A tábua do sofrimento
Um caminho de retorno a Deus
Por que escrevo? Porque preciso pôr
alguma ordem às ideias, porque preciso disciplinar o pensamento. Para que
escrevo? Para me entreter. Escrever é entreter-me. Nada espero de minha
escrita. Sou apenas mais um numa multidão de blogueiros. Não sou um autor; sou
apenas o agente de minha escrita, mas não o senhor dela; há um Outro que fala
através de mim, que escreve comigo. Sou um sujeito e, como tal, constituído
pela ideologia.
Do exposto, é forçoso depreender-se
que não levo a sério este trabalho com as palavras. Mas, ao dizê-lo, talvez, eu
minta. É verdade, no entanto, que pouco ambiciono. Não suponho haver qualquer
sentido transformador em minha escrita. Ela é egocêntrica; só satisfaz a mim
mesmo, ou se esforça para tanto.
Neste texto, lançarei olhares sobre a
questão do sofrimento no sistema doutrinário cristão. Estou, particularmente,
interessado na investigação do papel desempenhado pelo sofrimento na ideologia
cristã. Assumo, desde já, que, em meu empreendimento analítico, o sofrimento
será tomado como signo, e é justamente seu papel simbólico (no sentido lato da
palavra) no interior da ideologia cristã que tratarei de examinar. É mister
fazer algumas considerações preliminares.
A fim de investigar o papel simbólico
desempenhado pelo sofrimento no cristianismo, necessário é definir o símbolo. Nesse momento, faço a distinção
tradicional entre símbolo e signo. O símbolo é um objeto concreto ou físico a
que se associam diversos significados. O símbolo é sempre um objeto físico ou
uma coisa que representa ideias abstratas. Por exemplo, o círculo pode
simbolizar o absoluto, a unidade ou a perfeição; a balança é símbolo da
justiça, e assim por diante. O signo, a seu turno, é uma entidade linguística,
constituída dicotomicamente de um significante (imagem acústica) e de um
significado (conceito). Embora o signo não se cinja ao domínio da palavra (um
morfema é um signo, uma frase é um signo e mesmo um texto é um signo complexo),
para os meus propósitos, basta entender que signo será aqui tomado como
sinônimo de palavra. Mas voltemos ao símbolo.
No cristianismo, sabe-se que a cruz
simboliza o sofrimento. Um cristão católico poderia objetar que, na realidade,
a cruz para a Igreja católica apostólica romana, é símbolo da salvação.
Todavia, é preciso dizer que todo símbolo é polissêmico (o mesmo vale para o
signo, evidentemente). O significado ‘sofrimento’ atribuído à cruz coexiste com
o significado de ‘triunfo’, que já se situa no campo semântico de ‘salvação’.
Mas, no mundo antigo, entre os judeus, a cruz era um escândalo, era sinal de
suplício e, portanto, algo extremamente indecoroso. Ao que parece, foi na
iconografia cristã, que se estabeleceu a transposição do significado original
‘sofrimento’ para o significado ‘salvação’ ou ‘superação da morte’. Atualmente,
para os cristãos, a cruz de Cristo, de onde brotam flores e folhas, simboliza a
superação da morte e a salvação.
Essa consideração sobre o simbolismo
da cruz servirá de ponto de partida para que compreendamos como o sofrimento,
enquanto signo, passou a receber entonações ou valores positivos. A cruz,
originalmente, símbolo de sofrimento e suplício, foi reinterpretada pelos
cristãos proto-ortodoxos no longo desenvolvimento do movimento cristão, como
símbolo da salvação. Pelo sofrimento e morte na cruz, Cristo salvou a
humanidade. Não surpreende que o sofrimento passe a ser valorado como um
caminho para um bem maior.
Convém também considerar que não estou
negando a realidade subjetiva do sofrimento. O sofrimento é uma evidência
irrecusável. Assim, entendo o sofrimento como uma perturbação violenta, quer de
ordem física, quer psíquica, experimentada por uma pessoa. O sofrimento é uma
realidade constitutiva da condição humana. O ser humano não só sofre, mas sabe que
sofre. Embora possível em psicanálise, não faço distinção entre dor e
sofrimento. Portanto, sofrimento envolve dor. O texto do Catecismo da Igreja Católica (2000) reconhece a indissociabilidade
entre o sofrimento e a condição humana:
“A enfermidade e o sofrimento
sempre estiveram entre os problemas mais graves da vida humana. Na doença, o
homem experimenta sua impotência, seus limites e sua finitude. Toda doença pode
fazer-nos entrever a morte”.
(p. 412)
O texto se refere também à causa do
sofrimento: a enfermidade, a doença. Diz-nos que esses fatos nos avivam a
consciência de nossa impotência e finitude. E acrescenta, a seguir, que a
enfermidade pode levar uma pessoa à angústia e à revolta contra Deus – atitude
esta natural e esperada. Por outro lado, o próprio Catecismo observa que a
doença pode tornar a pessoa mais madura, ajudando-a a discernir, em sua vida,
entre o que é essencial e o que não é essencial, de modo a conduzi-la às coisas
essenciais. Não é custoso inferir que, entre as coisas essenciais, está,
evidentemente, Deus. O sofrimento (doença, enfermidade) provoca no sofredor um
anseio por buscar a Deus, por retornar a ele. Há também um sentido moral no
sofrimento, porquanto é graças a ele que o homem orienta sua vida pelo
discernimento entre as boas e más paixões, entre o que é essencial e o que é
supérfluo. No sofrimento e através dele, o homem revê, repensa seus valores,
aperfeiçoa-se moralmente.
