sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

impressões de leituras


                                                                            

                                            Dispersos




Sempre que leio um livro, tenho o hábito de grifar trechos de parágrafos ou mesmo parágrafos inteiros que me despertam atenção. Muitas vezes, além de sublinhá-los, deixo junto a eles algum comentário ou questionamento. Tal hábito me ajuda a localizar o que li, caso eu pretenda escrever sobre algum tema que já tenha visitado em minhas leituras, ou mesmo me ajuda a reter o que li, quando releio o mesmo livro ou capítulo.
Neste texto, cujos limites já estão pré-fixados em meu espírito, pretendo trazer à cena alguns trechos curiosos ou interessantes de uns poucos livros que já li ou que ainda estou lendo. O primeiro trecho que compartilho com o leitor vem de Bart D. Ehrman, em seu Quem Jesus foi, Quem Jesus não foi? (2010). Escusa dizer que os cristãos menos suscetíveis ao adestramento intelectual deveriam dar-se o trabalho de lê-lo. Leiamos com atenção o trecho abaixo:

A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para informar aos leitores que os editores achavam que eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano”.

(pp. 119-120)
(grifo meu)


Este trecho permite-nos inferir que nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Nenhum deles conviveu com Jesus. Em outro trecho, que não refiro por me faltar disposição de ânimo para procurá-lo, Ehrman é mais explícito, ao nos ensinar que os nomes Marcos, Mateus, João e Lucas não correspondem aos nomes dos verdadeiros autores dos evangelhos. Apesar de a maioria esmagadora dos cristãos acreditar que Mateus foi realmente o autor do “Evangelho segundo Mateus” e que esse Mateus foi um dos doze apóstolos de Jesus, há um consenso entre os estudiosos bíblicos, cujo trabalho de interpretação se assenta no método crítico-histórico, de que os Evangelhos são produto de falsificações, resultado de cópias sucessivas, feitas por copistas, não necessariamente aptos para tanto. O trecho a seguir nos ensina a respeito disso. O trecho consta do livro, também de Bart D. Ehrman, intitulado de O que Jesus disse? O que Jesus não disse?Quem mudou a Bíblia e por quê (2006):

“(...) De fato, muitas mudanças encontradas nos primeiros manuscritos cristãos nada tinham a ver com teologia ou ideologia. A maioria das mudanças é, de longe, resultado puro e simples de erros – escorregões de pena, omissões acidentais, acréscimos despercebidos, palavras mal grafadas, bobagens desse tipo. Os copistas podiam ser incompetentes: é importante lembrar que a maioria dos copistas nos primeiros séculos não eram treinados para esse tipo de trabalho, porque eram simplesmente os membros letrados das assembleias que eram (mais ou menos) capazes e se dispunham a fazê-lo. Mesmo mais tarde, a começar dos séculos IV e V, quando os copistas cristãos emergiram como classe profissional dentro da Igreja, e mais propriamente ainda, quando a maioria dos manuscritos era copiada por monges dedicados a esse tipo de trabalho em mosteiros – mesmo nessa época, havia copistas menos experimentados que outros. (...) Por vezes, os copistas simplesmente se distraíam; outras vezes, tinham sono e fome;outras ainda, compreensivelmente, não podiam dar o melhor de si. (...) Até mesmo copistas competentes, treinados e alertas,  de vez em quando podiam cometer erros. Não obstante, em certas ocasiões, como vimos, eles mudavam o texto porque achavam que ele tinha de ser mudado. E isso, note-se, não apenas por razões teológicas. Havia outras razões pelas quais os copistas introduziam uma mudança proposital – por exemplo, quando chegavam a uma passagem que parecia incorporar um erro que precisava ser corrigido, provavelmente uma contradição encontrada no texto, ou uma referência geográfica errada, ou uma menção escriturística deslocada. Desse modo, quando os copistas faziam mudanças intencionais, por vezes, os seus motivos eram tão cristalinos quanto a água de fonte pura. Mas, seja como for, tratava-se de mudanças que faziam com que as palavras originais do autor fossem alteradas e, em última instância, perdidas”.

