sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o nada." (Martin Heidegger)


                    


                        
                                    Há salvação para o homem?




Há, em nossa sociedade, onde o índice de analfabetismo está entre os maiores do mundo e onde o desenvolvimento em educação está entre os piores, um preconceito, infelizmente, bastante disseminado em relação à filosofia, segundo o qual filosofia não serve para nada, muito porque, segundo se crê, versa sobre questões que não tocam ao viver cotidiano do homem comum. É provável que essa má fama da filosofia entre nós se deva muito a sua redução à metafísica e, particularmente, a uma interpretação vulgar e equivocada da filosofia de Platão, que, propondo um realismo das ideias, chamou de real ao mundo inteligível ou das ideias, cuja existência acreditava ser independente do pensamento e do conhecimento. Em Platão, há uma subversão do modo comum como entendemos o mundo: o mundo dado à experiência sensível é um mundo das aparências (dos objetos, seres que vemos, tocamos); o mundo real e verdadeiro é o mundo das Formas ou Ideias perfeitas. Tradicionalmente, a metafísica é definida como a ciência das causas e princípios primeiros. É nela que se situa a grande questão com que a filosofia ficou marcada no imaginário popular, qual seja, a questão do ser. A metafísica encerra, portanto, a ontologia (estudo do ser), em cujo interior se pode situar uma doutrina do Ser Divino ou do Absoluto.
Surpreendentemente ou não, é possível encontrar, em obras de introdução à filosofia, o reconhecimento pelo autor da inutilidade da filosofia. Um caso ilustrativo disso está no trabalho de Roberto Rossi, intitulado de Introdução à filosofia – história e sistema (2004), em que o autor, embora reconheça a inutilidade da filosofia, vê nela uma vantagem:


“A própria inutilidade da filosofia é sua força, porque é ela que a torna livre. Se eu devesse pensar em função de alguma vantagem, de uma urgência, de um interesse, deveria dar só aquela resposta e somente aquela. Na verdade, a liberdade não existe na natureza. Pelo contrário, para ela é inútil e nociva” (p. 15)


Implícita aqui está a ideia de que a filosofia, enquanto prática racional pela qual o homem exercita sua liberdade e seu pensamento, a fim de compreender a si mesmo e o mundo em que vive, é uma forma de expressão de sua transcendência em relação à natureza. Essa ideia parece-me mais clara no passo a seguir:

“A liberdade é a essência do homem, precisamente porque o homem é capaz também de pensar sem a pressão das necessidades fisiológicas, sem se sujeitar apenas às obrigações práticas e ao utilitarismo funcional. (...) Atacar a filosofia, declarando-a inútil, significa, então, ter o mundo animal como padrão do homem, revelar cerda saudade da vida instintiva, cega, egoísta, da qual os animais representam a expressão máxima”. (pp. 15-16)

Quanto a mim, prefiro seguir a sugestão de Luc Ferry (2010) e ver na filosofia um caminho pelo qual o homem, com o concurso da razão, busca “salvar a si mesmo” – ou melhor, busca “salvar-se de si mesmo”. A minha experiência pessoal com a filosofia tem me ensinado que ela é, acima de tudo, uma atividade que se exerce por meio do pensamento reflexivo, através da qual domesticamos nosso próprio desconforto em face do mundo. A isso acrescente-se que é ela um caminho pelo qual aprendemos a lidar com a presença  percebida da morte no coração da vida. Nesse tocante, escreverá Ferry (2010):

“(...) é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.
(p. 23)