Até aqui, vim procurando descrever
como o sofrimento, enquanto signo, se articula à lógica doutrinária cristã. Antes,
entretanto, de avançar, preciso dizer algumas palavras sobre os conceitos de valor e virtude. Em primeiro lugar, situando-me no âmbito filosófico, noto que
o valor se relaciona ao que é bom, ao que é útil e positivo. Num sentido prescritivo,
o valor é algo que deve ser realizado. No domínio da ética, por valores
entende-se os fundamentos da moral, das normas, das regras. Assim, são os
valores que alicerçam nossos modos de conduta, de comportamento. Não ignoro
haver uma perene discussão sobre o conceito de valor. Para alguns filósofos, o
valor é tudo que visa à felicidade; para outros, o valor deve ser definido
segundo os fins a que servem, de modo que há bons e maus valores.
Assumirei, desde já, que o sofrimento,
no interior do sistema ideológico cristão (discutirei a questão da ideologia
mais adiante), é um valor, no primeiro sentido exposto. Ou seja, o sofrimento
é, no cristianismo, um valor porque é útil, porque serve a um bem, a um
propósito benéfico.
No tangente à noção de virtude,
atendo-me ao âmbito filosófico, originalmente, a virtude é a qualidade ou a
potência que está na natureza de algo. Do ponto de vista ético, recobre a
qualidade positiva de um indivíduo que o leva a praticar o bem a si mesmo e aos
demais. Em Platão, a virtude era considerada uma qualidade inata; em
Aristóteles, ao contrário, podia ser ensinada e resultava do hábito. Para o
filósofo estagirita, a virtude é uma disposição que o homem adquire por vontade
e que se define pela razão. Um homem virtuoso age refletidamente buscando um
meio-termo, uma medida justa entre o excesso e a falta.
A teologia cristã, que se moldou, em
parte, pela filosofia aristotélica, conceberá a virtude como “uma disposição
habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 2000, p. 485). A pessoa virtuosa se
inclina ao bem, busca praticar atos bons. O cristianismo católico distingue
entre quatro virtudes cardeais, quais sejam, a justiça, a prudência, a temperança e a fortaleza. Esta última nos
interessa aqui. A fortaleza é a virtude cardeal que dá segurança ao homem nas
dificuldades, que o mantêm firme nas tribulações. Ela o capacita a vencer os
medos, inclusive o da morte, a perseverar em face das provações e também o
ajuda na aceitação do sofrimento e na renúncia a algum meio de resistência a
ele. O homem dotado dessa virtude crê que seu sofrimento é necessário para o
alcance de um bem; ele sofre tendo em vista um bem, se sacrifica por uma causa
justa.
Em vista do exposto, assumirei que,
para o cristão, resignar-se ao sofrimento, é virtuoso. O cristão sofredor, que
compreende ser seu sofrimento necessário para o atingimento de um bem, é um
homem dotado de virtude.
O tema do sofrimento é constante na
Bíblia, muito embora as respostas oferecidas pelos diversos autores bíblicos à
questão de “por que existe sofrimento num mundo criado por um Deus bom? sejam
insatisfatórias (veja-se a esse propósito Ehrman, Bart D. O problema com Deus). Os homens do Antigo Testamento experimentavam
o sofrimento em face de Deus. Eles se queixavam de seu sofrimento a Deus.
Imploravam a cura a ele.
Uma ideia basilar, inferida, sem
muitas dificuldades, após examinar a problemática do sofrimento na doutrina
teológica cristã, é que a enfermidade, a dor, o sofrimento tornam-se um caminho
para a conversão.
O Problema
do Mal é, sem dúvida, o problema mais espinhoso e dramático para a fé
cristã. E o é porque essa fé supõe a existência de um Deus todo-poderoso e
moralmente bom e perfeito. O grande desafio é responder à questão: Por que um
Deus todo-poderoso e perfeitamente bom permite a existência do mal e do
sofrimento no mundo? Essa questão global suscita outras, tais como “por que
esse Deus permite que pessoas justas e inocentes, crianças, inclusive, sofram,
padeçam de dores atrozes e morram?” A fé em tal Deus não se sustenta em face da
evidência inegável do mal e do sofrimento no mundo. Embora seja absurdo
atribuir a maldade à natureza (a natureza não pode ser avaliada segundo nosso
senso de moralidade, ela é indiferente, é amoral), é inegável que ela é fonte
de sofrimento para os seres humanos e para os animais de consciência superior.
Leio sobre um tornado que devastou o
estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, matando 51 pessoas, dentre as quais
crianças. Das 60 pessoas que ficaram feridas, 12 são crianças. Em face de acontecimentos
como este – por sinal tão comuns, tão frequentes, como é possível, ainda assim,
manter a crença na existência de uma Providência, de um Deus criador,
todo-poderoso e bom?
Vimos que o Catecismo reconhece ser o sofrimento uma realidade intrinsecamente
ligada à condição humana. Mas é preciso dizer que também os animais de
consciência superior e dotados de um sistema nervoso central (mamíferos, aves,
incluindo polvos, etc.) sofrem. Reconhecer simplesmente o sofrimento um mal a
que está fadado o ser humano é insuficiente para conferir à doutrina cristã
alguma validade. Ao contrário, só o reconhecimento acarretaria graves problemas
para as suas alegações. É bem verdade que os problemas persistem, embora tenham
sido ardilosamente disfarçados pelos floreios da casuística cristã.
Se um Deus bom criou um mundo bom,
como, então, foi possível o sofrimento penetrar o mundo? A resposta da teologia
das religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é fornecida pela
doutrina da Queda do Homem. O sofrimento e o mal no mundo decorrem do pecado
original cometido por Eva, do qual tomou parte Adão, inocentemente. Por essa
razão, todas as gerações posteriores carregam o estigma do pecado e cada bebê
que nasce precisa ser batizado para depurar-se dessa mácula. Ignoremos o
absurdo dessa esdrúxula doutrina, qual seja, a culpa estendida a toda uma
geração de inocentes pelo erro cometido por seus antepassados.
