Não se escapa de uma prisão não
murada. A carne e a alma são vigiadas inclusive a distância, principalmente a
distância”.
(p. XVII)
Quando
os pais o deixaram, iniciava-se a história de seu fim. É sua existência que
seria, desde então, profundamente transformada, lavrada com o cinzel do
isolamento, da solidão, do abandono.
“A história do ser se escreve ali,
com essa tinta existencial e essa carne que se furta, esse corpo que registra
animalmente a solidão, o abandono, o isolamento, o fim do mundo. Arrancando dos
costumes, dos rituais, das fisionomias conhecidas, dos lugares íntimos, eu me
encontro sozinho no universo, experimentando o infinito pascaliano e a vertigem
que se segue. Vórtice da alma e dos humores...”. (p. XIX)
“Vórtice
da alma” – tal é o impacto causado por esse arrancamento prematuro de seu universo
familiar, para ser lançado num mundo hostil, sombrio e apavorante.
Era
o fim de Michel Onfray, que teve de lidar com o fato de sua subjetividade ser
reduzida a um número.
“Não serei mais que 490, um número
que reduz meu ser a esses algarismos. Normal, estou num orfanato, onde
abandonam as crianças, logo, elas devem se separar de seu nome próprio para se
tornarem um número numa lista. (...) Fui morto ali, naquele dia, naquele
momento. Pelo menos a criança em mim morreu e eu me tornei adulto
repentinamente. Mais nada me assusta desde então, não temo nada mais
devastador”.
(p. XX)
O
espírito salesiano – já o disse – não se agrada da inteligência. O sacerdócio
era oferecido aos que se deixavam moldar intelectualmente. Nessa atmosfera, os
livros atraíam desconfiança e o conhecimento produzia temor. O intelectual era
identificado como o verdadeiro inimigo. A culpa estava por toda parte. A
punição sobrevinha injustamente pelas mãos impiedosas do capricho e do arbítrio.
Nesse ambiente, até mesmo o estudo se desenvolvia sob a pressão do temor:
“A disciplina, os castigos, o
lícito, o ilícito, o bem, o mal, a falta, vivíamos em permanência nessa
atmosfera. O estudo também transcorre no temor: o mau resultado obtido, não por
falta de esforço, mas por falta de inteligência, também é submetido à lei da
nota semanal, depois punido”.
(p. XXXIV)
Um
dos casos de abuso sexual de que foi testemunha o filósofo envolveu um
salesiano encarregado da enfermaria. Conforme nos conta Onfray,
“Duas palavras também sobre o
salesiano encarregado da enfermaria, para onde ninguém corre, e com razão:
qualquer dorzinha de cabeça vale para quem o procura ter imediatamente a calça
abaixada e ser bolinado. Com as calças caídas sobre os sapatos, se protesta
observando que não é ali que dói, ouve em resposta que as complicações se
escondem em toda parte! Depois, o apalpador de sacos declara, indiferente, que
está na hora de voltar à sala de aula e paga tudo avarentamente com um
comprimido de aspirina. Fiquei com minhas dores de cabeça para mim...”.
(p.XXXIX)
Os
livros, a música, as artes e a filosofia – especialmente a filosofia – avivou-lhe
a força necessária para que pudesse suplantar o inimigo do passado, responsável
por confinar sua existência em relações íntimas com o medo e a opressão
“santa”.
“Para não morrer por causa dos
homens e da sua negatividade, houve para mim os livros, depois a música, enfim
as artes e sobretudo a filosofia. A escrita coroou o todo”.
(pp. XXXIX – XL)
Toda
produção intelectual do filósofo é consequência, conforme ele próprio nota, “de
uma operação de sobrevivência efetuada desde o orfanato” (ib.id.). Com
Espinosa, passou a expressar em seu pensamento filosófico a “potência de
existir”. Com as seguintes palavras, com que dá testemunho de sua sobriedade e
sabedoria, Onfray encerra sua visita ao passado salesiano:
“Sereno, sem ódio, ignorando o
desprezo, longe de todo desejo de vingança, ileso de qualquer rancor, informado
sobre a formidável potência das paixões tristes, não quero nada mais que a
cultura e a expansão dessa “potência de existir”.