(p.65-66)
(ênfase no original)

Os dois trechos, quando reunidos a outro que ainda citarei, servem para refutar a crença, bastante generalizada e empedernida no mundo judaico-cristão, segundo a qual a Bíblia foi inspirada por Deus. Grosso modo, isso significa dizer que os escritores bíblicos foram influenciados pelo “sopro do Espírito Santo de Deus” a compor seus escritos. Estava eu, há pouco, ocupado na leitura do Tratado de Teologia – Adventista do Sétimo Dia (2011), particularmente, concentrado na seção destinada ao estudo da crença na Bíblia como uma obra de Deus. O autor, que é teólogo, irá se esforçar por justificar por que podemos, com certeza, afirmar que a Bíblia tem origem em Deus. Na verdade, inicialmente, a minha intenção era compor um texto por meio do qual eu avaliaria criticamente os argumentos do autor, para defender justamente a posição contrária, qual seja, a de que a Bíblia é uma obra humana e somente humana. Curiosamente, as “evidências” apresentadas pelo autor em favor da crença de que a Bíblia resultou de um trabalho também divino (ele não nega que tenha sido produto do trabalho humano, evidentemente) são todas colhidas da própria Bíblia (e não de fontes externas a ela). Ademais, as “evidências” são, sem exceção, os registros dos autores bíblicos, que simplesmente alegavam que as Escrituras foram inspiradas por Deus. Pergunto-me que valor têm essas alegações como provas?
Ao tratar do “locus” da Inspiração, ou seja, quem ou o que foi alvo de inspiração, o teólogo observa o seguinte:

“A terceira opção para locus da inspiração – a comunidade da fé na qual a Escritura teve sua origem – dificilmente merece ser mencionada como alternativa viável. O conceito se baseia, em grande medida, em um método específico de estudo da Bíblia. Por meio de um estudo crítico-histórico-literário da Bíblia, os eruditos  chegaram à conclusão de que muitos livros bíblicos são produto final de um longo processo, no qual estiveram envolvidos escritores, editores e redatores desconhecidos. Com base nesse fenômeno, nega-se a concepção de que os livros da Bíblia tiveram autores terem sido inspirados, a comunidade na qual os escritores atingiram sua forma final é que foi inspirada a reconhecer a validade e autoridade da mensagem bíblica”.

(p. 45)
(grifo meu)

Nesse excerto, o autor reconhece as contribuições de estudiosos como Ehrman, que desenvolvem sérios estudos sobre a Bíblia, a fim de buscar uma compreensão histórica sobre esta que é a obra mais vendida e lida do mundo. No entanto, ele tão-só as rejeita como verdadeiras explicações sobre a autoria da Bíblia. Veja-se o trecho em negrito. Saliente-se que ele as rejeita sem desenvolver qualquer argumentação. Ele simplesmente quer manter a crença de que os escritores bíblicos foram inspirados e que as alterações e cópias das quais nos falam os historiadores bíblicos podem ter sido elas mesmas também inspiradas. Não lhe ocorre que um trabalho que fosse inspirado por Deus não poderia carecer de correção; é razoável supor que, se é Deus quem inspira as palavras do livro, esse livro deveria primar pela exatidão e pela correção; ademais, deveria incluir somente ensinamentos e palavras que dariam testemunho de uma inteligência infinitamente superior à humana (o advérbio “infinitamente” aí tem sentido obscuro, mas serve para assinalar como Deus é pensado pelos cristãos); mas a Bíblia está longe de ser um livro repleto de ensinamentos e palavras capazes de nos maravilhar.
Em outro livro, intitulado Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte (também esse trecho serve para negar a validade da crença na Bíblia como obra inspirada):

“Olhe de perto a história do Dilúvio, em Gênesis 6:5 – 8:19. Quantos animais entraram na Arca de Noé – dois de cada espécie (6:19, 7:15), ou sete pares de cada animal puro e um par de cada animal impuro (7:2-3)? Como veio o Dilúvio – de cima, pela chuva (7:4)?, ou por um aumento das águas das profundezas, ou ambos (7:11)? E quanto tempo ele durou – quarenta dias (7:17, 8:6), ou 150 dias (7:24)? (...) considerando-se as histórias em sua forma final, tal como aparecem hoje na Bíblia, os leitores podem concluir que uma fonte acrescenta algo a outra, ou elabora sobre detalhes de outra, produzindo uma história ainda mais rica. Os textos convidam a uma leitura assim, em camadas.
Provavelmente nenhuma das quatro fontes literárias hipotéticas foi composta por uma só pessoa; antes, as quatro representam as tradições orais e escritas de várias partes, provavelmente não juntas em uma sessão, mas ao longo do tempo. Ou seja, cada uma das fontes foi construída sobre outras fontes, e reflete um processo de transmissão que permite edição e alteração o tempo todo. E a forma final reflete uma combinação intencional de textos recebidos”.