O pecado é uma ofensa a Deus. Sinaliza
o afastamento do homem em relação a Deus. O pecado original, cometido por Eva,
caracterizou-se pela desobediência a Deus. Reza a doutrina da Queda que o homem
pretendeu ser como deuses, tornando-se conhecedor do bem e do mal. O pecado
recobre a vaidade humana, o seu brio. Peca o homem que tem orgulho de si, que
exalta a si mesmo e despreza a Deus.
No cristianismo, o homem tem de ser rebaixado e humilhado para
só, então, arrependendo-se dos seus pecados, alcançar a redenção. Em seu livro Um rosto para Deus (2005), Maria Clara
Bingemer, também reconhece que a experiência do sofrimento era comum aos
antigos israelitas:
“(...) a presença de Deus é
percebida pelo povo [de Israel] no meio de acontecimentos, como guerra, a
vitória e a derrota, a passagem do Mar vermelho e a liberação do Egito e o
exílio. Ou melhor: onde outros viam a guerra, a vitória, a derrota, um acaso ou
uma fatalidade, o povo de Israel via a presença de seu Deus à frente e por
dentro de todos estes fatos”.
(p. 44)
Esse trecho é ilustrativo do fato de
que a questão da ideologia, tal como a abordarei aqui, com base em Bakhtim e
Althusser, se insinua. O trecho nos ensina que a experiência da dor, do
sofrimento, dos fracassos, mas também do sucesso e da vitória era vivida e
ancorada sobre a crença numa participação direta de Deus nos acontecimentos. É
nesse cenário histórico que se forja a crença, entre os antigos hebreus,
segundo a qual Deus se revela também na história. O que, para nós, céticos e
ateus, soa como uma impostura que ganhou, entre os judeus e cristãos, status de
verdade inquestionável.
De que Deus se trata?
Usei até aqui, sem escrúpulos
filosóficos, a palavra Deus, supondo, evidentemente, que o leitor sabe a que
Deus me refiro. No entanto, o Deus criador da Bíblia hebraica e o Deus de amor
(embora disposto a lançar ao inferno os transgressores) do Novo Testamento não
é o único deus produzido pelo espírito humano. Por conseguinte, quando uso a
palavra Deus, quero referir-me a um Ser criador e pessoal, onipotente,
onisciente, dotado de perfeição moral, demasiado interessado na vida humana e
que funda uma relação para com o homem no mandamento do amor. Esse Deus foi
forjado pela fé de homens que viveram no antigo Oriente Próximo há
aproximadamente 2.000 a .C.
Essa estimativa remonta à tradição judaica. O Deus a que me refiro tem suas
raízes na tradição judaico-cristã. É, portanto, o Deus de Israel, de Abraão, de
Moisés, de Isaías, de Jacó, mas também de Jesus Cristo e do apóstolo Paulo. É
um Deus que, embora tenha desenvolvido uma personalidade que se inclina a um
relacionamento mais próximo e exclusivista com o povo eleito (o povo de
Israel), demonstrou um potencial para universalizar-se e estender sua soberania
sobre os recantos mais longínquos do mundo. É o Deus a quem os antigos hebreus
se socorriam para lutar contra o jugo, a dominação, a escravidão mantida pelos
povos conquistadores. É o Deus que estabeleceu uma aliança com seu povo e que a
reforça prometendo bem-aventurança em troca de obediência e fé.
Com o advento do cristianismo (I
d.C.), esse Deus é rebaixado à condição humana, é instado a manter um
relacionamento pessoal e paternal com o homem. Esse Deus se encarna em Cristo,
se identifica com Cristo. Cristo passa, então, a reunir em si as naturezas
humana e divina. Cristo é o próprio Deus. A esse respeito, não poderia deixar
de notar que essa foi a visão vitoriosa, a visão dos grupos proto-ortodoxos. Outros
grupos cristãos primitivos dos séculos II e III d.C tinham uma visão diferente.
A bem da verdade, a visão proto-ortodoxa, de que Justino foi um representante e
defensor ferrenho, afirma que Jesus era plenamente
humano e plenamente divino, o que não deixa de ser um absurdo. Não só
porque humano e divino pertencem a ordens incomensuráveis, mas porque a ideia
de plenitude não pode ser atribuída separadamente a duas naturezas num mesmo
ser: ou ele era plenamente humano e,
portanto, não tinha nada de divino, ou, ao contrário, era plenamente divino, e não tinha nada de humano. Ou a qualidade
divino totaliza seu ser ou a qualidade humano o totaliza. É, logicamente,
impossível que seja, em si mesmo, inteiramente humano e inteiramente divino.
Para mim, esse é um caso bastante emblemático do abuso da lógica, da
inconsistência do sistema de pensamento religioso. A lógica cristã ignora os
limites do bom-senso ou os subverte.
Como entender Deus em nossa análise?
Agora, peço ao leitor que me acompanhe
nas considerações que farei sobre como se deverá entender Deus neste trabalho.
A operação mental que se deve fazer, doravante, consiste na transposição da
categoria de Ser para a de signo. Deus não será considerado um Ser
transcendente cuja existência é inquestionável. Para efeito de análise,
considero Deus um signo linguístico que expressa a autoridade máxima, atemporal
e transcendente ao mundo e que cumula as entonações ideológicas de comunidades
cristãs (sacerdotes, teólogos, filósofos, leigos). Considero-o um signo através
do qual a hierarquia sacerdotal expressa sua autoridade na história. Deus é um
signo ideológico. Veremos, com Bakhtin, que todo signo é signo ideológico.
Deus
como signo ideológico
Todo signo verbal é dotado de uma
dupla materialidade: é uma entidade linguística, ao mesmo tempo,
físico-material e sócio-histórica. Chamo atenção para a influência marxista
nessa concepção do signo verbal. Ela foi desenvolvida por Bakhtim. A influência
a que me refiro diz respeito ao materialismo histórico (Karl Marx), o qual
designa os processos de transformação social que se dão por meio do conflito
entre os interesses das diferentes classes sociais.