(p. XL)
Ainda
não ataquei, propriamente, as questões anteriormente propostas; mas tão-só as
toquei de leve. A experiência relatada por Onfray ilustra a medida da relação
irrecusável, a quem quer que se dedique seriamente aos estudos filosóficos, da
filosofia com a vida. Não obstante, precisamos avaliar quais são as
características da filosofia que tornam-na um instrumento poderoso para
alimentar no homem a perseverança em existir cada vez mais.
Antes
de encetar nossa investigação, trago à cena as observações feitas por
Sponville, em seu Uma Educação
Filosófica (2001), sobre o que chama de estado de crise da
filosofia. Segundo o filósofo, a crise apresenta duas faces: uma deve ser
identificada com a modernidade, na qual se destaca o poder da mídia na formação
da opinião das massas, a qual insistentemente preenche o lugar da filosofia; a
outra, com a erudição que se manifesta mediante raciocínios vãos e divorciados
da vida real. Essa verborragia vazia a que se reduz a prática filosófica,
Sponville chama idealismo universitário.
Não admira que a disciplina seja tão pouco atraente aos estudantes. Ao se
dirigir à classe docente, confessa o filósofo francês:
“(...) muitas vezes, ao ouvi-los,
tenho a impressão de escutar uma filosofia morta, que não tenha a opor ao pedagogismo reinante nada mais que um filosofismo caduco e irrisório”.
(p. 139, ênfase no original)
Por
pedagogismo – preciso esclarecer -,
Sponville entende um sistema de ideias, atitudes e práticas que privilegia a
educação em prejuízo da instrução. Esse padagogismo carreia certo número de
forças – ideológicas, profissionais, sindicais – que estão intimamente ligadas
ao meio docente. Nesse sistema ideológico, reza-se que a escola seja
libertadora não só dos indivíduos, mas também da sociedade. Essa apregoada
libertação de que a escola deve ser promotora assume a forma de uma promessa de
prosperidade para a sociedade que tenha em seu horizonte o futuro e em seu
projeto a recusa à transmissão e à conservação do passado – função esta que,
segundo Sponville, deve ser imputada à escola. Nas palavras do autor,
“(...) cumpre lembrar que a escola
não é o lugar da invenção do futuro (que somente os cidadãos podem e devem
assumir), mas da conservação do passado na reprodução do presente”.
(p. 138)
Se
a escola tem, consoante pensa Sponville, uma função eminentemente conservadora,
não se segue daí que se deve confundir o projeto pedagógico conservador da instituição
escolar com o conservadorismo político. Do mesmo modo, não se deve tomar esse
projeto como um caminho para a consolidação de práticas reacionárias. Trata-se
senão de um compromisso com a conservação de um passado, de uma história, de um
patrimônio cultural, que é a própria história do desenvolvimento da cultura
ocidental.
Quando
se debruça sobre o conteúdo e a finalidade da filosofia, Sponville é enfático:
“a filosofia tem (...) fora de si mesma,
seu objeto (o real) e seu fim (a sabedoria)” (p. 140). Uma filosofia
apartada do real, divorciada da materialidade imanente ao mundo não passa de
uma verborragia enfadonha e despropositada. Como poderiam os jovens se sentir
atraídos por um discurso (logos) desconectado com a própria existência que o
torna possível? Esse logos se reduz, se não encarnado no real, a uma tagarelice
que beira à loucura – para parafrasear Sponville (p. 140).
Estando
a filosofia comprometida com o real, deverá ela responder aos anseios humanos;
e qual outro é tão facilmente universalizável quanto o anseio de felicidade?
