Interpretar e
compreender
Um quadro representativo da
leitura
Este texto é minha contribuição para a
compreensão do que está em jogo em todo processo de leitura. Ler é uma atividade linguístico-cognitiva de
produção de sentidos. Este texto consiste num ensaio sobre as duas
macroatividades pressupostas em toda atividade de leitura, quais sejam, a interpretação e a compreensão. Como seja um ensaio, este texto não pretende,
evidentemente, dar conta da complexidade do processo de leitura. Um dos meus
objetivos é antes suscitar questões do que resolvê-las; no entanto, estou
interessado em fornecer um quadro representativo de como o leitor opera ou pode
operar quando, no momento mesmo em que lê o texto, busca interpretá-lo e
compreender. A leitura é um trabalho sociocognitivo e linguístico de
interpretação/compreensão, no qual está envolvido um conjunto de atividades e
estratégias de ordem cognitiva e metacognitiva, bem como competências e
habilidades diversas. Não tenciono dar conta de todo esse aparato de recursos
cognitivos, é claro; mas mencionarei alguns deles.
Embora
eu vá definir e desenvolver, adiante, as atividades de interpretação e compreensão
separadamente, não suponho que essas atividades sejam estanques ou que uma
preceda à outra. Na verdade, quero que o leitor tenha em mente que a
compreensão acompanha, ou melhor, está implicada no próprio processo de
interpretação, de modo que interpretar é
pôr em curso a compreensão, é desenvolver a compreensão. Durante o processo
de interpretação, o leitor está operando sucessivas etapas compreensivas. Uma
imagem pode nos ajudar a compreender como se relacionam interpretação e
compreensão. As etapas compreensivas equivaleriam a cada ponto dado num tecido
durante a atividade de costura. Cada vez que uma parte do tecido danificado é
restaurada com o traspassar da agulha e da linha a ela presa constitui uma
etapa de compreensão. Essa imagem sugere a necessidade de supormos uma compreensão global do texto, mas nunca
uma compreensão cabal. Tendo em vista o exposto, considero que interpretar é analisar; e compreender é operar sínteses.
Algumas palavras sobre leitura
Os
estudos linguísticos que se ocupam das questões sobre leitura nos ensinam que a
leitura é uma atividade complexa durante a qual o leitor mobiliza uma série
vasta de competências e estratégias, na busca por construir um sentido (dentre
os muitos possíveis) para o texto. Há especialistas que sustentam que o ato de
leitura é um ato individual, no qual estão envolvidos os objetivos, os
sentimentos e as expectativas do indivíduo leitor. No entanto, esse leitor é um
sujeito social que lê, de sorte que, ao interagir com o texto durante a prática
da leitura, está interagindo com toda uma comunidade de fala ou uma comunidade sociodiscursiva
imaginária e representada no texto. Compreendamos melhor esta noção. É consenso
entre os estudiosos de Linguística Textual que, no processo de produção de
sentidos (leitura), o leitor interage com o texto e com o autor. A leitura
pressupõe, assim, essa interação entre leitor, texto e autor. No entanto, tanto
o leitor quanto o autor são sujeitos sociais que pertencem a uma comunidade
sociodiscursiva, que é evocada e representada tanto no momento em que o autor
produz seu texto (a uma comunidade que fala através dele) quanto no momento em
que o leitor “lê” o texto (há uma comunidade que lê com ele). Não estou
interessado aqui em evocar a problemática em torno da noção de autor. Essa
questão já foi tangenciada em outros textos meus. Para os meus propósitos,
apelo para o senso comum e entendo o autor como o ser responsável pela produção
do texto escrito, pela garantia de sua coerência; é ele quem responde por seus
escritos; é ele que é alvo de censura e a quem deve assinar suas obras. Note-se,
de passagem, que Barthes (1968) declarou “a morte do autor”. O autor não é uma
pessoa, é uma função-autor (Foucault). Disse, no entanto, que não me deterei
nessa problemática.
Reformulando
a noção de leitura, por ela entendo um
processo sociocognitivo-interacional de produção de sentidos. Emprego o
termo leitura pressupondo como objeto dessa atividade o texto escrito; no
entanto, é possível ler outras coisas que não textos (gestos, obras de arte,
uma situação, a mão, etc.). Recuperando aqui a voz de Paulo Freire, antes de
ler um texto, lemos o mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra
escrita.