Os signos têm a propriedade de
perpassar todas as esferas sociais. A eles é associado um ponto de vista.
Através deles, a realidade é representada a partir de um lugar valorativo
(verdadeira, falsa, boa, má, positiva, negativa, etc.). O ponto de vista, o
lugar valorativo, bem como a situação são sempre determinados
sócio-historicamente. O discurso é o palco onde eles se constituem e se
materializam.
Signo e palavra serão usados aqui
indiscriminadamente. Portanto, é preciso entender o seguinte. Para Bakhtin,
todo signo é signo ideológico. Como signo ideológico, a palavra reúne as
entonações dos diálogos vivos aos valores sociais, incorporando em seu cerne as
modificações ocorridas na infra-estrutura (base econômica, material de uma
sociedade), mas também, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas
sociais.
Não se pode ignorar, segundo Bakhtin,
a importância da comunicação na vida cotidiana e seu vínculo com os processos
de produção material da sociedade. Para ele, é nos encontros casuais e
corriqueiros do cotidiano que a ideologia encontrará seu cimento. Esses
encontros vão povoando o universo de signos, e cada signo vai-se tornando parte
da unidade da consciência, que é verbalmente constituída. A consciência, em
Bakhtim, é um fenômeno socioideológico. A realidade da consciência é o signo. A
consciência do sujeito, constituída de signos, pode, através da palavra, entrar
em contato com o mundo exterior, também construído e povoado de palavras.
Assim, o sujeito compreende o mundo no confronto entre as palavras da sua
consciência e as palavras circulantes na realidade.
Bakhtim nos ensina que as menores
mudanças sociais repercutem imediatamente na língua. Os sujeitos inscrevem nas
palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na escala de valores, nos
comportamentos ético-sociais, as mudanças sociais. As palavras funcionam,
assim, como agente e memória social, visto que uma mesma palavra figura em
contextos diferentes e variados. Toda palavra é entretecida de inúmeros fios
ideológicos, contraditórios entre si, uma vez que se construíram e freqüentaram
todos os campos de relações e conflitos sociais. Vejam-se, por exemplo,
palavras como Deus, Jesus, democracia, sem-terra, etc. Vimos um exemplo disso
quando mencionei a disputa entre grupos cristãos chamados de heréticos e os
proto-ortodoxos em torno da natureza de Jesus. As entonações do grupo vitorioso
(dos proto-ortodoxos) prevaleceram. Os significados produzidos por eles e
associados à palavra Jesus tornaram-se parte do cânone da Igreja cristã.
Um fato importante precisa ser
enunciado: todo signo verbal ou toda
palavra compõe-se de múltiplos sentidos. Todo signo possui muitos acentos
ideológicos, uma vez que não consegue eliminar totalmente outros concorrentes
ideológicos.
Uma propriedade fundamental da palavra
consiste na sua capacidade de participar de todo ato consciente. A palavra
opera tanto nos processos internos da consciência, mediante a compreensão e
interpretação do mundo pelo sujeito, quanto nos processos externos de
circulação das palavras nas esferas socioideológicas.
O que é ideologia para Bakhtin?
Um dos méritos de Bakhtim, no tocante
à questão da ideologia, foi ter insistido que não há ideologia fora da
linguagem. Ele mostrou que tudo que é ideológico é signo, que o discurso é o
lugar próprio onde se constitui a ideologia. Para o filosofo e linguista russo,
a linguagem é sempre uma realidade social. Nela, o sujeito se constitui na
relação com o outro. Fora da linguagem, não há sujeitos.
Mas qual é a concepção de Bakhtin de
ideologia? Em primeiro lugar, Bakhtim, embora assuma, como ponto de partida, a
perspectiva marxista de ideologia como “falsa consciência”, ocultamento da
realidade social, obscurecimento das contradições da existência, não o faz
completamente. Na verdade, ele procurará reelaborá-la ou reconstruí-la,
evocando a necessidade de considerar, ao lado da ideologia oficial, uma ideologia do cotidiano. Essa
reelaboração redundará em que, para Bakhtin, não faz sentido definir a
ideologia como falsa consciência. Para ele, a ideologia expressará uma tomada
de posição determinada sócio-historicamente. O sentido pejorativo do termo, que
constitui herança do marxismo, se esvaece ou, ao menos, não é imanente ao
termo. O que se deve destacar é a função da ideologia. A ideologia pode
funcionar para legitimar relações de dominação de uma classe sobre outra. Pode
servir para justificar condições de opressão e desigualdades entre as classes
sociais. A ideologia pode servir para manter e reproduzir o status quo. Mas – convém insistir - em
Bakhtim, ela é um sistema de representação de mundo e da sociedade, que se
constrói nas interações entre os indivíduos organizados em grupos sociais, por
meio do discurso. É graças a esse sistema de representação e interpretação do
mundo que se pode falar em um modo de pensar e de ser de um dado indivíduo ou grupo
social. A ideologia expressa a orientação social ou a linha tomada socialmente
por um indivíduo ou grupo.
Precisamos retomar aqui a natureza do
signo ou palavra, com vistas a chamar atenção para um aspecto importante da
relação entre o signo e a ideologia. Bakhtim ensina que a palavra apresenta a
propriedade de neutralidade. Isso não
quer dizer que ela seja neutra em relação à ideologia, mas que ela pode assumir
qualquer função ideológica. Em outras palavras, o signo é sempre passível de
receber uma carga significativa ou valorativa. Um mesmo signo, aliás, pode
comportar acentos ideológicos contraditórios. Tendo isso em mente, Bakhtim
mostrará que a superestrutura só existe na relação constante com a
infra-estrutura, mediante os signos. Vimos que os signos podem fazer-se
presentes em todas as relações sociais. Por isso, eles têm a capacidade de
relacionar a superestrutura com a infra-estrutura. Segundo Bakhtim, a ideologia
serve à expressão, organização e regulação das relações sociais entre os
sujeitos.