Tendo em conta o fato de que a felicidade jamais estivera ausente do horizonte
humano, oportuno é lembrar a definição de filosofia dada por Epicuro: “a filosofia é uma atividade que, por
discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Mas não
devemos nos apressar em concluir que a filosofia por si mesma é suficiente para
nos conduzir à felicidade. Não percamos de vista o fato de que também a
felicidade e a possibilidade de sua fruição são colocadas como uma questão para
a filosofia. Ademais, a definição oferecida por Epicuro deve ser entendida à
luz de seu ensinamento ético, que propunha como finalidade a ataraxia (ausência
de perturbações). O homem feliz, para Epicuro, é o homem que eliminou a dor, o
sofrimento mental e físico; é o homem que se libertou do jugo de seus temores.
Somente o estado estável de prazer leva à felicidade. Deixemos, no entanto,
Epicuro, não sem reter a íntima relação entre filosofia e a vida vivida, para
retomar as considerações de Sponville.
Segundo
Sponville, o ensino de filosofia serve para dotar os estudantes de conhecimento
e instrução. Serve, ademais, para propiciar-lhes a experiência da alegria do
repouso na verdade (Espinosa).
Concentrando-se
na questão do ensino da filosofia, Sponville identifica os seguintes desafios à
prática do professor – que são os desafios de todo professor (não só de
filosofia) preocupado com o ensino de leitura e escrita. O primeiro desafio
consiste em enfrentar o estado de incultura dos alunos; o segundo, no
enfrentamento do domínio deficiente da língua escrita; o terceiro, em enfrentar
a desvalorização da abstração e do trabalho com conceitos; finalmente, o quarto
desafio repousa no enfrentamento do culto ingênuo das vivências, do imediatismo
e da espontaneidade.
A
rejeição a assumir esses desafios é desistir do esforço por evitar que a
filosofia se torne uma filodoxia,
conforme nota o autor:
“Os debates de opiniões
substituiriam então os estudos dos textos, a impaciência presunçosa dos falsos
saberes triunfaria sobre a paciência do conceito e a filosofia se apagaria,
enfim, diante da filodoxia”.
(p. 135)
Sempre
que nos ocorre perguntar-nos “o que é filosofia?”, não é sem-razão começar por
assumir o óbvio: não se filosofa senão
com palavras. Se preferirmos, com discursos. Mas não com
quaisquer palavras ou discursos, decerto. As palavras precisam designar ideias
gerais ou conceitos. Que a filosofia se faz pelo encadeamento de raciocínios é
lugar-comum, mas esses raciocínios devem nos guiar na busca da verdade
necessária e universal. A filosofia demanda um trabalho intelectual, rigoroso,
metódico, disciplinado. Ela é uma prática teórica, que visa a resultados gerais
ou universais. Como prática teórica, não é científica, porque não pode ser
logicamente demonstrada, como a matemática, nem empiricamente refutada (à
semelhança das ciências experimentais).
A
filosofia supõe um trabalho de transcendência realizado pelo próprio homem. O
seguinte passo de Sponville, colhido de sua obra A Filosofia (2005), ilumina-nos em que consiste este trabalho de
transcendência:
“Filosofar é pensar mais longe do
que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”.
(p. 20)
A
filosofia não só torna o homem consciente de seus limites, mas também o
estimula a ultrapassá-los. Ao que escreve Sponville, eu acrescentaria, fazendo
eco a tantos especialistas na área, que filosofar é também submeter ao exame e
convocar ao tribunal dos questionamentos, presidido pela razão, as opiniões, as
crenças e saberes correntes e cristalizados, que tomam a forma de verdades
“sagradas”, inabaláveis, intocáveis.
A
filosofia não é a única forma possível de conhecimento, evidentemente. A fim de
melhor compreender sua natureza, vamos confrontá-la com o que se costuma chamar
de senso-comum. Decerto, enquanto
empreendimento de uma razão crítica, a filosofia rejeita as ingenuidades e os
preconceitos típicos do senso-comum. Mas o que é o senso-comum?