Antes
de prosseguir, gostaria de definir o conceito de cognição. Por cognição entendo um conjunto de processos e atividades mentais (que envolvem atenção,
memória, raciocínio, sentimentos, imaginação) assentado numa base de linguagem,
que são mobilizados na busca da aquisição, transformação e aplicação do
conhecimento. Todo texto é forma de cognição social (Koch, 2004).
Disse,
anteriormente, que, no processo de leitura, que pressupõe interpretação e
compreensão, estão envolvidos conhecimentos, habilidades, estratégias de ordem
vária. Também aí se deve incluir os objetivos, os interesses e sentimentos do
leitor. Alguns dos conhecimentos envolvidos são o conhecimento linguístico, o
conhecimento prévio sobre o assunto do texto, conhecimento de mundo,
conhecimento sobre outros textos com que o texto que é objeto de leitura mantém
relações (intertextualidade), conhecimento sobre tipos e/ou gêneros textuais,
etc. É importante dizer que cada gênero textual (poema, artigo de opinião,
crônica, romance, artigo científico, carta pessoal, carta oficial, etc.) demandará
habilidades e estratégias diferentes de leitura. Não lemos um poema do mesmo
modo como lemos um artigo de jornal, por exemplo. Também as expectativas do
leitor serão diferentes num e noutro caso. Diante de um poema, o leitor busca
entendimento e fruição estética, ao passo que, diante de um artigo
jornalístico, o leitor busca basicamente conhecer a opinião do jornalista sobre
um tema de relevância sociocultural, política ou econômica, embora o
entendimento esteja, é claro, aí envolvido. No entanto, um artigo jornalístico
não cumpre a função de provocar uma emoção estética no leitor. E o leitor
reconhece e espera isso.
Dois
tipos de estratégias devem ser consideradas no processo de produção de leitura:
estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas. As estratégias cognitivas orientam os
comportamentos automatizados, quase inconscientes do leitor no processo de
leitura e servem à construção da coerência local do texto. As estratégias metacognitivas, a seu
turno, dizem respeito ao estabelecimento de objetivos na leitura. É a
capacidade pela qual o leitor controla e regula o próprio conhecimento. As
estratégias metacognitivas recobrem o estabelecimento
de objetivos e a formulação de
hipóteses, visto que são atividades em que está implicada a reflexão e o
controle consciente sobre o próprio conhecimento, sobre o próprio trabalho
interpretativo e sobre a própria capacidade de estabelecer objetivos e formular
hipóteses. Por exemplo, um médico que lê artigos científicos especializados em
sua área de atuação o faz segundo objetivos previamente determinados. Se ele é
um cardiologista, pode estar interessado em conhecer novas formas de tratar
doenças cardiovasculares, para o que ele buscará artigos que tratem do assunto.
A
formulação de hipóteses está na base do processo de interpretação/compreensão
de todo ato de linguagem. Charaudeau (2010) observa que toda interpretação é
uma suposição de intenção. Em toda e qualquer atividade linguística, os
interactantes estão a cada instante elaborando hipóteses sobre os saberes uns
dos outros. Situada na prática de leitura, a elaboração de hipóteses pelo
leitor supõe uma atividade durante a qual ele vai elaborando e testando
hipóteses à proporção que faz avançar a leitura do texto.
Há
outras estratégias envolvidas no processo de produção de sentidos; mas delas
não me ocuparei aqui.