Ensina o filósofo francês que a filosofia oferece ao homem meios de “salvar a própria pele”, não pelo caminho das ilusões, mas pelo caminho que o conduzirá à verdade sobre sua condição. O instrumento proposto pela filosofia é a razão. De posse dela, o homem pode trilhar esse caminho com suas próprias forças, o que supõe audácia e firmeza ( Ferry, 2010, p. 30).
Se quiséssemos provar quão equivocada é a crença na dissociabilidade entre filosofia e vida, sem que, para isso, precisássemos nos demorar em longos rodeios sobre a História da Filosofia, bastaria, referir, por exemplo, às contribuições dos estóicos, cuja sabedoria se aproxima claramente do budismo tibetano, ao propor que a esperança está entre as maiores adversidades da vida do homem. Ter esperança é colocar-se num estado de tensão que não se saciará, num estado de falta.
Diga-se, de passagem, que encontramos nos antigos gregos preciosas reflexões sobre como o passado e o futuro são prejudiciais à vida humana, ou seja, sobre como eles podem representar para os homens fonte de angústia, que os impede de viver a única forma real de vida: a do instante presente.
Aceita por uma grande parte de filósofos, quer sejam antigos, modernos ou contemporâneos, é a ideia de que o medo da morte impede o homem de viver. O medo da morte torna sua vida um tormento. Veremos, adiante, quando me ocupar, em linhas gerais, da filosofia de Martin Heidegger, que a angústia provocada pela consciência da finitude é intrinsecamente constitutiva do Dasein.
Para nós, modernos, que vivemos em condições marcadas por um ritmo de vida bastante acelerado, contentar-se em viver o instante presente pode parecer um modo de vida irrealizável, muito porque estamos continuamente projetando nossas vivências para além do aqui e agora, estamos traçando objetivos cuja realização se dará num futuro mais ou menos distante. Veremos, com Heidegger, que essa impossibilidade de o homem contentar-se em viver o instante presente se deve à própria constituição do Dasein, um ente que está sempre adiante de si, que se projeta para o futuro, que se autotranscende.
Sem mais delongas, façamos uma breve incursão na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), conhecido, na tradição da filosofia, como um dos maiores filósofos existencialistas da modernidade. Pouco importa aqui que seu projeto se distanciasse consideravelmente do de seus contemporâneos franceses. A sua principal obra Ser e o Tempo (1927) foi extremamente influente no movimento existencialista.
Um breve resumo de sua biografia não pode dispensar o fato de ter sido professor na Universidade de Freiburg (1916), onde se tornou aluno de Husserl.
Com a publicação de sua mais influente obra Ser e o Tempo (1927), Heidegger se afasta da fenomenologia de seu mestre, Husserl, e dá início ao seu empreendimento filosófico, cujo objetivo fundamental era investigar o sentido mais profundo da existência humana. Não se limitou a isso, no entanto. De sua agenda filosófica, fazia parte uma reflexão sobre as origens da metafísica e o significado de seu impacto sobre o pensamento ocidental.
Decerto, a preocupação basilar de Heidegger foi recolocar ou repensar a questão do ser que, na tradição do pensamento moderno, foi negligenciada em função da problemática do conhecimento e da ciência. Julgou necessário, assim, demolir a ontologia tradicional para trazer à cena do pensamento filosófico moderno o sentido original do ser. Heidegger propõe, então, que a existência só pode ser devidamente compreendida com base na análise do Dasein (traduzido como “ser-aí”). Há diferentes formas de definir e pensar o Dasein, conforme se verá. De um modo geral, no entanto, podemos pensá-lo como o ser humano que se abre à compreensão do ser.
Também figurou em sua agenda filosófica a reflexão sobre a questão da verdade, uma questão clássica na tradição filosófica. Nesse tocante, sua preocupação foi relacioná-la aos conceitos de ser e de conhecimento, com vistas a determinar sua gênese e seu sentido.