Em
primeiro lugar, devemos reconhecer que ele ocupa um lugar privilegiado na vida
de qualquer um de nós, já que ele é o conhecimento imediato, espontâneo, vivido
que nos guia em nossas vivências diárias. Assim, podemos definir o senso-comum
como a forma de compreensão da realidade
imediata pelos indivíduos em suas experiências da cotidianidade. É um saber
coletivo que encerra opiniões, hábitos, crenças, superstições, formas de
pensamento, valores, ideologias de que se vão apropriando os indivíduos em
coletividade de modo acrítico. Essa forma de saber serve, como disse, para
orientá-los em suas vivências cotidianas. É o senso-comum que guia as suas
ações, as suas formas de perceber/compreender a realidade.
Quando
um indivíduo assume uma atitude
filosófica, ele, necessariamente, se compromete com a superação desse senso
comum, responsável por conformar maneiras de pensar e entender, por determinar
hábitos de pensamento. É preciso frisar: mesmo esse indivíduo imbuído de
atitude filosófica e, portanto, disposto a examinar toda sorte de opiniões e
representações do senso comum, que acaba por conservar uma grande maioria num
estado de compreensão superficial e empobrecida da realidade, não consegue
prescindir totalmente do senso-comum, dada a sua natureza utilitária, visto que
serve para orientá-lo nas suas vivências ordinárias.
O
pensamento filosófico surge da urgência de questionar as verdades do
senso-comum, por isso não pode prescindir dele. Para o que me interessa, é
preciso ficar claro que o senso-comum é uma forma de conhecimento superficial,
porque não atinge os fundamentos ou as raízes da realidade; assistemático,
porque desprovido de organização e coerência internas; não-metódico, já que o
seu desenvolvimento não se dá por etapas predeterminadas, mas segundo as
necessidades emergentes das circunstâncias. Para o senso-comum, o poder da
tradição é determinante para a manutenção de certas formas de agir e saber.
Vale o conhecimento que se demonstrou útil ou eficaz no passado. Segundo a lógica do senso-comum, as ações, os
comportamentos e os conhecimentos
assumidos no presente se justificam com base em sua eficácia ou valor fixados
pelas gerações precedentes. Consoante observam Luckesi e Passos (2012):
“O senso comum não está preocupado
com as incoerências de suas partes, e muito menos se esse entendimento é válido
aqui e acolá ou se só aqui ou só acolá. Sabe que, aqui e agora, nesse momento
prático, ele é útil, o depois... e o acolá... do conhecimento são dimensões que
não cabem no seu horizonte”.
(p. 38)
O
homem acostumado ao labor filosófico busca prevenir-se contra as ilusões que
lhes são inculcadas por força de sua socialização. O leitor de Schopenhauer,
por exemplo, tendo-o em conta, não descuidará do fato de que a faculdade de
deliberação no homem está entre as coisas que mais acarretam dor à sua
existência. As dores que experimentamos, muitas vezes, têm sua origem em noções
abstratas, em pensamentos que a própria racionalidade fabrica. Se a lucidez no
homem pode ser fonte de sofrimentos, a razão também lhe permite ponderar sobre
esses sofrimentos e suas consequências. No homem, a faculdade de deliberação é
indissociável da faculdade de abstração, de sorte que o próprio comportamento
deliberativo no homem se determina por representações abstratas.
Gostaria,
doravante, de situar minhas reflexões sobre o valor da filosofia no domínio da
urgência de diversão. A filosofia se nos apresenta como um espaço dialógico de
resistência à necessidade alienante de “di-vertimento”. Do latim “de-vertere”, diversão significa
“desviar a atenção para outro lado”. Pascal entendia a diversão como uma
atividade em que o homem se ocupa para evitar defrontar-se com o seu vazio
existencial, com sua insignificância num universo infinito, cego e indiferente.