Cumpre
notar, por fim, que, basicamente, o leitor, no momento mesmo da leitura, opera
com seu conhecimento de mundo, o qual envolve saberes sobre o mundo, quer
adquiridos em processos de educação formal, quer adquiridos nas experiências
vividas cotidianamente em sociedade. Seu conhecimento de mundo, como seja de
ordem geral, inclui também saberes de ordem intertextual, de modo que suas
experiências de leitura prévias, estruturadas em sua memória em forma de
conhecimento, são ativadas por ocasião do processo de interpretação e
compreensão textual. Por conseguinte, quanto mais leituras prévias acumulamos
sobre um dado tema mais fácil se torna o processo de compreensão do texto. Quanto mais se lê melhor se lê. A
leitura é, portanto, um trabalho orientado para o texto que, não se limitando
ao texto, mobiliza uma série de conhecimentos, crenças, ideologias e valores
exteriores ao texto. O movimento de leitura vai do texto para o exterior do
texto. O exterior compreende o que se pode chamar de contexto sociocognitivo, o qual compreende diversas formas de
conhecimentos armazenados na memória do leitor e que são ativados por ocasião
do processo de leitura. Entre essas formas de conhecimento estão o conhecimento
de mundo (ou enciclopédico), o conhecimento linguístico, o conhecimento
sociointeracional (relativo a tipos de atos de fala, aos propósitos visados
pelo produtor do texto, à variedade linguística empregada, a normas
socioculturais de interação linguística, etc), o conhecimento procedural (que
compreende os procedimentos pelos quais as demais formas de conhecimento são
ativadas pelo leitor no momento da leitura), etc.
No
tocante ao conhecimento de mundo, é importante reter que ele é suposto como
partilhado entre leitor e produtor do texto. O sucesso do leitor no processo de
interpretação e compreensão textual depende de que uma grande parcela desse
conhecimento de mundo seja partilhada com o autor. Embora os conhecimentos de
mundo do leitor e do autor nunca correspondam totalmente, o sucesso do leitor
depende de que uma grande quantidade desse conhecimento seja partilhada com aquele.
O produtor do texto, por ocasião da atividade de escrita (para ficar nesse
domínio estrito), supõe partilhada com o leitor uma série de conhecimentos
sobre o mundo; o produtor constrói, assim, uma imagem-leitor. Também o leitor
constrói uma imagem-autor e será tanto mais bem sucedido quanto mais
conhecimento de mundo partilhar com o produtor do texto, no momento da leitura.
Portanto, falar em conhecimento de mundo é falar em conhecimento de mundo compartilhado.
Interpretar
e compreender: o processo de leitura
No
processo de interpretação, estão envolvidos conhecimentos, estratégias e
habilidades que são mobilizados nessa circunstância pelo leitor. Uma atividade
básica em todo processo de interpretação é a produção de inferências. Por isso,
entendo por interpretação o processo
de produção de inferências com base em nosso conhecimento de mundo. A
interpretação é o processo pelo qual o leitor, mobilizando seu conhecimento de
mundo, estabelece relações não explícitas entre trechos do texto ou entre
segmentos do texto e os conhecimentos prévios armazenados em sua memória e
necessários à compreensão. A interpretação tem como atividade básica, portanto,
a inferenciação, ou seja, a produção de inferências.
Evidentemente, a elaboração de hipóteses também faz parte da interpretação.
Interpretar é operar uma análise complexa, para a qual são mobilizados
conhecimentos, crenças, estratégias e habilidades variados.
A
compreensão é o ponto final do processo de interpretação. Nesse caso, devemos
falar em uma compreensão global.
Silva (2011), em O Ato de ler –
fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da Leitura, sustenta que
ler é compreender (em primeiro lugar, compreender o mundo), ou seja, a
compreensão inclui a interpretação. Em outras palavras, para Silva, na
compreensão, está implícita a interpretação. A interpretação é constitutiva da
compreensão. A compreensão desvela o que estava oculto; a interpretação supõe a presença diante de nós de algo cuja
natureza ou estrutura deve ser compreendida. Refiro as palavras oportunas de
Silva sobre como devemos entender o significado:
“(...) aquilo que é compreendido não
é o significado, tomado no seu sentido bem estrito (significado de livro, ou de
qualquer outro objeto). Significado é
aquilo que se mantém oculto e que se desvela apenas pela inteligibilidade.
(...) o significado não está nas coisas
e nos objetos, nem nas palavras e nas proposições, mas constitui uma possibilidade de desvelamento, de atribuição, que é
característico do Ser-do-Homem. O
significado é a possibilidade que algo possui de tornar-se visível como algo
que é.