Como a ideologia se estabiliza? Disse
que Bakhtim reconheceu que, a par da ideologia oficial, deve-se considerar uma
ideologia do cotidiano. Disso se segue que são as interações entre os sujeitos
no cotidiano o nascedouro da ideologia; é nessas circunstâncias que a ideologia
começa a tomar forma, a se constituir. No momento em que a ideologia do
cotidiano, então constituída nas interações sociais, se organiza em um sistema
superior, em interações já mais bem definidas e estáveis, dá-se a estabilização
da ideologia. Nessas circunstâncias, padrões mínimos de sentidos postos em
circulação vão se estabelecendo. É o caso em que a ideologia do cotidiano é
reelaborada ou assume uma forma mais padronizada em grupos sociais organizados,
tais como sindicalistas, profissionais liberais, estudantes, grupos religiosos,
grupos não-governamentais, etc. A estabilização da ideologia se dá à medida que
penetra instituições tais como imprensa, ciência, literatura, religião, leis,
etc.
Uma operação básica na ideologia é o
que se pode chamar de refração. Para Bakhtim, a ideologia refrata a realidade
social, no sentido de que uma classe dominante confere ao signo ideológico um
caráter intangível, imutável, atemporal, a-histórico, transcendente às próprias
classes sociais. Disso se segue, então, o abafamento ou o ocultamento da luta
dos índices sociais de valor, de modo a se propagar um discurso monovalente e
monossêmico. A fim de ilustrar essa concepção e, assim, contribuir para o
entendimento do leitor, retomo a questão em torno da qual grupos de cristãos
primitivos disputaram o sentido verdadeiro ou correto. Essa luta por
estabelecer a crença correta, a perspectiva certa foi uma luta, ao mesmo tempo,
política, teológica e ideológica. Precisarei discorrer brevemente sobre os
acontecimentos implicados aí. Nos séculos II e III da era cristã, havia muitas
formas de cristianismos, muitos grupos cristãos que disputavam entre si para determinar
quem estava de posse da fé correta. Entre esses grupos havia o dos cristãos docetas. O termo tem origem no
grego DOKEO, que significa “dar a
impressão de”. Os cristãos docetas defendiam que Jesus não era um ser humano,
mas que era completamente divino. Jesus era Deus; apenas parecia ser homem.
Marcião se destaca dentre os cristãos docetas dos primeiros séculos do
cristianismo. A ele se opuseram dois padres proto-ortodoxos chamados Irineu e
Tertuliano. Estes consideravam a crença de Marcião uma verdadeira ameaça à fé
cristã. Só havia uma fé correta e esta era a defendida por Irineu e Tertuliano.
Mas qual era a visão de Marcião? Para Marcião, Paulo era o verdadeiro seguidor
de Jesus. Com base na observação de que, em algumas de suas cartas, Paulo
distingue entre a lei (de Moisés) e o evangelho, concluiu Marcião que a
salvação só viria com a fé em Jesus Cristo e não na obediência à Lei de Moisés.
A oposição entre a lei judaica e o evangelho era tão clara e forte, que Marcião
sustentou que o Deus do Antigo Testamento, que estabeleceu a lei e a delegou a
Moisés não poderia ser o mesmo Deus de que nos falou Jesus. O Deus do Antigo
Testamento era o Deus criador, o Deus do povo de Israel. Mas, segundo Marcião,
Jesus originou-se de um Deus grandioso, distinto, que o enviou à Terra para
salvar os homens do terrível Deus judaico. Disso concluiu Marcião que, não provindo
Jesus do Deus criador do mundo, não poderia o Messias ser um homem de carne e
osso. Jesus não pertencia a esse mundo. Marcião levou às ultimas consequências
suas especulações: sustentou que Jesus, na verdade, não tinha sequer um corpo
físico, que não tinha nascido, que não derramou sangue algum e que não morreu
de verdade. Para Marcião, isso era apenas aparência.
Tertuliano não ficou satisfeito com
essa interpretação e se dedicou ferrenhamente a bani-la da história cristã. Ele
argumentou que, se Jesus não fosse humano, não poderia salvar a humanidade,
que, se não tivesse derramado seu sangue, nunca teria trazido a salvação, que,
se não tivesse de fato morrido, sua morte “aparente” não redundaria em
benefício algum. Tertuliano e outros assumiram, portanto, a crença tenaz de que
Jesus era divino e plenamente humano. Ele realmente derramou sangue, sofreu com
as dores do martírio, foi crucificado e morreu; ressuscitou dos mortos e, fisicamente, ascendeu aos céus onde está
sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso. Essa crença também incluía a
expectativa de seu retorno iminente.
Como compreender esse acontecimento à
luz do conceito de refração próprio da ideologia, segundo Bakhtim? O que se
verifica nessa luta política, teológica e ideológica em torno da natureza de
Jesus é que as entonações ideológicas dos docetas foram ocultadas. Prevaleceram
os valores, as ‘vozes’ dos cristãos proto-ortodoxos. É a memória social desses
grupos que a palavra Jesus, passou, ao longo da história, a conservar. Cada
grupo de cristãos primitivos eram portadores de índices sociais de valor e eles
se esforçaram por incorporar esses valores no signo Jesus. Mas, na luta desses
índices, saíram vitoriosos os valores dos grupos proto-ortodoxos, de que
Tertuliano e Irineu foram eminentes representantes.
A condição para que seja conservada a
divisão social e que se perpetue a hegemonia da classe dominante é que os
sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados.