(p. 67)

O fato de lermos, por exemplo, em Timóteo 2 (3:16) “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça” não constitui prova suficiente para validar a crença de que Deus é o verdadeiro autor da Bíblia. De passagem, cumpre notar que, ao contrário do que sugere o teólogo, em Tratado de Teologia, não foi Paulo autor de Timóteo 1 e 2 (Ehrman, 2010, 147). O que nos impede de desconfiar do autor de Timóteo? Por que não deveríamos supor que o autor, ao escrever o que escreveu, tinha intenção de que seu escrito alcançasse prestígio na comunidade à qual ele se destinava? Supõe-se que Timóteo era um pastor de Éfeso. Ora, se a intenção do autor de Timóteo era fazer recomendações sobre como se deveria desenvolver o trabalho pastoral nas igrejas, nada mais justo que reafirmasse a crença de que as Escrituras foram divinamente inspiradas; afinal, se o texto fora atribuído a uma autoridade como Paulo de Tarso, àquela altura convertido para o cristianismo, e se nesse texto evoca-se a autoridade de Deus na confecção das Escrituras, que pastor ousaria ignorar as recomendações que nele havia? Entenda-se: o apelo à autoridade de Deus, da qual Paulo era um porta-voz, garantia a credibilidade das recomendações que constam do texto Timóteo.
Por fim, um outro trecho, agora colhido do livro Lunáticos por Deus – lendas, mitos e fatos (2011), de Michael Largo. A história é dramaticamente bizarra, sem deixar de revelar quanto a fé pode ser perniciosa:

“No Concílio de Nicéia, em 325 d.C., instituiu-se o dogma da Santíssima Trindade: só existe um Deus, mas n’Ele há três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ário, bispo de Alexandria, Egito, causou grande comoção ao afirmar que essa ideia estava errada. Argumentou que Deus existia antes de Jesus e, portanto, Jesus, o Filho, não era igual ao Pai. Numa determinada época, Ário tinha um número considerável de seguidores e os conservou mesmo depois de ser condenado devido à sua recusa em retratar-se, convertendo-se assim no primeiro herege da Igreja Católica e sentenciado à excomunhão. Além disso, a extensa coletânea de seus textos filosóficos e teológicos foi queimada e ele assistiu às chamas transformarem o trabalho de sua vida em cinzas. Cópias de seus escritos descobertas posteriormente, depois de aspergidas com água benta, também acabaram devoradas pelo fogo. Para assegurar que sua mão não mais produziria blasfêmias, induziram Ário a voltar do exílio para Constantinopla em 336, sob a alegação de que seria reintegrado à Igreja. Ele tomou poucas precauções contra assassinos e, chegando ao seu destino, desfilou abertamente pela cidade inteira, acenando para as multidões com a sensação de desagravo, convicto de que suas postulações seriam reconsideradas. Entretanto, antes de chegar à igreja, onde imaginava que o papa o abençoaria agarrou a boca e as nádegas com as mãos. Enquanto tentava correr para um banheiro, seu corpo repentinamente se enrijeceu. O sangue começou a jorrar de cada orifício e testemunhas asseveraram haver visto o baço e o fígado escorrerem juntos com os intestinos. Interpretou-se o acontecido como um sinal de que Deus estava descontente com suas ideias heréticas, embora pareça que Ário tenha sido envenenado por habilidosos alquimistas decididos a matá-lo de um modo espetacular, diante das multidões. A parede onde ele se encostou foi marcada e transformou-se em ponto turístico por séculos como um lembrete do destino reservado àqueles que desafiam a crença na Trindade”.

(p. 47)


Deixo aqui uma sugestão aos não-crentes ou declaradamente ateus, como eu, que se interessem por compreender por que é tão custoso às pessoas de fé romper definitivamente com o sistema de crenças e ideias irracionais de que foram herdeiras. Talvez, a razão pela qual essas pessoas não consigam se emancipar da ideologia religiosa seja o fato de os discursos religiosos se construírem com a retórica da dependência emocional a um Outro supremo. Não é nenhuma novidade o fato de os discursos religiosos serem discursos autoritários. Mas, talvez, não seja claro a muitos o modo como esses discursos constroem a relação de dependência dos fiéis para com esse Outro cuja autoridade é forjada para não ser questionada. E é bom ter em conta que esse Outro, ou melhor, a autoridade desse Outro (Deus) não é senão uma forma de representação da autoridade da própria instituição Igreja.

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