(p. 34)
Em
negrito, destaquei as ideias que nos ajudam a compreender esta passagem de
Silva: a primeira diz respeito ao fato de o significado não estar diretamente
acessível, mas oculto; a segundo diz respeito ao fato de ele só ser desvelado pela
inteligibilidade; a terceira se refere ao fato de ele não estar localizado nas
coisas ou nas palavras; a quarta diz respeito ao fato de ele ser virtualidade
de desvelamento, ou seja, de ser ele a possibilidade de ser desvelado, de ser
atribuído, de tornar algo visível ao entendimento humano como algo que é. O
significado, segundo essa última ideia, é o que torna possível a revelação do
ser das coisas. Mas somente o ser humano
é capaz de “adivinhar” o significado, ou seja, de significar. Significar para o
ser humano é desvelar o ser das coisas. O significado é a condição necessária para que as coisas se mostrem tal como são. É o
leitor que atribui significados ao objeto de leitura.
De
minha parte, entendo que a compreensão é constitutiva da interpretação. No
processo de interpretação, está envolvida a compreensão. A compreensão consiste
numa síntese cognitiva a que chega o leitor ao cabo do processo de
interpretação. Enquanto a interpretação é o movimento cognitivo que implica um
complexo trabalho de produção de inferências e mobilização de saberes e
estratégias, a compreensão é o resultado cognitivo desse complexo trabalho.
No
entanto, como mencionei anteriormente, no processo de interpretação, o leitor
opera sucessivas etapas de compreensão. Isso me parece claro quando
consideramos a extensão do texto. Quanto maior for o texto mais etapas de
compreensão ocorrerão ao longo do processo de interpretação. Sugerir que a
compreensão se dê por etapas não exclui o atingimento necessário de uma
compreensão global. A compreensão global é, portanto, o ponto final do processo
de interpretação. Em face da interpretação, a compreensão se coloca como meta a
que visa o leitor. Logicamente, quem quer que pretenda interpretar alguma coisa
visa a compreender essa coisa. Na interpretação, a compreensão é o objetivo
final.
O
que é compreender na prática?
Penso
que a compreensão pode organizar-se em três etapas fundamentais:
1a
etapa – identificar a ideia central do texto;
2a
etapa – estabelecer uma hierarquização entre as ideias do texto;
3a
etapa – reelaborar (por paráfrase) o significado do texto.
A fim
de ilustrar de que modo o leitor pode operar no sentido de compreender um
texto, segundo o esquema oferecido, proponho que consideremos os dois trechos
que se seguirão, colhidos do livro Existencialismo
(2013). O primeiro trecho que se segue
abaixo tem como tópico a fórmula de Sartre “no homem a existência precede a
essência” :
“(...) a existência do ente precede
a essência (...) simplesmente significa que os entes humanos não têm alma,
natureza, eu ou essência que os façam o que são. Nós, simplesmente, somos, sem
quaisquer restrições que nos façam existir de qualquer modo particular, e
somente mais tarde viemos conferir à nossa existência qualquer essência”.
(p. 83)
Ideia central – primeiro o ser humano existe para depois conferir a si
uma essência.
Identificada
a ideia central, o leitor poderá elencar, sem, necessariamente, estabelecer,
neste momento, uma hierarquização de ideias, as demais ideias que constam do
texto. Poderá identificá-las atentando para a sequência em que aparecem no
texto. Também poderá parafrasear as partes do texto identificadas.
Ideia 2 – o ser humano não tem uma natureza que o define previamente à existência;
Ideia 3 – Não
há restrições que definem quem somos.
A
atividade de parafrasear é constitutiva do próprio processo de compreensão. A
hierarquização das ideias compreende a sequência: ideia central, ideia 2 e
ideia 3. É importante atentar para o fato de que, embora pretenda o autor que o
segmento que vem depois de “significa que” explique o significado de “a
existência precede a essência”, parece claro que seu significado é mais bem
explicado no último enunciado do texto, que reelaboramos como ideia central. Ou
seja, com base na ideia central, a fórmula “a existência precede a essência”
significa que o homem, primeiramente, existe para depois definir para si uma
essência. Tanto a ideia central quanto a segunda ideia encaminham a conclusão
de que o ser humano é livre para escolher quem quer ser (já que nada que lhe
seja exterior ou prévio à sua existência lhe fixa limites ao seu ser).