E foi justamente o que aconteceu ao longo do desenvolvimento da história do
cristianismo. Havia sinais de contradição entre a visão dos docetas e a dos
proto-ortodoxos. Como esses cristãos gozavam de maior poder sócio-político,
teológico e ideológico, eles conseguiram apagar os valores dos cristãos docetas,
permitindo assim que o signo ideológico Jesus passasse a significar aquilo que
eles queriam que significasse. Instaurou-se por força dessa vitória
proto-ortodoxa (o grupo dominante) a monovalência ou monossemia do signo
“Jesus”.
Contrariamente à crença judaico-cristã,
não é Deus que faz ou intervém na história; como se pode ver, são os homens os
verdadeiros agentes dos processos históricos (que são sociais, políticos,
econômicos, culturais e ideológicos).
Encerrando esta seção, gostaria de
acrescentar que os signos comportam uma ambivalência, porquanto não só refletem
a realidade, como também a refratam. Nesse sentido, podem permitir que a
apreensão dela seja feita com fidelidade ou com distorção. Ponderemos sobre
este passo de Leandro Konder, em A
Questão da ideologia (2002), em que o autor nos lembra duas coisas
importantes: a primeira é que os signos se constituem sempre numa organização
social; a segunda é que a consciência dos indivíduos, bem como seus
sentimentos, emoções, personalidade são formados em processos socioideológicos
em uma dada organização social de que eles fazem parte.
“Por mais diferentes que sejam,
entretanto, os signos têm em comum o fato de só poderem se constituir como
sistema a partir de alguma forma de organização social. O social, portanto,
precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos
depende da complexidade da organização social no interior da qual eles
existem”.
(p. 115)
A ideologia em Louis Althusser
Diferentemente de Bakhtim, que se
preocupou em varrer para fora do domínio semântico do termo ideologia qualquer
sentido pejorativo, Althusser, de certo modo, o conserva. Para este filósofo,
“a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas
condições reais de existência” (2007, p. 85). Para ele, a ideologia não
corresponde à realidade.
“Nas ideologias, os homens
representam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência”.
(p. 86)
Mais adiante, em seu trabalho,
Althusser refinará essa definição, de sorte a fazer ver ao seu leitor que o que
os homens representam, de forma imaginária, na ideologia não são suas reais
condições de existência, mas as relações
que eles estabelecem com essas condições. Consoante entende Althusser, é
nessa relação com as condições reais de existência que se acha a causa da
deformação imaginária na representação ideológica do mundo real.
Antes de atacar o modo como Althusser
compreende, especificamente, a ideologia religiosa cristã, não posso deixar de
referir sua contribuição para o entendimento da natureza do sujeito. Começo,
então, notando que, para Althusser, só há ideologia pelo sujeito e para o
sujeito. O sujeito é uma categoria constitutiva de toda ideologia. A ideologia
interpela os indivíduos em sujeito. Por exemplo, autor e leitor são sujeitos
que se constituem no interior de formações ideológicas que se materializam nos
discursos. Disso se segue também que Deus é um Sujeito, pois que construído na
ideologia religiosa.
Atendo-se à ideologia religiosa,
Althusser escreverá o que ela, segundo ele, nos diz:
“Ela diz: Dirijo-me a ti,
indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome no
sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe
e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti
pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a
transmitido, a Infalibilidade Pontifícia a fixado para sempre quanto às
questões “delicadas”). Ela diz: Eis quem tu és: Tu és Pedro! Eis a tua origem,
tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920
depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o
fizeres, observando o “mandamento do amor”, tu serás salvo, tu Pedro, e farás,
parte do Glorioso Corpo de Cristo, etc.”.
(pp. 99-100)
Eis aí um fragmento do pensamento de
Althusser importante e que nos demanda uma análise cuidadosa. Pedro, que pode
ser qualquer cristão, é interpelado em sujeito. Essa interpelação lhe veda
qualquer autonomia. Não é ele quem se nomeia; ele é nomeado. É-lhe fixada uma
identidade (um nome, uma origem, um Pai criador). É-lhe determinado um lugar na
sociedade, no mundo, no universo. Também ele é posicionado em relação a Deus
(ele precisa prestar-lhe contas, obedecer-lhe ao mandamento). É-lhe determinado
um modo de conduta, calcado sobre o mandamento do amor. Particularmente
interessante é ver aí que o amor cristão precisa ser balizado por um
mandamento. Deus ordena amar acima de tudo a ele mesmo e depois ao próximo. Isso
lança suspeitas sobre a genuinidade do amor cristão. Por ser um amor, cuja
manifestação, é pré-determinada por Deus, na forma de mandamento, redunda daí
sua opacidade, sua vocação para um dever, no entanto, interesseiro. Ora, tenho
de amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo para ganhar prestígio aos
olhos de Deus.
Mas é possível ver a questão sob outra
perspectiva. Uma vez assumindo ser Deus um signo ideológico que não é outra
coisa senão o reflexo de uma autoridade eclesiástica e terrena, embora apareça
à consciência coletiva, como um Ser transcendente, uma autoridade sobre-humana,
o mandamento do amor, ao qual devemos acrescentar o temor a Deus, configura uma
típica situação de relação desigual entre subalternos e seu líder. Um líder que
queira expandir sua soberania e conservá-la, sem que os dominados se revoltem
contra essa condição, precisará combinar o amor e o temor. Em outras palavras,
precisará infundi-lhes amor e temor. A figura de Deus é representada como um
ser que deve ser amado e, ao mesmo tempo, temido. Como Deus não é senão um
signo ideológico, ele é o meio verbal pelo qual a Igreja decreta o amor e
infunde o temor ou o medo. É provável que esse medo tenha sido mais forte no
passado, ou melhor, tenha assumido outra forma, tenha servido a outros
propósitos. No entanto, o medo de que o abandono da fé, a prática da heresia,
ou de que a vida não tenha sentido transcendente algum ainda persiste, mesmo
que num nível subconsciente nas grandes massas religiosas. É preciso frisar: os
religiosos – assim creio – não amarão e temerão as suas igrejas, embora até
possam nutrir tais sentimentos em relação às figuras carismáticas como padres,
bispos, pastores e o papa. O amor e o temor é, em primeiro lugar, a Deus, mas
entendendo Deus como um mero mecanismo ideológico mediante o qual a Igreja
conserva e alimenta esses sentimentos nos indivíduos.