Dasein

Heidegger assumirá que o Dasein é um ente muito particular que permitirá o acesso à compreensão do ser. O Dasein é o único ente que coloca seu ser em questão, que está envolvido com o próprio ser e para quem a existência constitui um problema. É na relação de compreensão do Dasein sobre o mundo que se pode ter algum acesso ao ser dos entes. É somente através do Dasein que as coisas se revelam.
Heidegger propõe que o Dasein não se define por uma essência ou natureza previamente dada. Essa visão, decerto, motivou Sartre a escrever, posteriormente, a fórmula “no homem a existência precede a essência”. O Dasein é entendido também como um ser-no-mundo, ou seja, um ser-com-outros, um ser que assume uma situação no mundo. Todavia, ele não está completamente imerso no mundo. O Dasein é ser que se interpreta a si mesmo.
Como ser-no-mundo, somente o Dasein pode não ser si-mesmo, caso em que se encontra na condição de inautenticidade. Dela trataremos adiante. Heidegger atribui ao Dasein a propriedade existencial. Com base nela, o Dasein se difere dos demais entes, que se definem por categorias, que são suas propriedades essenciais.
É preciso compreender melhor a ideia de ser-no-mundo. Com ela, Heidegger quer dizer que o Dasein está essencialmente no mundo e que dele é inseparável. O Dasein está imerso no dia-a-dia da vida no mundo. Ele se interessa em explicar o que torna o mundo sua casa ou sua morada. O seu mundo é um mundo em contexto ao qual ele associa projetos e significados. O Dasein é “o que não é”. Ele sempre se projeta para possibilidades futuras.

Disposições

Sem perder de vista a importância do conceito de Dasein no trabalho de compreensão do sentido profundo do ser, levado a efeito por Heidegger, considero, agora, o conceito de disposições. São elas existenciais fundamentais do Dasein. Não devem ser vistas como fraquezas ou desvios da racionalidade. Na verdade, as disposições é que levam o Dasein (o impulsionam) a se defrontar com um enigma para cuja compreensão a razão se lhe demonstra insuficiente. Dentre as disposições mais importantes para a razão, a compreensão e conhecimento, destacam-se as paixões e os desejos. Heidegger entende que o ser se revela sem impedimento nas disposições. São disposições, além das duas referidas, a culpa, a ansiedade, o tédio e o medo.

À-mão

Por à-mão, Heidegger entende a forma como o Dasein se relaciona com as coisas. Essa noção envolve a ideia de praticidade e imediaticidade na forma como essa relação se dá. As coisas estão disponíveis para o uso pelo Dasein.
Tanto o conceito de ser-no-mundo quanto o conceito de à-mão apontam para o fato de que a filosofia de Heidegger visa a compreender o homem em sua existência concreta, da qual se destaca a importância de sua vida cotidiana. Heidegger ensinará que as coisas úteis estão necessariamente em uma situação e estão sempre relacionadas com outras coisas úteis numa rede de associações. A essa rede de associações em que as coisas estão dispostas potencialmente para uso, Heidegger chama totalidade instrumental.
A filosofia deve, então, voltar-se para a cotidianidade onde melhor nos situamos para apreender o ser, embora sempre de modo limitado. O mundo, em Heidegger, é o mundo prático da vida diária. O ser-no-mundo, portanto, envolve o manuseio das coisas e implica sua vinculação à prática. Importa entender que, para Heidegger, pressuposta em nossa percepção do mundo há sempre uma compreensão. Toda percepção envolve uma interpretação. O mundo existe de modo prático para a percepção de modo já significado na interpretação ou na suposição.

Estar-lançado

O estar-lançado é o aí contingente, é o fato de estarmos entregues a uma situação (aí) e de reconhecermos essa situação como contingente, de tal modo que essa situação poderia ter sido diferente do que é. Pense-se no fato de que você, leitor, nasceu, sem qualquer razão, numa família de classe média do Rio Grande do Sul, dela recebeu um nome e através dela desenvolveu sua individualidade. Mas poderia ter se dado que você nascesse entre aborígines da Nova Guiné. Portanto, o estar-lançado recobre o fato de que estamos entregues à contingência sem qualquer razão. É o que entendo como “ser arremessado à existência”. Está claro aqui que a filosofia de Heidegger nega a possibilidade de existir um Ser Superior que determinaria nossa situação no mundo.