Tudo de que se ocupa o homem, desde o exercício de sua profissão, passando
pelas atividades políticas, negócios, até o hábito de se deixar estar por
longas horas a navegar pela internet pode ser definido, segundo a perspectiva
de Pascal, como “di-versão”.
Não
só Pascal vem em socorro da ideia de que a filosofia, não negando ao homem os
prazeres da diversão, ilumina-lhes o caminho para que se liberte de sua
tirania, mas também Kierkegaard e Heidegger. Este último, que também se
preocupou com a existência concreta do homem no mundo, estava consciente do
fato de que o Dasein do cotidiano (o impessoal) é o homem que se diverte como todo
mundo se diverte, que vê e julga como todo mundo, que considera escandaloso o
que se comumente considera um escândalo. Para Heidegger, o homem imerso na
impessoalidade habituou-se a reproduzir formas homogêneas de pensamento. Seus
di-vertimentos também são produtos de hábitos determinados por sua sociedade.
Esse homem tende a abordar os problemas de relevância social, cultural,
política, histórica, universal segundo os modelos engessados de opinião
estabelecida.
A
respeito desse homem conformado à cotidianidade e moldado às formas de
di-vertimento padronizadas em sua sociedade, mas também prisioneiro dos
estímulos sensoriais provenientes da exterioridade, que o faz desarrancar-se de
si, Melendo, em Iniciação à Filosofia –
Razão, Fé e Verdade (2005), nota:
“(...) justamente entre estes
últimos o domínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados
comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com mais ênfase. E isso
impressiona sobremaneira, porquanto vai acompanhado da ingênua certeza de estar
desafiando uma sociedade que, de fato, sem que eles o saibam, submete-os às
suas leis (...) às regras de consumo, aos jogos de poder, ao status quo estabelecido”.
(p. 35)
O
homem que vive anonimamente no fluxo das massas tende a entreter-se com
palavreados, com notícias e debates oferecidos superficialmente pelos meios de
comunicação de massa. As palavras de que se serve comunicam conteúdos em torno
dos quais se estabeleceu um domesticado consenso. Esses conteúdos são
agastadamente reproduzidos. Para ele, a realidade está toda ela revelada e
apreendida nesses conteúdos. Os temas de que se ocupa são esvaziados de sua
importância e tendem a ser enfocados de uma perspectiva predominantemente
subjetiva, valorativa e estreita.
Em
suma, o bombardeamento de informações desconectadas de seus contextos reais de
existência, o excesso de estímulos sensoriais a que esse homem está suscetível
desencorajam-no de imergir no sentido profundo dos acontecimentos e das
ocorrências do real.
Antes
de me deter a considerar a lição de Kierkegaard sobre a existência concreta do
homem – lição que nos ajudará também a compreender o valor da filosofia, quando
a consideramos como uma prática discursiva que responde às necessidades vitais
do ser humano, quero me demorar um pouco na exposição do aspecto impessoal da
natureza do Dasein, segundo Heidegger.
Das Man (o
impessoal) é o conceito cunhado por Heidegger para designar os aspectos de nossas
vidas que são comuns e que se situam na esfera do anonimato. Esse conceito recobre
as vivências dos indivíduos em nossas sociedades de massas, nas quais eles não
se distinguem uns dos outros. Mas Heidegger argumenta que o “eu” é sempre
impessoal e que não pode ser concebido como substância. Isso não o impede de
distinguir um “eu” autêntico do “si-mesmo-impessoal”. Esse eu será cada vez
mais autêntico quanto mais capaz de se distanciar das multidões.
Heidegger,
no entanto, nega que seja possível ao “eu” ser univocamente autêntico. O eu do
Dasein cotidiano é o “si-mesmo-impessoal”. Para esse “si-mesmo-impessoal” a
existência não se apresenta como um problema sobre o qual ele deve se debruçar.