Sem pretender me delongar sobre este
tópico, vale atentar para o que nos ensina Freud, em O Mal-estar na cultura (2010), sobre a ineficiência do mandamento
“amarás o teu próximo como a ti mesmo”:
“(...) O mandamento “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo” é a defesa mais forte contra a agressão humana, e um
exemplo excelente do procedimento nada psicológico do supereu cultural. O
mandamento é impossível de ser cumprido; uma inflação tão grandiosa do amor
apenas para diminuir o seu valor, sem resolver o problema. A cultura
negligencia tudo isso; ela apenas admoesta que quanto mais difícil for obedecer
ao preceito, tanto maior o mérito em obedecê-lo”.
(p. 180)
Basta entender que religião e Igreja
são instituições culturais, que não será custoso concluir que “o amar a Deus
sobre todas as coisas” e “o amar o próximo como a si mesmo” são exigências que
extrapolam às inclinações humanas. O que nos martela a religião e a Igreja é
que “quanto mais difícil for obedecer ao preceito, tanto maior o mérito em
obedecê-lo”.
Voltando, contudo, ao sujeito Pedro,
em Althusser, e lançando mão do conceito lacaniano de Outro, é interessante ver
que o sujeito Pedro é submetido a toda uma comunidade de valores, crenças,
dogmas, discursos materializada na forma de Escrituras Sagradas, de uma
tradição teológico-doutrinária. Quem lhe fala é essa comunidade representada no
signo Deus. Também lhe é determinada uma condição para a sua Salvação, bem como
um destino. Obedecendo ao mandamento e vivendo segundo o que lhe foi
determinado (entre outras coisas, que Deus é quem o criou; portanto, saiba-se
uma criatura!; que Jesus é seu único salvador; portanto, reconheça-se como
pecador!, etc.), ele participará da majestosa Família de Deus (o Corpo de
Cristo, a comunidade cristã, composta pelos eleitos e acolhidos no amor de
Deus).
De tudo que foi dito, devemos concluir
o que se segue. Ao contrário de Bakhtim, Althusser entende a ideologia como um
sistema de representação que deforma a realidade. Não é que essa visão esteja
de todo excluída da abordagem do filósofo russo, mas, decerto, sua perspectiva
é mais alargada. Para ele, todo signo é signo ideológico e a ideologia é um
sistema de representação e interpretação da realidade social e do mundo. Todo
discurso, em Bakhtim, é constituído do que poderíamos chamar de formação
ideológica (embora esse termo não tenha sido cunhado por ele). Não há discurso
sem ideologia, na visão de Bakhtim.
Para examinar como o sofrimento,
enquanto signo ideológico, entra a fazer parte da constituição de uma trama
ideológico-doutrinária sobre a qual se calcarão teologias cristãs, assumirei a
visão de Althusser sobre ideologia, sem deixar de articular a ela a perspectiva
de Bakhtim sobre a natureza ideológica de todo signo.
O sofrimento: uma escada que leva a
Deus
Vimos que o sofrimento é consequência
da Queda; mas também é o meio pelo qual o homem se redime perante Deus.
O sofrimento, sempre entendido como
signo ideológico, se articulará à ideia de que a vida terrena é um vale de
lágrimas. Nela, o ser humano deverá se esforçar por reparar seu erro que o
maculou desde o nascimento.
No entanto, o sofrimento tem o
potencial de alavancar uma verdadeira transformação. O fracasso que ele nos
lega nos conduz à vitória. Ele instaura uma lógica, quase nunca percebida,
segundo a qual, aviltando o pecador, amaldiçoando-o, Deus o concede a salvação.
Pascal Bruckner, em seu livro A euforia
perpétua – ensaio sobre o dever de felicidade (2010), oferece-nos uma
preciosa constatação:
“Não basta, pois, experimentar o
sofrimento, é preciso amá-lo”.
(p. 32)
A doutrina cristã prescreve: “É
preciso sofrer!” “Resigne-se ao sofrimento e cairá nas graças de Deus!”. Mas o
cristão não está sozinho em seu sacrifício, em seu culto ao sofrimento. Cristo
lhe serve de modelo de sofrimento; o fiel cristão se "inspira" na Paixão de
Cristo quando se vê à volta com a dor do sofrimento. No cristianismo, a morte
do Cristo-Deus, em agonia, na cruz, é o cerne de seu ritual. Jesus se torna
proprietário da morte. Ele afirma e nos lembra o trágico da condição humana,
mas também confirma a promessa de sua superação, mediante a ascensão à condição
sobre-humana na ordem da esperança (que assim seja!) e do amor (infinito e
elevado!).
Para o cristão que padece, Jesus é um
irmão de sofrimento. O cristão, mesmo aviltado, sobrepujado pelo sofrimento,
pela culpa do pecado deve ver em Jesus um amigo e um guia em seu calvário
pessoal. “Deus dá a cruz segundo nossa capacidade para carregá-la”, diz o
senso-comum fundado na ideologia cristã.
O sofrimento sujeita o homem à
condição de impotência, arranca-lhe as forças, condena-o à resignação. O homem
não pode salvar-se por si mesmo. A salvação é uma graça de Deus. À salvação precede
a humilhação, o aviltamento do homem.