Compreensão

Este conceito inclui a ideia de que o Dasein, uma vez lançado em direção ao futuro, torna possível a sua liberdade. O Dasein está sempre consciente de suas possibilidades. O conceito de compreensão destaca as possibilidades do Dasein. Lembro que o Dasein é aquele que ainda não é, que se projeta para o futuro, não sem traçar objetivos e motivar-se por ambições. Ele é sempre uma possibilidade de ser.
Heidegger, no entanto, ao contrário de Sartre, entende que temos certas possibilidades definidas e que nossa compreensão dessas possibilidades está sempre, ainda que parcialmente, determinada pelo nosso passado e por nossas disposições. Para Sartre, há uma ruptura entre o passado e o presente ou entre o presente e o futuro.
Subjacente ao conceito de compreensão está também a convicção de Heidegger segundo a qual há sempre, na interpretação, uma pressuposição de alguma coisa que é apresentada a nós. Por exemplo, percebendo a natureza de um apito antecipamos, com base na experiência, a imagem de um trem que se aproxima. A percepção da natureza do som do apito evoca a pressuposição de que, no mundo em que vivemos, trens têm apito. Assim, interpretamos o som percebido como “o som do apito de um trem”.

Ser-para-a-morte

O Dasein se define também como um ser-para-a-morte. A perspectiva da morte lhe confere unidade e completude. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade ontológica constitutiva do Dasein. Heidegger propõe que aceitemos nossa própria morte, que aceitemos que somos “entes-para-a-morte”. É só por meio dessa aceitação que o Dasein se torna autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio existir.
O grande problema, aqui, segundo Heidegger, consiste na tendência de o Dasein evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos a própria morte”, o que significa confrontar-se com a possibilidade da realidade de nossa própria morte. Não pensar na morte como um acontecimento que só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a morte: o medo e indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro, quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da finitude é, para o Dasein, aceitar a possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Em Existencialismo (2013), Jack Reinolds sintetiza a relação do  Dasein com a morte, nos seguintes termos:

“A morte é uma estrutura existencial que subjetividade humana, e isso significa que a possibilidade de morrer é parte da estrutura de nosso mundo à medida que o experienciamos agora, não apenas como alho que é adiado para mais tarde. Em uma linguagem mais filosófica, podemos dizer que a morte é uma possibilidade futura que é constitutiva do “agora”, do presente”.
(p. 68)


Lembremos aqui o trecho da canção Por enquanto da Legião Urbana: “o pra sempre sempre acaba”. Ou seja, o presente só é na medida em que o compreendo como finito, como um espaço de tempo que não prosseguirá para sempre.
Que benefício, se pudermos dizer assim, haveria em seguir a proposta de Heidegger de aceitação de nossa própria morte, ou melhor, de encarar a perspectiva de nossa própria morte como possibilidade do ‘agora’? Para Heidegger, é justamente esse reconhecimento da realidade de nossa própria morte, como sempre possível, que nos permite estruturar nossa vida significativamente. A consciência genuína de nossa finitude motiva-nos à realização de nossos projetos. Reconhecemos que a morte não dá aviso prévio; ela pode nos surpreender a cada um de nós a qualquer momento. Por isso, mobilizamos nossas disposições para perseguir nossos objetivos, no sentido de atingi-los. Insiste Heidegger também que a morte, sendo um impedimento em potencial para a realização de nossos projetos, é uma condição necessária para a nossa liberdade e individualidade. Conforme nota Reinolds (p. 69), “somente se estivermos conscientes de nossa própria finitude seremos impelidos a agir agora e com urgência”.
O modo como Heidegger desenvolve a questão do ser-para-a-morte leva-nos a concluir, corretamente, que qualquer crença na possibilidade de uma vida pós-morte é não só ignorar o significado da morte e da existência, como também viver na inautenticidade. Donde se conclui que todos os religiosos que creem numa vida pós-morte vivem inautenticamente.
Finalmente, quero considerar duas outras noções implicadas no ser-para-a-morte, quais sejam, a de ansiedade (ou angústia) e a de decadência.
Antes de considerá-las, cumpre salientar que, no momento em que reconheço que eu devo morrer, eu passo a me compreender como um indivíduo. O reconhecimento da possibilidade sempre aí de nossa própria morte me individua. Não sou mais um na multidão. Essa individuação que a consciência da possibilidade da própria morte engendra leva a que o indivíduo reconheça que o outro não pode morrer em seu lugar. Não devemos pensar o outro na condição de mártir (aquele que sacrifica a própria vida por um amigo). Dizer que o outro não pode morrer em nosso lugar é dizer que o outro não pode antecipar por mim a minha própria morte. Novamente, trago à cena as palavras de Reinolds, que observa:

“(...) Heidegger sugere que o si-mesmo-impessoal evita uma compreensão autêntica da morte manipulando a indefinição do momento da morte – nós não sabemos  quando ela acontecerá, e por isso não entendemos completamente que vamos morrer – mas ele também argumenta que isso é claramente um truque”.
(p.72)

A ansiedade pode ser tomada como sinônimo de angústia. Empregarei esse último termo. Em termos gerais, a angústia, em Heidegger, diz respeito ao sentimento de insegurança diante do nada. O sentimento de que fomos lançados ao mundo, sem qualquer razão, para morrer é fonte de angústia.
É preciso distinguir angústia do medo. Na angústia, não há um objeto real a nos causar apreensão ou aflição; ao contrário, o medo supõe a presença de alguma coisa que nos ameaça. Assim, a perspectiva da morte causa em nós o sentimento de angústia. Somos um ser-no-mundo destinados a morrer e nada podemos fazer contra isso. Mas Heidegger não está preocupado em considerar a morte como dado empírico, mas a relação da vida com a perspectiva da morte. Sua preocupação recai sobre a relação do Dasein como ser-no-mundo que reconhece a possibilidade se sua própria morte. Assim, argumentará Heidegger, contra Epicuro e Sartre, que não precisamos estar à beira da morte, não precisamos estar desenganados pelo médico, sentenciados para morrer, para que nos demos conta de que “caminhamos em direção à morte”. Somos ser-para-a-morte, o que significa reconhecer que a possibilidade da morte é constitutiva da estrutura do Dasein.
O que significa a decadência, então, segundo Heidegger? Consiste ela na convicção de que todos iremos morrer e, nesse caso, não levamos em conta a possibilidade mesma de nossa própria morte. Pensamo-nos como um na multidão.
A angústia nos faz sentir que o mundo não é mais nossa casa.  Mas uma compreensão autêntica da morte leva-nos a entender que os papéis sociais que assumimos, que nossa identidade que se vai construindo em nossas vivências sociais não são senão ilusões. A própria identidade que construímos para nós revela-nos que “não temos possibilidades necessárias”, ou seja, não é necessário que, em face de um conjunto de possíveis, eu seja professor e um pai de família, por exemplo. Disso se segue que o significado de nossa existência dependerá tão somente de nós. Aqueles papéis ou aquelas identidades não definem quem realmente somos. Daí a autotranscendência do Dasein, daí também a sua projeção para possibilidades futuras. O Dasein é ser-no-mundo, mas não está enraizado no mundo, não está completamente determinado num contexto sócio-histórico dado.
Estou ciente de que a descrição que fiz de uma parte da filosofia de Heidegger foi apressada. Espero, contudo, não ter cometidos grandes falhas. Deixo ao leitor a tarefa de tirar as consequências da perspectiva de Heidegger sobre condição humana para considerá-las como contributos ao esforço para “salvar-se de si”. Deveríamos considerar a filosofia de Heidegger como uma filosofia do desespero? Estaria ela imbuída de uma visão pessimista sobre a existência humana? Ou será que ela pode constituir um caminho para o bem viver?
Decerto, para tentar responder a essas questões, deveríamos nos aprofundar na filosofia de Heidegger a fim de compreendê-la mais satisfatoriamente. Não obstante, as perguntas aqui sugeridas – que não esgotam todas as questões possíveis – servem-nos como estímulo para estudos mais aturados e extensos.

Um comentário:

  1. Sempre ouvi boatos de q Heidegger era intragável: como pessoa e como filósofo.
    Mas fiquei curiosa. Por sinal, Ser e Tempo é um título q mto me chama atenção, nesta minha angústia existencialista e fragmentada...

    Beijo, amigo

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