De
minha parte, considerando-se a filosofia em sua relação dialética com o
“si-mesmo-impessoal”, ela se lhe apresenta como um caminho íngreme através do
qual pode superar o conformismo, a apatia, o imediatismo das vivências
ordinárias.
Kierkegaard
também se ocupou da reflexão sobre o homem individual no mundo. Nesse sentido,
ele se opõe às filosofias que tenderam a negligenciar a dimensão individual da
existência humana, como, por exemplo, as de Spinoza, Hegel e Marx. Para os
meus propósitos, considerarei os dois tipos de homem identificados e definidos
por Kierkegaard, quais sejam, o homem
normal e o homem autêntico.
O
homem normal, também chamado por
Kierkegaard de filisteu, é o homem que exibe uma “neurose normal”. É o homem
que não se diferencia da multidão de que toma parte sua existência cotidiana, cirurgicamente
moldada pelos padrões de sua sociedade e cultura. Esse tipo de homem receia
arriscar-se; evita defender seus significados, preferindo a imitação de
modelos, preferindo perder-se na insignificância da multidão.
Esse
homem sente-se bem acomodado ao mundo. O mundo é para ele como um lar onde suas
práticas e pensamentos se deixam domesticar. Ele vive no circuito rotineiro de
suas obrigações e se confunde com os deveres sociais.
O
filisteu, em Kierkegaard, é este homem acomodado numa existência que,
raramente, reclama-lhe indagações. Ele conserva-se na crença de que o
equilíbrio de sua existência deve ser mantido com vivências que se seguem às
vivências “normais” da coletividade. Ele se tranqüiliza com o trivial. Receia
enfrentar sua precária condição humana.
O
homem autêntico, por outro lado,
desafia sua própria fraqueza. É criador de si mesmo. Não teme defender seus
significados, suas visões de mundo, mesmo que isso lhe custe dissensões na
sociabilidade e um relativo isolamento. Não se posiciona em face do social como
um sofredor estéril ou um sonhador que prefere esconder-se. Ele imerge visceralmente
na existência, sem receio de enfrentar, em algum momento, seu absurdo.
Esse
é o homem deslocado socialmente, que resiste às formas de adaptação das massas
à engrenagem social. Autônomo, porque rejeita a heteronomia. Porque não delega
a outros atores sociais o trabalho de pensar e decidir em seu lugar. Esse homem
é atravessado, penetrado pela inquietude intelectual.
O
homem que abdica de viver sob a luz de seu espírito crítico busca, por esse
estratagema, escapar à angústia legada por sua própria condição humana. Ele
vive num estado de embaçamento, no tocante à compreensão de sua condição. Vive
confinado a hábitos de existência que lhes estorvam as percepções da realidade.
A
angústia a que me refiro envolve a percepção do homem de sua condição de
criatura. A angústia resulta da consciência de que, embora seja uma espécie de
animal, o ser humano é cônscio de sua finitude. A angústia envolve um terror,
tão bem caracterizado por Becker, em A
negação da morte: uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012):
“(...) ter surgido do nada, ter um
nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante
ânsia pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de tudo isso, morrer”.
(p. 116)
Filosofar é aprender a viver
Encaminhando
estas reflexões a um desfecho que, não encerrando a problemática em torno do
valor da filosofia e das razões por que o homem a ela se entrega, possa
satisfazer os objetivos aqui perseguidos, volvo olhares sobre a filosofia como
uma forma de conhecimento indissociável da vida prática.
Proponho
que tomemos a seguinte questão: por que conhecemos? Em outros termos,
por que o homem produz conhecimento? A resposta salta evidente: para
sobreviver. Para que o homem possa orientar sua vida no mundo, ele precisa
conhecer esse mundo. O conhecimento ilumina sua práxis. Não nego que o
conhecimento possa servir a outros propósitos, certamente pouco apreciáveis ou
mesmo execráveis. Mas, sem conhecer o mundo em que vive, o homem viveria em um
eterno estado de escuridão, que o impediria de nele atuar de modo significativo
e satisfatório.