É do fundo do seu sofrimento atroz que
o homem ascende a Deus. O sofrimento é uma escada que o leva até ele. O signo
do sofrimento instaura uma dependência do homem a Deus. Ela não seria possível
sem o imperativo do sofrimento, o qual reaviva na consciência do homem sua
condição de criatura mortal e inferior. Simone Weil escreveu: “só o sofrimento
salva a existência”. Sofrimento e salvação são indissociáveis, de tal modo que
se pressupõem reciprocamente. Não haveria sentido, no cristianismo, proclamar a
salvação, sem a introdução na doutrina da crença em que o sofrimento faz
sentido, já que constitui o caminho que conduz à salvação. Salvação da morte,
salvação do mundo onde grassa o pecado. Salvação do próprio sofrimento.
Novamente, Simone Weil dá-nos testemunho dessa lógica viciosa cristã: o
sofrimento “é tão melhor quanto mais for injusto”. Eis aqui um dito moralmente
inaceitável. Uma clara aceitação do sofrimento gratuito de inocentes. Para
Simone Weil, só o sofrimento injusto pode nos conduzir à sabedoria e ao colo de
Deus. Eis uma prova do abandono da atitude filosófica, e mesmo a rejeição a
qualquer tentativa séria de refletir sobre o problema do sofrimento à luz de
uma teodiceia, mesmo que ela seja pouco convicente.
Em relação ao cristianismo, escreverá
Bruckner, “poucas religiões insistiram como esta no lixo humano ou manifestaram
esse “sadismo de piedade” (p. 34). E, mais adiante, acrescenta: “o sofrimento é
a norma... É preciso amar o homem, mas primeiro humilhá-lo, rebaixá-lo (ib.id.)”.
Que outros índices de valores se
acumularam na palavra sofrimento? Vemos nele também a ideia de progresso
espiritual. Na medida em que nos leva a aproximarmo-nos de Deus, o sofrimento é
interpretado como um progresso. Esse deslize semântico, operado pelo sistema
ideológico religioso, da “estagnação”, do “mal” para o “progresso”, para o “bem
maior” leva a que o sofrimento não seja mais visto como uma condição contra a
qual devemos mobilizar esforços para lutar. O cristianismo nos diz: “resta
sofrer junto de Cristo aceitando-o como um amigo de sofrimento”. A miséria traz
a paz interior; traz a alegria espiritual. O cristão que sofre, experimenta,
paradoxalmente, a alegria quando crer-se unido a Cristo em sofrimento, quando,
comparando seu sofrimento ao de Cristo, pune-se por qualquer pensamento
queixoso que se lhe assome à consciência. Consciente de que seu sofrimento não
se compara ao de Cristo em intensidade e profundidade, o Cristão sofre
resignado, não sem evocar a Cristo para que o conforte e o vele em seu
sofrimento. Novamente, Bruckner nos lembra “com a religião, o sofrimento
torna-se um mistério que não deciframos, a não ser sofrendo” (p. 35). O cristão,
no momento em que sofre, crê haver um sentido em seu sofrimento, mesmo que não
lhe seja imediatamente transparente ou acessível. E não nos surpreendamos que,
após cessada a tempestade de dor, ele se regozije com a descoberta do sentido,
que tardou, mas se lhe revelou cristalino. Bruckner faz uma breve referência ao
trabalho ardiloso de teólogos na produção de teodiceias:
“E os teólogos irão desenvolver
tesouros de casuística e de sutileza para legitimar a existência do mal sem
atentar à bondade de Deus”.
(p. 35)
E diga-se, de passagem, que a própria
concepção de sofrimento como uma forma de progresso, como um meio de retorno a
Deus é já fruto de uma teodiceia denominada na tradição de pedagógica.
Vimos, no limiar deste texto, que no Catecismo, o sofrimento nos aviva a
consciência de que somos seres destinados à morte. Que relação pode-se
estabelecer entre o sofrimento e a morte, no interior da doutrina cristã? Se o
sofrimento é uma escada que nos conduz a Deus, a morte é um passaporte para a
verdadeira vida. A morte nos liberta das tentações mundanas, dos pecados deste mundo.
O mundo não é nada mais do que um lugar de exílio, onde grassam a dor e o
sofrimento.
Não exageramos ao notar que, na
história cristã, propôs-se aceitar voluntariamente sofrer e renunciar a toda e
qualquer medida contra a dor. É preciso participar da Paixão de Cristo.
Bruckner nos fala de “eloqüência da cruz”, com que se busca justificar a
imobilidade de esforços de piedosos na tentativa de melhorar as condições de
existência humana neste mundo. A felicidade não pertence a esse mundo, mas ao
outro mundo que está por vir. A eloqüência da cruz desencoraja os mais
interessados em amenizar a dor dos desgraçados.
Palavras
finais
Ainda que a concepção mais bem
intencionada sobre a natureza de Deus não se sustente à luz da evidência das
formas como o sofrimento se manifesta neste mundo, continua ela a ser uma
representação consoladora e acalentadora da crença em que a existência humana
seja portadora de um sentido transcendente. O sofrimento é o cabresto que
prende os fiéis a Deus (Igreja). É a chave para a compreensão do maquinário
ideológico cristão, que constitui o sistema de representação, de forma
imaginária, das relações dos homens com suas reais condições de existência.
Nessas relações, os homens se vêem, ou melhor, se representam, na imaginação,
como criaturas de Deus.
O cristianismo é uma religião que se
aproveitou do sofrimento como fato irrecusável, transformando-o, pela ideologia
(na representação imaginária) em gatilho de toda teia de ideias e dogmas de que
se forma sua doutrina. O sofrimento, antes de constituir um obstáculo à fé em
Deus, a reforça, a torna mais intensa, mais viva. O homem que sofre é aquele
que espera em Deus, que espera obter uma recompensa por ter-se obstinado na
condição de sofredor resignado.
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