Durante
o processo de interpretação que visa à compreensão, algumas questões deverão ser
formuladas pelo leitor. Por exemplo, Sartre pensa gozar o homem de liberdade
absoluta ou irrestrita? Sartre não supervaloriza a liberdade no homem? Será que
ele está sugerindo que a essência do homem é a liberdade? Essas são algumas das
questões que o leitor pode formular e cujas respostas tentará obter ao longo da
leitura (supondo-se a continuação do texto).
Veja-se
o próximo trecho:
“A liberdade humana precede a
essência do ente humano e a torna possível; a essência do ente humano está
suspensa em sua liberdade. O que chamamos de liberdade é impossível de
distinguir do ser da “realidade humana”. O ente humano não existe primeiro a
fim de ser subsequentemente livre, não existe diferença entre o ser do ente
humano e o seu ser livre”.
(p. 86)
Este
trecho foi colhido da obra O ser e o Nada
do próprio Sartre e oferecido pelo autor de Existencialismo
(2013).
Ideia central – A liberdade humana é anterior à essência do
ente humano;
Ideia 2 – A liberdade torna possível a essência
do ente humano;
Ideia 3 – A liberdade não se distingue da
“realidade humana”;
Ideia 4 – A existência não precede à
liberdade humana;
Ideia 5 – O ser do ente humano não difere
do seu ser livre.
O tópico discursivo é a liberdade humana. Note-se que, na ideia central, Sartre declara que a liberdade, agora, precede à essência humana. Então, primeiro o homem é livre. A liberdade é condição sui generis do homem, graças à qual ele pode escolher a sua essência. É o que nos ensina na segunda ideia. A liberdade do homem permite a ele definir uma essência para si. A terceira ideia sugere que a liberdade e a condição humana são a mesma coisa. Uso o termo “condição humana” como equivalente à realidade humana. No entanto, penso que por realidade humana, Sartre entende o modo de existir que é inerente ao homem. Esse modo consiste em ser livre. Por isso, ser humano e ser livre são uma mesma coisa. A quarta ideia nos diz que o homem não existe primeiro para então ser livre. Logo, existir para o homem é ser livre. Isso é confirmado na última ideia, em que Sartre diz que o ser do ente humano é ser livre, ou seja, não há diferença entre ser humano e ser livre.
Alguns
comentadores de Sartre sugerem que a essência humana, em Sartre, é a própria
liberdade. No entanto, o próprio Sartre diz que a liberdade “torna possível a
essência do ente humano”, do que se conclui que a essência é outra coisa que
não a liberdade. Por outro lado, ele mesmo diz não ser possível traçar uma
distinção entre a liberdade e o ser da realidade humana. Se Sartre entende por
“ser” a essência e por “realidade humana” o modo de existir próprio do homem, a
interpretação segundo a qual “a essência do homem é a liberdade” se torna
lícita, não obstante Sartre dizer que a liberdade precede à essência. Nesse
caso, não se deve responsabilizar o leitor, mas o próprio Sartre que não parece
ter-se esforçado por buscar a clareza na exposição de suas ideias.
Seja
como for, uma ideia é clara: segundo Sartre, não há existência para o homem que
não suponha sua liberdade. Existir para o
homem é ser livre. Creio que esse último enunciado sintetiza bem a
compreensão do referido trecho de Sartre. Mas insisto em que a compreensão é
sempre um trabalho em cujo desenvolvimento se abrirão lacunas ou caminhos para
novos sentidos. Pode-se alcançar – e é necessário que assim se faça – uma
compreensão global do texto, mas nunca uma compreensão definitiva que aprisiona
o sentido. Vale sempre a lição: os
sentidos são múltiplos e tomam direções diversas.
O
leitor alcança a compreensão global quando é capaz, ao final, de reelaborar com
suas próprias palavras o sentido atribuído ao texto. Evidentemente, esse
sentido não pode ser qualquer um; mas tem de estar previsto pelo texto. Tem de
estar entre os sentidos potenciais do projeto de dizer do produtor do texto,
ainda que de todos os sentidos possíveis o produtor não esteja nem consciente
nem sobre o controle.
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