A
filosofia, enquanto forma de conhecimento (cujas especificidades já apontei em
outras ocasiões e que retomo aqui em linhas gerais), deve estar a serviço da
vida. Por ser crítica, a filosofia se propõe compreender radicalmente o mundo.
Mas também constitui um sistema que fornece ao homem princípios na base dos
quais ele orienta suas ações, seus comportamentos, suas práticas. O
conhecimento filosófico, portanto, não se fecha em si mesmo, mas se apresenta
ao homem como conhecimento-ação que lhe permite atuar critica e lucidamente
sobre o mundo, com vistas a atender às suas necessidades que emergem da vida
prática.
A
filosofia instrumentaliza o homem para que ele transcenda o viver imediato, liberte-se
do imediatismo da realidade empírica do cotidiano, enfrente a precariedade de
sua condição como ser destinado, desde que chega ao mundo, a morrer (não sem
ter de sofrer, muitas vezes, com enfermidades no auge de sua juventude, com a
decrepitude, ou mesmo pela morte dos seus) e torne mais eficiente e
significativa a sua práxis.
Não
há filosofia que não expresse a vida humana, que não se ocupe de questões que
tocam à existência humana. São os homens que fazem filosofia e é a eles que ela
se dirige, é aos seus problemas, aos seus temores, às suas angústias, às suas
tragédias, à sua insensatez, à sua natureza, etc. A filosofia – convém insistir
– não é um conhecimento divorciado da
vida.
Finalmente,
é forçoso reconhecer que a ação sem o conhecimento é cega. O homem, a fim de
agir no mundo, precisa saber, precisa conhecer sua estrutura e funcionamento.
Quando consideramos as ações na dimensão da existência humana, devemos
reconhecer também que essas ações são dotadas de sentido. A razão é também a
faculdade que torna possível ao homem atribuir sentido ao mundo e às suas ações
no mundo.
A
filosofia, portanto, serve ao homem como uma atividade racional, investigativa
e metódica que lhe permite por em questão o próprio sentido do mundo e da existência.
Nas palavras de Luckesi & Passos (2012):
“(...) o ideal da filosofia não
será, de modo algum, manifestar-se como uma forma inconsciente de compreender e
orientar a ação; o seu objetivo, pelo contrário, é ser um modo consciente e
crítico de pensar e direcionar a vida”.
(p. 79)
É
a este propósito, qual seja, “o de pensar e direcionar a vida de modo
consciente e crítico” que a filosofia serviu para Onfray, muito tempo depois de
ter vivido os anos de terror no orfanato Giel. A filosofia é um antídoto contra
os ressentidos e o ressentimento. É, como ensina Luc Ferry, uma forma de o
homem “salvar sua própria pele”, com os recursos de que dispõe, pela força
motriz de sua razão. Não se filosofa para lamentar, tampouco para fugir às
frustrações, aos medos, às angústias. É justamente o contrário. Filosofa-se
para, compreendendo as disposições contrárias do universo aos nossos anseios de
felicidade, compreendendo a nossa impotência, as nossas limitações, enquanto
seres mortais e finitos, compreendendo as nossas habilidades, possamos
claramente determinar nosso raio de liberdade de ação e enfrentar, sem recorrer
a subterfúgios consoladores, as dores e os sofrimentos que, ainda que muitos de
nós prefiramos retocar com a maquiagem de nossas vãs esperanças, insistem em
irromper das malhas finas da existência. Preferir a lucidez ao conforto, mesmo
que aquela nos revele a miserabilidade, o terror, a tragédia, a ausência de
sentido da existência, a verdade crua do sofrimento, a fluidez da felicidade, a
fragilidade da vida, as incertezas do futuro, a conspiração inocente e
aterrorizante da natureza, é, em suma, o caminho que escolhemos quando nos
inclinamos à filosofia.
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